Salário mínimo de 750 euros em 2023 “vai ser mais difícil, mas pode ser exequível”, diz Fernando Alexandre

O economista Fernando Alexandre considera que não faz sentido aumentar o salário mínimo no próximo ano, quando tantas empresas estão fragilizadas face à pandemia de coronavírus.

O Executivo de António Costa reconhece que “o mundo mudou desde março”, mas defende um aumento “com significado” do salário mínimo nacional no próximo ano. Para Fernando Alexandre, tal não faz sentido e acarreta grandes riscos, face ao impacto da pandemia no tecido empresarial português e no mercado de trabalho nacional.

Em entrevista ao ECO, o economista e professor da Universidade do Minho sublinha que a prioridade deve ser agora lutar pela sobrevivência das empresas, proteger o emprego e garantir rendimentos àqueles que percam os postos de trabalho.

Do ponto de vista económico, não há justificação, portanto, para aumentar a remuneração mínima garantida no próximo ano, salienta o autor do estudo recentemente publicado sobre o impacto dos aumentos do salário mínimo na vida das empresas, entre 2014 e o presente. Nessa análise, sublinha-se que tais reforços mitigaram o crescimento do emprego e pressionaram as empresas mais fragilizadas, o que deixa algumas pistas sobre o que poderá acontecer nos próximos anos se as remunerações aumentarem mesmo.

Ainda assim, Fernando Alexandre reconhece que o objetivo do Governo de subir o salário mínimo nacional para 750 euros até ao final da legislatura poderá ainda ser cumprido. “Vai ser bastante mais difícil”, avisa. Mas “poderá ser exequível”, admite o ex-secretário de Estado.

Estudou recentemente o impacto do aumento do salário mínimo no tecido empresarial, no período entre 2014 e a atualidade. Quais as principais conclusões dessa sua análise?

O que o nosso trabalho mostrou é que os aumentos do salário mínimo que ocorreram desde 2014 tiveram efeitos negativos no crescimento do emprego — não no emprego, mas na taxa de crescimento do emprego — e na rendibilidade, nos lucros das empresas. Esses efeitos foram mais fortes nas empresas que estão numa situação financeira débil, empresas de baixa rendibilidade, que não têm EBITDA suficiente para pagar os juros dos empréstimos que têm. Portugal têm hoje uma percentagem reduzida, mas essas empresas chegaram a ter um peso muito significativo na economia, entre 2010 e 2015. Com a recuperação económica, umas foram recuperando, outras foram morrendo.

Depois há um outro efeito. No contexto que vivemos antes da pandemia — que foi um contexto de crescimento económico com alguma robustez e de crescimento do emprego –, o aumento do salário mínimo acelerou a morte de algumas das empresas que estavam numa situação financeira muito débil.

No novo contexto que vamos ter, o aumento do salário mínimo pode deteriorar ainda mais a situação financeira das empresas e, por isso, acelerar a perda de emprego.

Essa aceleração pode ser tida como positiva, uma vez que se “limpou” o tecido empresarial, deixando apenas as empresas mais fortes?

Num contexto de crescimento económico, esse efeito é até positivo. Essas empresas chamadas zombie têm baixa produtividade e, em vez de contribuírem para o crescimento da economia, são até um obstáculo ao crescimento da economia, porque [absorvem] um conjunto de recursos, que deixam de estar disponíveis para as outras empresas, concorrem muitas vezes de forma desleal. Num contexto de expansão económica, o facto de o salário mínimo ter tido um papel na falência mais rápida dessas empresas pode até ser visto como positivo, no sentido em que tornou o tecido económico mais saudável.

Face à fragilização generalizada do tecido empresarial por causa da pandemia, aumentar o salário mínimo poderá ameaçar outras empresas que não somente as chamadas zombie?

No contexto em que nós agora vivemos, vamos ter muitas empresas em situação de fragilidade financeira, não por má gestão ou por outros mecanismos que permitam que elas persistam no mercado não tendo índices de competitividade que, à partida, justificassem a sua existência, mas porque tivemos uma pandemia, uma quebra brutal na procura, quer do consumo, quer das exportações. Vamos ter muitas empresas, sobretudo nos setores mais afetados pela pandemia, que estão numa situação financeira muito difícil.

Isto é reconhecido por toda a gente em Portugal, incluindo o Governo que acionou uma série de mecanismos, como o lay-off, as moratórias no crédito, as moratórias no pagamento dos impostos, as garantias para empréstimos bancários. [Isto] para garantir que as empresas conseguem sobreviver e estão preparadas para responder à procura quando a economia começar a procurar.

Ora, nesse contexto, vir falar de um aumento do salário mínimo parece-me inconsistente face aos objetivos anunciados, que são garantir que as empresas portuguesas ultrapassam esta fase da pandemia para estarem preparadas para quando a economia recuperar. No novo contexto que vamos ter, o aumento do salário mínimo pode deteriorar ainda mais a situação financeira das empresas e, por isso, acelerar a perda de emprego. Isto é ainda mais importante quando alguns dos setores mais afetados, como o alojamento e a restauração, têm uma incidência muito elevada do salário mínimo.

