Viriato: Os detalhes da polémica venda de imóveis do Novo Banco que foi parar à PGR
5.552 imóveis compostos por 8.719 frações foram vendidos por 364,1 milhões de euros. Negócio representou perdas de 159 milhões de euros para o Novo Banco.
Foram muitos os imóveis vendidos pelo Novo Banco, cujos negócios acabaram por se mostrar ruinosos. Um deles, o mais famoso de todos, o projeto Viriato, terminou mesmo na Procuradoria-Geral da República (PGR). Isto porque a instituição vendeu 5.552 imóveis compostos por 8.719 frações bastante abaixo do valor contabilístico, o que resultou numa perda de 159 milhões de euros nas contas. Os detalhes do processo, bem como as consequências, estão agora detalhados na auditoria feita pela Deloitte que foi tornada pública esta terça-feira.
Em março de 2018 o Novo Banco tinha em curso um “plano de de reorganização do modelo operacional do setor imobiliário” e, por isso, decidiu pôr à venda uma carteira com 5.552 imóveis compostos por 8.719 frações, à qual deu o nome de “Viriato”. Esses imóveis tinham sido adquiridos através de processos de recuperação de crédito e eram considerados “ativos não produtivos”, refere a auditoria. A decisão de vender essa carteira foi aprovada em reunião do Conselho de Administração Executivo (CAE).
A ideia inicial era vender os imóveis por um valor unitário de até 350.000 euros, mas esse montante acabou por ser aumentado para os 450.000 euros, “pela necessidade de exclusão de alguns imóveis por razões de ordem técnica e regulamentar”.
O obstáculo inicial do assessor financeiro
Um mês depois da decisão tomada, em abril, foi altura de escolher o assessor financeiro, ou seja, a empresa que ficaria responsável por preparar, executar, negociar e concluir o processo de venda. Foram então analisadas quatro propostas, entre as quais a da Alantra Espanha. Surgiu, então, o primeiro obstáculo. Um “Questionário de Prevenção de Conflitos de Interesses” mostrou que “a CEO da entidade portuguesa do Grupo [Rita Barosa] era um ex-quadro superior do BES”, refere a auditoria da Deloitte.
Num email enviado a 10 de abril com esse questionário, o Departamento de Compliance do Novo Banco referiu, então, que havia um “claro risco reputacional” neste negócio e que a Alantra Espanha devia ser “excluída” desse processo de contratação, bem como de quaisquer processos daí em diante.
No dia seguinte, durante uma reunião do CAE, o responsável do Departamento de Gestão Imobiliária (DGI) do Novo Banco apresentou uma proposta onde “recomendava fortemente a Alantra”, defendendo que o trabalho esta “seria desenvolvido pela empresa situada em Espanha e exclusivamente pela respetiva equipa local”. Este mesmo responsável, diz a auditoria, “referiu conhecer e recomendar” o trabalho da Alantra para este efeito. O CAE aprovou, então, a contratação da Alantra ou de “outra entidade das mais recomendadas” para assessorar a venda da carteira “Viriato”, notando que “deveria ser pedida uma melhor fundamentação da posição do Departamento de Compliance”.
Nesse mesmo dia, a 11 de abril de 2018, foi pedido um “parecer mais fundamentado” ao Departamento de Compliance, mas a resposta foi no mesmo sentido. De acordo com a auditoria, esse departamento respondeu que “numa perspetiva de defesa da imagem e reputação do Novo Banco e de ganho de credibilidade, quer interna, quer externa, se considerava que é do interesse do Novo Banco evitar situações que possam de alguma forma conotar o Novo Banco com empresas/pessoas associadas à gestão do BES/GES“.
Sublinhando que “seria importante que o CAE do Novo Banco tomasse uma posição de excluir a celebração de quaisquer negócios com empresas/pessoas associadas à gestão do BES/GES e das más práticas”, o Departamento de Compliance nada mais acrescentou, deixando a decisão nas mãos da administração do banco. O CAE acabou por decidir contratar a Alantra Espanha, “sem envolvimento da firma portuguesa”.
