A sociedade da (des)informação: tecnologia, ensino e direito

  • Pedro Miguel Freitas
  • 10 Fevereiro 2021

Passamos de uma sociedade da informação a da desinformação, onde a confiança e credibilidade são irremediavelmente postas em causa por motivos políticos, ideológicos, religiosos ou económicos.

Com o advento das novas tecnologias, verificou-se uma mudança de paradigma com um impacto incomensurável na democratização do conhecimento. No mínimo equiparáveis à massificação da tipografia no século XV, a comercialização de equipamentos eletrónicos, como os computadores ou telemóveis inteligentes, e o surgimento da Internet e, mais especificamente, da World Wide Web (www) reconstruíram e reedificaram totalmente a sociedade em que vivemos. De várias formas.

Atentemos a duas.

Por um lado, ainda que sob um manto de aparente invisibilidade, a tecnologia está na base do funcionamento da nossa sociedade. Energia, transportes, saúde, setor bancário e financeiro, para citar apenas alguns exemplos, são setores altamente dependentes de redes e sistemas de informação. São o alicerce sem os quais eles não funcionam – daí a crescente preocupação com a cibersegurança (veja-se a Diretiva NIS/SRI, por exemplo).

Por outro lado, centrando-nos num nível microsocietário, mas com indubitável influência sistémica, o acesso à informação massificou-se com a diminuição dos custos de produção de dispositivos eletrónicos, embora (e tanto ou quanto contraditoriamente, ou talvez não) a expensas do aproveitamento de mão-de obra barata, e do acesso à Internet. Como corolário desta democratização do conhecimento, assistimos a um ritmo desenfreado de criação, divulgação e acesso a conteúdos digitais.

Os meios de comunicação social tradicionais foram substituídos, em larga medida, pelo menos no que ao número de consumidores diz respeito, por posts no Facebook, mensagens no Whatsapp e fotos no Instagram e o indivíduo passou a estar no centro do processo de criação de conteúdos.

Se é verdade que a descentralização do conhecimento, que séculos antes era um bem exclusivo de uns quantos privilegiados, constituiu um avanço civilizacional, não é menos verdade que acarreta consigo perigos, que se nutrem da insuficiente literacia digital da generalidade da população. Os rumores, as notícias falsas, a manipulação de dados e informações brotam de inúmeras e anónimas fontes e inundam os nossos feeds de notícias a um passo alarmante. A isto acresce o surgimento (e evolução) dos deepfakes – que estão ainda longe de atingir o seu potencial máximo.

É neste contexto de erosão da confiança na autenticidade do que lemos, vemos ou ouvimos que se torna imperativo não apenas um investimento profundo e sistemático em soluções tecnológicas que possam mitigar estes riscos, mas também, e sobretudo, uma aposta na literacia digital, no sentido crítico e capacidade reflexiva (analógica e digital) dos mais jovens e dos menos jovens.

Repare-se a ironia da nossa situação: a humanidade está a empreender um esforço global de democratização do acesso à informação, que tem sido árduo, particularmente em países com regimes políticos receosos da liberdade de pensamento e partilha livre de opinião, e somos agora confrontados com o perigo do excesso de informação, ou melhor, de desinformação. Em suma, passamos de uma sociedade da informação a uma sociedade da desinformação, onde a confiança e credibilidade são irremediavelmente postas em causa por motivos políticos, ideológicos, religiosos ou simplesmente económicos.

No meio disto tudo, qual o papel do Direito? Necessário, mas difícil. Difícil por motivos extrínsecos e intrínsecos ao Direito. Os primeiros redundam no poder de facto (económico-social e, mediatamente, político) que as empresas tecnológicas, em regra norte-americanas, detêm.

Para pôr as coisas em perspetiva, note-se que as receitas combinadas das quatro Big Tech (Apple, Amazon, Alphabet e Facebook) ultrapassam os 900 mil milhões de dólares (mais de quatro vezes o PIB português). Os fatores intrínsecos, por seu turno, têm que ver com as idiossincrasias do Direito. Desde o ensino do Direito até à produção de leis, usam-se métodos, repetem-se princípios e reciclam-se normas substancialmente idênticas, em muitos casos, àquilo que se faz há décadas, por vezes séculos. Há exceções, certamente. Mas a tecnologia é res exotica para o jurista mediano.

Se o nosso Código de Processo Penal, entre outros, refere-se ainda a cartas, telegramas, telex e telecópias num tempo de mensagens instantâneas, então faz-se necessário alavancar uma profunda mudança de paradigma, não apenas no acesso ao conhecimento, mas no Direito também!

  • Pedro Miguel Freitas
  • Doutor em Ciências Jurídicas Públicas e docente da Escola do Porto da Faculdade de Direito da Universidade Católica Portuguesa

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