“A quebra dos postos de trabalho é notória e não se irá mitigar nos próximos meses”, diz Rita Garcia Pereira

Rita Garcia Pereira é a advogada do mês da edição de abril da Advocatus. Na entrevista fez um balanço sobre o impacto da pandemia no setor laboral.

Rita Garcia Pereira, advogada especializada em direito do trabalho, esteve à conversa com a Advocatus e fez um balanço sobre o impacto da pandemia no setor laboral. Segundo a advogada, as ações de despedimento coletivo são das que mais demoram, sendo um dos pontos que o legislador se deve debruçar.

Apesar do crescente desencanto, quer com a própria classe profissional, quer com a forma como os advogados têm sido sucessivamente tratados pelos diversos Governos, se fosse hoje, mantinha a decisão de ingressar em direito.

Licenciou-se em direito em 1999. Se voltasse atrás no tempo, mantinha a decisão de ingressar em direito ou mudava de área?

Durante vinte anos, que é sensivelmente o tempo da minha cédula, disse, muitas vezes e em tom de brincadeira, que o meu pai me devia ter batido nas “mãozinhas” quando assinalei como único campo “Direito” na candidatura ao ensino superior. Não obstante um crescente desencanto, quer com a própria classe profissional, quer com a forma como temos sido sucessivamente tratados pelos diversos Governos, creio que mantinha a mesma decisão. Apesar de tudo o que tem acontecido, tenho tido a sorte de, por vezes e como dizia o saudoso Dr. Adelino da Palma Carlos, “tocar as estrelas” e essa felicidade, por enquanto, supera as adversidades da profissão.

Quem foi o verdadeiro responsável/influenciador por se tornar advogada?

A maior parte das pessoas tem a tendência de apontar o meu pai como o responsável. Contudo, para além da questão genética, não creio que tenha sido. A demonstração de tal é que somos quatro irmãos e apenas eu segui Direito. Já havia outros advogados na família e eu andei indecisa entre Serviço Social, porque aos 17 me tornei voluntária junto de pessoas com SIDA, Comunicação Social e Direito. O que acabou por ser determinante foi uma certa vontade de combater injustiças e Direito pareceu-me o caminho que melhor acautelava todas as vertentes que eu pensava poder vir a trilhar.

Tem sido docente em várias Universidades e Escolas. O que pesou para essa decisão de lecionar?

Uma vez mais, genética à parte, desde logo porque o meu avô paterno também era professor, a minha ligação à vida académica tem um início surreal. Tornei-me assistente por causa de um antigo namorado, a quem decidi ir dar aulas. Volvido o primeiro semestre, percebi que estaria para ficar e que, afinal, esta pessoa contribuíra, ainda que involuntariamente, para a descoberta de uma vocação que desconhecia. Comecei muito nova e com outra história magnífica: entrei na então Universidade Independente para realizar provas orais e acabei “praxada” porque ninguém acreditou que era docente. Fui fazer júri de orais toda pintalgada, perante o olhar de medo dos que me decidiram praxar. Felizmente para todos, não confundo departamentos.

Existem atualmente mais de 33 mil advogados. Considera que são demasiados face à dimensão do setor no país?

Acho, sinceramente, que não temos dados para efetuar esse cálculo de uma forma linear. Por um lado, em Portugal, pratica-se pouco a advocacia preventiva e esse é um campo que poderia originar muito trabalho. Depois, apesar da Lei de atos próprios, vemos todos os dias outros profissionais – que não advogados – desenvolverem concorrência, uns licitamente, até por via da intervenção legislativa, outros praticando crimes de procuradoria ilícita.

Dito de outra forma, para se chegar à conclusão de que existem advogados, primeiro ter-se-ia que resolver os problemas de concorrência que considero desleal e, por outro, explicar aos cidadãos a vantagem de obterem conselho antes de cometerem ilicitudes.