Desde a contratação de assessores até à discussão das ofertas vinculativas, que foram recebidas em outubro de 2018, o processo de venda decorreu sob coordenação do DGI e da Hudson Advisors (entidade do Grupo Lone Star), refere a Deloitte. O assessor financeiro, neste caso a Alantra Espanha, apresentou ainda uma “análise de benchmark relativa a transações históricas” e dos “haircuts”, “de forma a “compreender os ajustamentos esperados ao valor de avaliação inicial dos imóveis integrantes da carteira em apreço”.
59 investidores contactados e duas propostas vinculativas
A decisão de venda da carteira tomou-se em março e, no final de junho de 2018, os imóveis foram colocados no mercado, sendo que as propostas não vinculativas tinham de ser apresentadas até 31 de julho de 2018. Durante este tempo foram contactados 59 potenciais investidores e servicers, dos quais 23 assinaram o non disclousure agreement e sete apresentaram ofertas não vinculativas, lê-se na auditoria. As duas empresas com as ofertas mais elevadas foram selecionadas para a fase de ofertas vinculativas, cuja data limite era 26 de setembro de 2018.
Dentro deste prazo o Novo Banco recebeu duas ofertas vinculativas, sendo que um desses investidores apresentou uma unsolicited offer a 30 de setembro de 2018. De acordo com a Deloitte, que cita o Novo Banco, “como forma de garantir equidade, foi solicitada a apresentação de uma best and final offer a ambos os investidores até 3 de outubro de 2018″, estando ocultados da auditoria os respetivos valores.
As propostas vinculativas foram apreciadas pelo CAE durante os dias 3 e 4 de outubro, tendo sido feita uma “análise do valor económico potencial” de cada uma. “Paralelamente à análise quantitativa em apreço, o CAE do Novo Banco efetuou uma análise de base qualitativa às duas ofertas vinculativas, tendo por base os pareceres do assessor financeiro e do assessor legal ao processo”, refere a Deloitte.
A escolha recaiu sobre a norte-americana Anchorage Capital Group, por diversos fatores: pelo facto de esta empresa ter “realizado um processo de due diligence mais exaustivo”, ter “apresentado uma Equity Commitment Letter mais completa e com menores riscos de execução”, pelo facto de “a Equity Commitment Letter apresentada pelo outro investidor ser menos detalhada e com mais incerteza em sede de potenciais negociações posteriores e calendário” e, por último, pelo facto de “a proposta da Anchorage caducar no próprio dia 4 de outubro de 2018”. A decisão estava tomada, mas ficou acordado que caso não fosse possível fechar o negócio com a Anchorage, o mesmo seria fechado com o investidor da outra proposta vinculativa.
Foi feita uma análise de contrapartes pelo Novo Banco, que incluiu “diligências de identificação dos últimos beneficiários efetivos” da Anchorage, “bem como dos membros dos órgãos de gestão” da empresa norte-americana. Esta análise permitiu concluir, entre outros pontos, que “as estruturas de propriedade se afiguravam complexas, envolvendo feeder funds e master funds sedeados em jurisdições offshore tais como Ilhas Caimão e Delaware“.
O Novo Banco teve ainda em consideração a “informação fornecida pela Anchorage” de que “nenhum investidor dos fundos detinha participação direta ou indireta superior a 25%”. Foi ainda feita uma análise ao CEO da Anchorage. “De acordo com a informação prestada pelo Novo Banco, não foram, na avaliação de contrapartes, e tendo em atenção os procedimentos supra descritos, identificadas pessoas ou entidades que potencialmente fossem relacionadas com o Novo Banco ou a Lone Star”, refere a auditoria.
Carteira vendida por 364,1 milhões de euros
A escolha do comprador estava feita e, a 9 de outubro de 2018, o Novo Banco assinou com a Anchorage o contrato-promessa de compra e venda da carteira “Viriato” por 364,1 milhões de euros, um valor abaixo dos 380,1 milhões de euros oferecidos na proposta vinculativa. Isto porque, diz a Deloitte, houve alguns ajustamentos no preço, justificando com imóveis que foram entretanto vendidos ao abrigo do direito de preferência.
