Novo presidente da ASFAC vê com bons olhos o aumento da poupança dos portugueses durante a pandemia e antecipa um crescimento do consumo na retoma. Mas avisa que é preciso que este seja responsável.
O crédito ao consumo poderá ser um “enorme impulsionador” da retoma da economia portuguesa, mas se for feito de forma responsável, alerta Duarte Gomes Pereira, novo presidente da direção da Associação de Instituições de Crédito Especializado (ASFAC). Em entrevista ao ECO, o líder da organização admite que, um ano depois da chegada da Covid-19 a Portugal, a concessão de crédito ao consumo continua abaixo de níveis pré-pandemia.
Na recuperação dos empréstimos, haverá um maior acompanhamento dos clientes afetados pela pandemia tanto pela área de trabalho (em especial turismo ou restauração), bem como para prevenção de dificuldades.
Duarte Gomes Pereira — que é também head of legal & compliance no Banco Credibom — assumiu no início de fevereiro a presidência da direção da ASFAC, substituindo António Menezes Rodrigues, que ocupava o lugar desde 1992. A nova direção é ainda composta por Leonor Santos (BNP Paribas Personal Finance), que assume a Vice-presidência, bem como as vogais Inês Medina (Wizink), Marília Araújo (Unicre) e Pedro Alves (Montepio Crédito). A entidade é composta por 25 são associadas e dois aderentes.
A ASFAC muda de liderança pela primeira vez em quase 30 anos. Apesar de já estar na direção, vê este momento como transição? Quais as prioridades da nova direção?
É uma transição que tem em conta que dois dos atuais membros já o eram na anterior direção. O anterior presidente da direção, António Menezes Rodrigues, deu durante quase 30 anos uma enorme contribuição para a ASFAC, mas é óbvio que terá de haver alguma mudança. O que queremos não é nenhuma mudança radical neste momento, mas um reforço da atividade da associação, da defesa dos associados e dos clientes e termos também, face à situação que vivemos, uma saída o mais limpa possível e uma aposta na responsabilidade social e literacia financeira.
Quais os principais desafios que têm sentido na pandemia?
Os desafios de reavaliação, de criar listas de clientes que trabalham em entidades de maior risco e de dar uma maior proteção a todas as entidades. Com clientes que trabalham em empresas das áreas do turismo, da restauração ou dos espetáculos, houve um maior cuidado e adaptação que no passado não existia. Não se fazia essa segmentação de risco face às atividades em que os clientes estavam inseridos. Mesmo na avaliação de risco de crédito, todos esses fatores são tidos em conta nos tempos que correm. Não eram no passado e vão ser no futuro também, porque sabemos que há áreas da economia que demorarão mais tempo a recuperar do que outras. Com essas teremos de ter um cuidado maior e vai haver uma adaptação. Já estamos a prever qual será o impacto em abril e outubro quando recomeçarem os pagamentos no âmbito das outras moratórias.
Uma pessoa que trabalhe na área da restauração ou turismo vai ter mais dificuldade em contrair um crédito ao consumo?
Não digo que tenha mais dificuldade em obter um crédito. Terá é de haver uma avaliação primeiro, do cumprimento das regras de solvabilidade que nos são impostas pelo Banco de Portugal como a taxa de esforço. E também o tipo de produto e o valor que é disponibilizado à pessoa terá de ser visto tendo em conta a capacidade de pagamento da pessoa e o risco de incumprimento.
Não digo que não vai ter acesso a crédito. Aliás, o crédito ao consumo vai ser um enorme impulsionador da retoma do país, porque o país vai retomar com emprego, que se vai criar com desenvolvimento da economia. E a economia vai-se desenvolver com consumo e sabemos que uma fatia considerável do consumo é feita com recurso ao crédito, portanto haverá aqui um braço dado entre o consumo e o crédito ao consumo para o desenvolvimento do país.
A economia vai-se desenvolver com consumo e sabemos que uma fatia considerável do consumo é feita com recurso ao crédito portanto haverá aqui um braço dado entre o consumo e o crédito ao consumo para o desenvolvimento do país.
Vai haver uma recuperação da concessão de crédito no pós-pandemia?
Eu sou um otimista por natureza, mas não quero fazer futurologia. Neste momento, as perspetivas pós-pandemia estão pautadas pela incerteza. Acredito que em vários setores a economia será fortemente relançada e vamos poder voltar a restabelecer os níveis que tínhamos pré-pandemia. Para outros será mais lento, é verdade. Visto da perspetiva dos clientes, o planeamento será a melhor ferramenta para estruturar os diversos setores da economia. As pessoas têm de ter o planeamento e gastar com conta, peso e medida.
Com a minha veia de otimista, digo que tenho plena fé de que a economia vai recuperar, embora com um forte recurso ao consumo, será essencial. Tem de haver também um acompanhamento muito próximo, por parte das instituições, dos clientes que estejam em risco de dificuldades, acho que passaremos a ter de ter muito mais esse acompanhamento. Não queremos que haja a ideia de que, quando sairmos da pandemia, vamos gastar, gastar e gastar. Tem de haver planeamento e tem de haver muito cuidado.