[A possibilidade de um aumento do salário mínimo em 2021] é resultado não de uma lógica económica, mas de uma lógica política.

A situação é agravada porque o aumento do salário mínimo tende a influenciar a evolução dos demais salários?

Outra questão é a proximidade do salário mínimo ao salário médio. Sabemos que, no próximo ano, não vamos ter aumento dos salários em Portugal e, por isso, se tivermos um aumento do salário mínimo, vamos ter uma maior aproximação do salário mínimo em relação ao resto do leque salarial que temos em Portugal, o que também pode ter um efeito negativo na economia.

Portanto, aquilo que me parece que deve ser a prioridade — e no fundo é aquilo que tinha sido anunciado como prioridade até à negociação do Orçamento do Estado — é precisamente a sobrevivência das empresas. Dar-lhes condições para sobreviverem, garantir que o emprego se mantém e ter recursos para aqueles que perdem o emprego com a insolvência das empresas. O surgimento desta questão agora [o aumento do salário mínimo em 2021] só pode ser resultado das negociações orçamentais entre o Partido Socialista e o Bloco de Esquerda e o PCP. Por isso, é resultado não de uma lógica económica, mas de uma lógica política, que não desvalorizo. É importante que o país tenha um Orçamento e haja estabilidade política.

Apesar de todos esses riscos, a subida do salário mínimo não é vantajosa para as empresas pela criação de uma maior procura interna, pela dinamização do consumo?

O efeito na procura não será muito significativo. Poderá haver algum efeito, mas não podemos esquecer que estamos a aumentar os salários dos trabalhadores, mas estamos a retirar capacidade financeira à empresas e a reduzir, muitas vezes, o salário do proprietário das empresas. Muitas destas empresas são pequenas e os proprietários não são propriamente ricos.

Posso conceder que haja algum efeito na procura, mas isso é assumindo que não há insolvências. Se tivermos insolvências e mais desemprego, vamos ter menos procura. No contexto de uma redução do emprego, estar a adicionar num ambiente de grande incerteza uma medida que também tem efeitos que a aumentam não me parece que aumente a confiança das pessoas nem contribua para aumentar a procura.

Num contexto de recessão, não faz sentido [aumentar o salário mínimo]. Os riscos que existem não justificam medidas deste género.

Daniel Bessa disse que o salário mínimo ajudaria a economia se subisse para mil euros para que verdadeiramente tivesse um impacto no consumo. Que comentário lhe merece esta declaração?

Estou convencido que seria uma razia do tecido económico. O desemprego e as insolvências seriam tantas que tenho dúvidas dos efeitos que isso teria na procura. Se assumirmos que o emprego se mantém, aumentam os salários, aumenta a procura. O ponto que aqui é relevante é que estamos num contexto em que as insolvências estão a aumentar, o desemprego está a aumentar, todos os aumentos de custos vão deteriorar a situação financeira das empresas e, por isso, aumenta a probabilidade de termos mais insolvências. Com mais insolvências, vamos ter um aumento do desemprego e vamos entrar aqui num ciclo recessivo.

O que o professor Daniel Bessa está certamente a dizer, com aquela ironia que lhe é conhecida e inteligência, é que se alguém pagasse esse acréscimo, sem as empresas irem à falência, a procura aumentava. A questão é que não é possível falar do aumento dos salários sem termos em conta que isso é um custo das empresas.

Num contexto de expansão económica, os efeitos positivos do aumento salário mínimo são maiores. Ora, num contexto de recessão, não faz sentido. Os riscos que existem não justificam medidas deste género.

Portanto, na sua opinião, 2021 deveria ser um ano em que o salário mínimo deveria ficar estagnado?

Sem dúvida. O salário mínimo e os salários em geral. A prioridade é manter o emprego e a estrutura produtiva o mais intacta possível. Antes disto, o próprio primeiro-ministro referia sempre — até está no programa do Governo — que o aumento do salário mínimo teria de ser equacionado tendo em conta as condições económicas. Gostava de ver estudos do Governo que mostrassem os efeitos que isto [o aumento do salário mínimo em 2021] vai ter.

[Subir o salário mínimo para 750 euros até 2023] vai ser bastante mais difícil, mas pode ser exequível.

Na proposta de lei das Grandes Opções do Plano, o Governo mantém o objetivo de que o salário mínimo atinja os 750 euros até 2023. Tendo em conta as perspetivas económicas, tal é exequível? Na sua opinião, quanto teria de crescer a economia nacional para o suportar?

Há muitas incerteza. Manter o objetivo de 750 euros para 2023, eu manteria. É muito mais difícil de alcançar, mas manteria o objetivo. É positivo. Manter o objetivo não me choca, embora seja mais difícil de alcançar, como todos os objetivos económicos durante a pandemia.