A verdade é que, de acordo com a auditoria, os imóveis valiam bastante mais: 716,7 milhões de euros de valor contabilístico bruto e 548,6 milhões de euros de valor contabilístico líquido. Ou seja, o negócio acabou fechado com um desconto bastante elevado, o que acabou por provocar perdas de 159 milhões de euros para o Novo Banco, concluiu a auditoria da Deloitte.
Alguns destes imóveis pertenciam ao Acordo de Capital Contingente (CCA) e também aqui se registaram perdas. Esta pequena fatia de imóveis foi vendida por 59,7 milhões de euros, mas na verdade valia mais. Tinha um valor bruto contabilístico de 82,2 milhões de euros e um valor líquido contabilístico de 77,8 milhões de euros, o que representou uma perda de 18,1 milhões de euros para o CCA (dentro dos 159 milhões de euros totais).
No meio disto tudo, o próprio Novo Banco ainda concedeu crédito à Anchorage para fechar esta compra. Sobre isto, a instituição justifica, afirmando que tudo foi feito “de acordo com as melhores práticas de mercado” e com “hipoteca dos bens até à amortização da dívida”.
A “luz verde” do Fundo de Resolução
Esta venda recebeu “luz verde” do CAE a 4 de outubro de 2018 e, mais tarde, a 31 de dezembro, foi a vez de o Fundo de Resolução dar o seu “ok”. Antes de aprovar da operação, o Fundo de Resolução aguardou por uma resposta do Novo Banco a um “pedido de esclarecimentos (solicitado a 12 de dezembro de 2018) sobre uma comunicação anónima recebida no Fundo de Resolução e relacionada com o projeto Viriato”, refere a auditoria. Esse pedido de esclarecimentos abordava “aspetos relativos ao calendário do processo de venda e respetivos impactos na maximização de receita para o Novo Banco”, “afiliações de servicers e assessor financeiro do processo com ex-quadros do BES” e a “ligação de responsáveis pela área imobiliária do Novo Banco com a Lone Star”.
A resposta do Novo Banco chegou a 22 de junho de 2020, numa carta em que a instituição referia a análise feita pelo Departamento de Compliance, bem como a posição adotada por este, nomeadamente ao “considerar que o Novo Banco não deveria trabalhar com duas das entidades mencionadas na carta anónima (assessor financeiro e um dos servicers)”.
A 14 de agosto o Fundo de Resolução respondeu de volta, referindo, entre outros pontos, que “apenas na sequência daquela correspondência tomou conhecimento do referido parecer negativo do Departamento de Compliance e que esta informação teria sido relevante para que pudesse ter avaliado a conveniência do assessor financeiro em causa no Projeto Viriato e nos demais projetos em que o mesmo assessor teve participação”.
Operação a preço de saldo gera polémica e acaba na PGR
As perdas que esta venda trouxe para o Novo Banco já eram conhecidas mas, no final de julho, o Público levantou outras questões, nomeadamente quanto ao beneficiário final destes imóveis. A polémica instalou-se e isso levou mesmo o Governo e vários partidos a pedirem esclarecimentos. O primeiro-ministro também não ficou indiferente e acabou mesmo por enviar uma carta à procuradora-geral da República a pedir uma análise a esta venda e a suspensão de outras operações de vendas de ativos até que fosse concluída a auditoria da Deloitte.
Entretanto a instituição bancária acabou por confirmar o envio à PGR de informação sobre a venda desses imóveis, justificando que a mesma não implicou perdas diretas para o Fundo de Resolução. “Refira-se ainda que o Novo Banco se tem mostrado sempre totalmente disponível para esclarecer todas as dúvidas existentes, e que nomeadamente enviou ontem [segunda-feira], em antecipação, um conjunto detalhado de informação à Procuradoria-Geral de República referente à venda dos referidos imóveis integrados no projeto Viriato e Sertorius”, disse o banco, em comunicado.
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