A ASFAC espera um grande número de pedidos de crédito para coisas que não se podia fazer no confinamento, como férias, por exemplo?
Não foi feita ainda uma perspetiva nesse sentido. É expectável que sim. É expectável também que exista essa necessidade. Neste momento, não vai ser um luxo, mas sim uma obrigação. As pessoas precisam de sair um bocadinho do seu “ninho”, porque estamos todos limitados a quatro paredes. Penso que é uma absoluta necessidade para a nossa sanidade mental sairmos, nem que seja para perto, mas vai haver essa necessidade. Agora, penso que é uma obrigação nossa que esse boom, que essas férias, se façam dentro do nosso país. Nós temos que ajudar a economia do nosso país, os hotéis, os restaurantes e tudo mais, devemos apostar no nosso país. Com recurso ao crédito ou não, não sei dizer.
O planeamento será a melhor ferramenta para estruturar os diversos setores da economia. As pessoas têm de ter o planeamento e gastar com conta, peso e medida.
A pandemia tem vindo a ter um forte impacto nas poupanças das famílias portuguesas, com os montantes relativos aos depósitos bancários das famílias a atingirem recordes. Como é que a ASFAC vê esta realidade? Qual o impacto para o setor?
Vemos com muito bons olhos. Somos a favor e sempre fomos impulsionadores de criação de hábitos de poupança. É essencial e pudemos testemunhar nesta situação, de um dia para o outro e de forma transversal, os problemas que foram criados para um grande número de portugueses por não haver poupanças. Não conseguiram fazer face às dificuldades criadas pela pandemia. Mas é tão importante criar hábitos de poupança, chamemos-lhes “pés-de-meia”, para situações transversais, que esperemos que não aconteçam novamente tão depressa, mas podem existir questões familiares que obriguem recorrer às poupanças, por isso é muito importante poupar.
Vendo da perspetiva das instituições de crédito, se não houver poupança, se não existirem fundos, também não haverá pagamento. É ótimo que tenha aumentado em cerca de 7% o nível de poupança das famílias. É necessário mantê-lo, tirar alguma coisa positiva, olhar para o “copo meio cheio” que a pandemia nos trouxe e pensar que, afinal, conseguimos poupar mais. Afinal, conseguimos manter algum equilíbrio nas nossas contas. Isso vai ser muito benéfico para todos os consumidores.
Penso que haverá aqui uma tendência de aquisição de automóveis, com recurso ao crédito, e talvez automóveis menos poluentes.
Houve outras mudanças nos hábitos dos consumidores. Especificamente sobre o crédito automóvel, é uma tendência temporária porque as pessoas precisam menos de usar carro e por isso não compram ou é uma tendência estrutural marcada pelo teletrabalho e pelas plataformas de carsharing?
As suas afirmações estão corretas e acho que poderão ter o seu impacto, mas existe também o outro lado. As pessoas, tendencialmente, vão preferir viajar em viaturas próprias ou apenas com o seu núcleo familiar, do que em transportes públicos. Também poderá dar-se essa tendência, as pessoas quererem usar mais o seu automóvel ao invés de usarem transportes públicos, o que levará, eventualmente, a uma maior troca de automóveis por veículos mais recentes – não obrigatoriamente novos, mas se calhar semi-novos.
Acredito que vá existir uma grande tendência na aposta em veículos verdes. Não estou a falar de bicicletas, mas em automóveis menos poluentes, na medida em que todos os players do mercado têm, de uma forma muito proeminente e positiva, fomentado o uso desse tipo de transportes, portanto penso que haverá aqui uma tendência de aquisição de automóveis, com recurso ao crédito, e talvez automóveis menos poluentes.
As instituições de crédito estão a entrar nessa tendência “verde”? Não só de carros, mas também das casas mais eficientes, por exemplo?
Não há, de uma forma generalizada, produtos exclusivamente com esse intuito, embora existam créditos para fins de energias renováveis, entre outros. Não existem ainda, mas já ouvi falar que serão criados créditos específicos – o chamado “crédito verde” – para a aquisição de bens de consumo, nomeadamente automóveis, menos poluentes, mais amigos do ambiente.
E haverá uma bonificação por serem “verdes”? Ou ainda não estamos nesse estado de maturidade do mercado?
Nos automóveis, não estamos ainda nesse estado de maturidade. Mas se olharmos, por exemplo, e já existe desde há muitos anos, para o crédito de energias renováveis, vemos que este tem uma TAEG muito menor face ao crédito em geral. Existe uma categoria específica para as energias renováveis. Quando estamos a falar de painéis solares, eólicas e outros, já existe uma categoria específica com taxas reduzidas para esse tipo de crédito.
Do lado do negócio das financeiras, como têm evoluído as comissões cobradas? Houve um aumento para fazer face à pandemia?
Não, de todo. Não só não houve aumento, como até houve redução por duas vias. Como sabemos que os clientes estão com dificuldades em pagar o capital e os juros, não os vamos onerar ainda mais com comissões. E depois porque houve, no início de janeiro, a entrada em vigor de regulamentação que obrigou a limitar e a eliminar algumas comissões.