Mas ainda é exequível?

Vai ser bastante mais difícil, mas pode ser exequível. Se a pandemia fosse rapidamente controlada, se em 2021 conseguíssemos estabilizar a atividade económica, nessa situação poderia ser possível, mas é difícil. O quadro macroeconómico alterou-se completamente. Manter esse valor, suscita dúvidas, mas como é só para 2023 concedo que se mantenha.

Acharia preferível não discutir um aumento do salário mínimo para 2021 agora, mas a meio do próximo ano, quando houver mais dados sobre a evolução da pandemia?

É uma boa ideia. Havendo mais visibilidade sobre o que está a acontecer à pandemia e como a economia está a recuperar, fazer isso. Em 2014, foi o que se fez. O salário mínimo foi aumentado em 2014, depois de a troika sair. Quando a troika saiu e se percebeu que a economia já estava a crescer, o Governo na altura decidiu aumentar o salário mínimo a partir de outubro. Não me choca, era uma boa solução, mas é preciso perceber que isso faz parte das negociações orçamentais.

A quebra da procura resulta das medidas sanitárias e da quebra na confiança. E, por isso, o que é absolutamente essencial é normalizar a vida.

A par do salário mínimo, o Governo diz que quer mesmo fazer o acordo de rendimentos que tinha começado a negociar em janeiro, para aumentar salários. Considera que esse objetivo deve ser dado por perdido porque as circunstâncias mudaram ou deve ser abraçado mais do que nunca para dinamizar a economia?

Neste caso, a quebra da procura resulta das medidas sanitárias e da quebra na confiança. E, por isso, o que é absolutamente essencial é normalizar a vida. Mais do que a quebra de rendimentos, as pessoas não têm uma vida normal e, por isso, consomem menos.

Aquilo que é importante garantir é rendimento às pessoas que perderam o emprego. Quem tem um emprego, não faz sentido, num contexto em que há muitas empresas à beira da falência, estar a aumentar os salários. Nem do ponto de vista económico, nem do ponto de vista como sociedade. Sou funcionário público. Eu não admito sequer que se discuta o aumento do meu salário. Gostava é que as pessoas não perdessem o emprego e que, no caso de o perderem, que tenham a garantia do seu rendimento. É com essas pessoas que devemos estar preocupados.

A proximidade de tantas eleições (nos Açores, as Presidenciais, as autárquicas) poderá levar todos os partidos a defenderem a valorização dos salários?

É possível, mas a economia não tem capacidade para isso. O que está em causa é a sobrevivência das empresas e era isso que, até à negociação do Orçamento, o Governo dizia. Por isso é que adotou um conjunto de medidas, que me pareceram acertadas. Agora, é preciso garantir que essas empresas não morrem, porque se morrerem os bancos têm lá esses créditos. Era o que mais faltava, a seguir a isto, termos uma crise financeira. É um contexto macroeconómico em que não faz sentido falar de aumentos de salários.

Enquanto não soubermos quando a pandemia desaparece, a economia muito dificilmente será normalizada.

Quanto tempo será necessário para voltarmos ao ponto em que estávamos no início do ano, a discutir com mais confiança a valorização dos salários?

A recuperação vai lenta enquanto tivermos a pandemia. Enquanto não soubermos quando a pandemia desaparece, a economia muito dificilmente será normalizada.

O que é importante para o que vem a seguir? Primeiro, podemos ter aqui um efeito que está a acontecer noutros país que é a possibilidade de, no que diz respeito à poupança e ao consumo, termos mudanças de hábitos. Em Portugal, há muitas pessoas que pensavam que não conseguiam poupar e conseguiram poupar. As pessoas que ficaram em casa e mantiveram rendimentos passaram a poupar mais e alguns começaram a poupar pela primeira vez. E isso dá prazer às pessoas. A poupança dá bem-estar às pessoas, porque dá um sentimento de proteção e as pessoas podem ganhar esses hábitos. Do ponto de vista do médio prazo, passaríamos a ter uma economia com menos consumo e isso, a nível estrutural, pode transformar a economia numa economia com menos atividade.

A outra dimensão é do lado da oferta. Temos a questão do que vai acontecer ao tecido produtivo português e do que vai a acontecer aos trabalhadores. E depois há outra dimensão que é o que nós vamos fazer com os fundos europeus. Voltar a ter a expectativa de aumentar salários vai depender muito destas variáveis.

A presidente da Comissão Europeia enfatizou a necessidade de todos os países da UE terem um salário mínimo, concorda? É mais justo até do ponto de vista de concorrência?

Acho que é importante a União Europeia ter políticas comuns na dimensão social, até para os cidadãos europeus sintam que têm o mesmo tipo de rede de proteção em todos os países. Não um salário mínimo para a Europa, porque nós temos estruturas salariais diferentes, condições de competitividade muito diferentes. Obviamente, não pode haver uma medida única.

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