Covid-19 – Revisitando o regime das licenças obrigatórias

  • João Paulo Mioludo
  • 4 Novembro 2020

Considerando que o acesso a vacinas ou medicamentos será uma realidade, não é expectável, apesar de tudo, o recurso a este instituto nos países desenvolvidos e, designadamente, no seio da UE.

As licenças obrigatórias constituem um aspeto pouco simpático das leis sobre propriedade industrial, particularmente para os titulares de patentes. O tema é aliás pouco debatido em Portugal, considerando até o inexpressivo, praticamente inexistente, número de licenças obrigatórias concedidas no nosso país. Tenhamos presente que este instituto se encontrava já previsto no Código da Propriedade Industrial de 1940, tendo sido mantido nas sucessivas revisões do CPI, incluindo a mais recente, aprovada pelo Decreto-Lei nº 110/2018, de 10 de dezembro. As licenças obrigatórias foram também previstas no Acordo sobre os Aspetos dos Direitos de Propriedade Intelectual relacionados com o Comércio (ADPIC). Grosso modo, as licenças obrigatórias preveem a possibilidade de o titular da patente ser obrigado a conceder a terceiros uma licença para a exploração da invenção. Tendo em linha de conta os direitos conferidos pela patente, designadamente o direito exclusivo de explorar a invenção, já se vê que impor ao seu titular a obrigatoriedade de conceder uma licença de exploração, representa uma forte contingência. Como tal, só em circunstâncias excecionais será admissível conferir a terceiros a possibilidade de explorar invenção alheia. A concessão de uma licença obrigatória pode justificar-se por motivos de interesse público, designadamente quando a exploração da invenção seja de “primordial importância” para a saúde pública. A possibilidade de serem admitidas licenças obrigatórias neste domínio radica num mais vasto conflito entre patentes e saúde pública, sobretudo quando esteja em causa o acesso, a preços acessíveis, a medicamentos (e vacinas) protegidos por patentes, com inegáveis repercussões na saúde pública, tanto mais graves quanto mais premente for a necessidade de aceder aos mesmos. Este problema, como é sabido, coloca-se com particular relevância nos países subdesenvolvidos ou em vias de desenvolvimento. A este respeito, será de realçar que o ADPIC foi alterado pelo Protocolo de 6 de Dezembro de 2005, que entrou em vigor em 23 de janeiro de 2017, que basicamente veio prever que os Países membros não devem ser impedidos de adotar medidas de proteção da saúde pública. Na prática, ficou estabelecido que os governos devem recorrer a todos os mecanismos, incluindo o recurso a licenças obrigatórias, para garantir o acesso a medicamentos a preços acessíveis. Perante a atual crise de saúde pública provocada pelo novo Coronavírus, assistimos a uma corrida por vacinas e tratamentos para fazer face à pandemia, os quais, não temos dúvidas, constituem direitos de propriedade industrial e estão protegidos por patentes de produtos farmacêuticos. Considerando que, muito em breve, e como todos desejamos, o acesso a vacinas ou medicamentos será uma realidade, não é expectável, apesar de tudo, o recurso a este instituto nos países desenvolvidos e, designadamente, no seio da União Europeia. Na verdade, para a indústria farmacêutica, que neste momento despende avultadas somas na investigação e desenvolvimento de novos produtos para o combate à Covid-19, não só não seria simpático como seria, até, injusto. Em Portugal, o Conselho de Ministros já aprovou um investimento de 20 milhões de euros em contratos a celebrar para aquisição de vacinas conta a Covid-19. Para já, espera-se que as futuras necessidades internas estejam devidamente salvaguardadas. Veremos o que o futuro (próximo) nos reserva.

  • João Paulo Mioludo
  • Sócio da SRS Advogados

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