Obviamente que as associadas da ASFAC cumpriram liminarmente com essas regras. Por outro lado, tanto nos regimes do PARI e do PERSI não é permitido apresentar comissões adicionais. No âmbito da moratória também não era. E obviamente ninguém iria permitir a um cliente ter uma moratória e, por outro lado, estar a onerá-lo com comissões adicionais. Não aconteceu em nenhuma associação da ASFAC nem vai acontecer.
Estamos a falar da limitação das comissões que o Parlamento aprovou? Quais é que vos afetam diretamente?
Nem mais. Foram principalmente duas. A comissão de processamento da prestação, que deixou de ser aplicada a novos contratos ou reduzida, porque a comissão é que permitia dar apenas quando a cobrança, o débito direto, é feito por entidades fora do âmbito do grupo em que a instituição está incluída.
A maior parte das associadas não faz uma cobrança direta, algumas estão incluídas em grupos bancários maiores que fazem essa cobrança, mas regra geral foi reduzida ou mesmo eliminada essa prestação. Depois era a prestação de emissão de declarações de dívida, para fins sociais, de uma forma geral, que foram também eliminadas. Por outro lado, era a emissão de distrates que, em geral, já não era cobrada, portanto também essa não teve grande impacto. As com maior impacto foram aquelas duas iniciais que eu referi.
Há bens de primeira necessidade que as pessoas só conseguem ter com recurso ao crédito ao consumo. Não poderemos ver, por exemplo, que um automóvel seja um bem de luxo.
O Orçamento do Estado previa um agravamento do imposto de selo nos créditos ao consumo, para travar o crédito ao consumo. Como veem esta medida?
O que está em causa é uma manutenção de um agravamento provisório que já vem de há quatro anos, não um agravamento adicional. Grave já está há muito tempo. Isto é um problema com o qual nós não vivemos bem, por duas razões. É que quem suporta o imposto de selo é o cliente final, não é porque nós imputemos por nossa vontade, mas as regras fiscais são essas. Quem paga é o cliente final. É algo que está a prejudicar o cliente final e que fará com que as TAEG [taxa anual de encargos efetiva global] subam, porque o imposto de selo é uma das componentes da TAEG.
Isto não é uma medida que possa vir a travar o crédito ao consumo. É uma medida que trará um aumento da receita fiscal, sim, mas não é por esta via, certamente, nem há nenhum interesse em travar o crédito ao consumo. O crédito concedido pelas instituições é um crédito responsável, sempre foi e sempre será e, como eu disse inicialmente, a nossa aposta passa pela atribuição de crédito responsável e que os nossos associados atribuam crédito dessa forma. E o crédito ao consumo será necessário, é necessário.
Há bens de primeira necessidade que as pessoas só conseguem ter com recurso ao crédito ao consumo. Não poderemos ver, por exemplo, que um automóvel seja um bem de luxo. Haverá, como é óbvio, um certo número de automóveis que se tornam um luxo. Mas um automóvel é, hoje em dia, em tempo de pandemia, uma absoluta necessidade. E muitas pessoas não poderão aceder a um automóvel sem o crédito ao consumo. Se estivermos a cortar o crédito ao consumo, estaremos a cortar necessidades primárias das pessoas. É preciso termos isso em conta.
Nós não aconselhamos, nem permitiremos, se soubermos, que haja esse efeito de bola de neve, de créditos para pagar créditos. Isso é a pior coisa que alguém pode fazer. É tirar um ónus para criar outro, eventualmente até maior.
Mas também sabemos que este género de limitações e até mesmo as regras do Banco de Portugal são muito direcionadas, também, para situações de pessoas que contraem um crédito ao consumo para pagarem outras prestações, e cria-se um efeito de “bola de neve”. Vem daí esta ideia sobre o crédito ao consumo.
É verdade. Mas há aqui um ponto: cabe-nos a nós, instituições e associações, ao Estado, às associações de proteção do consumidor, aos jornalistas, criar uma coisa que é muitíssimo importante e que temos todos, em conjunto, que apostar: na educação financeira, na literacia financeira. Nós não aconselhamos, nem permitiremos, se soubermos, que haja esse efeito de bola de neve, de créditos para pagar créditos. Isso é a pior coisa que alguém pode fazer. É tirar um ónus para criar outro, eventualmente até maior. Não é, de todo, aconselhável e nós não aconselhamos. Agora temos de apostar, todos nós, na nossa função social de educação financeira. E estou perfeitamente de acordo, nenhum de nós quer esse tipo de crédito, o crédito irresponsável, nem nos permitiremos.
Como está a evoluir o crédito malparado? Têm havido vendas de carteiras de crédito?
Não temos esses dados. Obviamente sabemos que a concessão de crédito reduziu, a qualidade e a taxa de incumprimento não conseguimos saber. Que saiba, não há para já essa tendência de venda de crédito do lado das associadas da ASFAC. Não lhe posso garantir, mas não tenho essa informação.
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“Não queremos que haja a ideia de que vamos gastar, gastar e gastar após a pandemia”, diz o presidente da ASFAC
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