A demonstração de que não estávamos está na profusão legislativa que a pandemia Covid-19 acarretou, com inegáveis – e ainda não estimados – prejuízos do ponto de vista da segurança jurídica. A situação, contudo, não se restringe ao Código do Trabalho.

Rita Garcia Pereira

Advogada

Face à pandemia Covid-19, que impôs uma nova forma de trabalhar, considera que o Código de Trabalho estava preparado para esta nova realidade?

A demonstração de que não estávamos está na profusão legislativa que a pandemia Covid-19 acarretou, com inegáveis – e ainda não estimados – prejuízos do ponto de vista da segurança jurídica. A situação, contudo, não se restringe ao Código do Trabalho. Por exemplo, um qualquer advogado, perante a legislação dita de suspensão de prazos, não pode deixar de ter dúvidas sobre o seu exato alcance. Aliás, esse é um problema da atual legislação, em relação ao qual a nossa Ordem pouco ou nenhum papel significativo tem tido: a legislação é cada vez pior escrita e, atenta a irresponsabilidade funcional dos demais intervenientes judiciais, as suas principais vítimas são os advogados e os cidadãos.

Quais são os aspetos que o legislador nacional deverá debruçar-se com urgência, no âmbito laboral?

Do meu ponto vista, seria urgente regulamentar a Lei 73/2017, o que, apesar de muitas promessas, ainda não foi feito. Por outro lado, rever o regime jurídico dos despedimentos coletivos, seja quanto à obrigatoriedade de devolução da compensação para se impugnar, seja quanto à tramitação processual adjetiva. Neste momento, apesar de classificadas como urgentes, as ações de despedimento coletivos são das que apresentam maior tempo de pendência. Last but not the least, alterar o paradigma da noção de contrato de trabalho, por forma a abranger novos vínculos que escapam dos arquétipos tradicionais da subordinação jurídica.

Que tipos de litígios laborais mais emergiram com a pandemia?

Existem duas classes de litígios: de um lado, os que emergem de relações contratuais que se mantêm em vigor e que se prendem com o teletrabalho, rubricas salariais e horários de trabalho; por outro, aqueles que se prendem com lay-offs, agora eufemisticamente designados como “apoio ao emprego”, salários em atraso e/ou despedimentos de empresas que já não voltaram a reabrir ou que estão à beira da insolvência.

E que tipo de dúvidas têm os clientes?

Os meus clientes têm dúvidas a propósito de quase tudo, seja quanto à legalidade dos horários que lhes são impostos, seja quanto à licitude dos seus despedimentos. A par disso, as alterações ao regime de lay-off continuam a gerar muitas dúvidas, sendo que, como escrevi um livro sobre assédio moral, também tenho clientes com dúvidas sobre o que pode ou não assim considerado.

Só quem é advogado de barra pode perceber quando digo que esta profissão é de desgaste muito rápido.

Rita Garcia Pereira

Advogada

Qual será o impacto da pandemia no setor laboral?

Penso que o impacto da pandemia não pode, ainda, ser medido mas os resultados mais imediatos entram-nos todos os dias em casa, via comunicação social. Mesmo quando saímos de casa, a quantidade de lojas que se percebe que já não vão abrir é assustadora.

A quebra dos postos de trabalho é notória e, penso, não se irá mitigar nos próximos meses. A visão de cada um de nós, pese embora peque por ser redutora, permite-nos tirar a conclusão de que o impacto é fortíssimo e que a recuperação será feita, como tem sucedido nos últimos anos, através de vínculos precários e do sub-emprego.

Contudo, a pandemia também trouxe uma alteração do paradigma da forma como se prestava trabalho, apostando-se numa flexibilização de tempos e local de trabalho que, creio, virá para ficar, ainda que parcialmente. Esta modificação, por seu turno, se não corretamente apreendida pelo legislador, terá, a montante, consequências quanto à qualificação judicial desses mesmos vínculos e esta é uma questão para a qual teremos que estar preparados.

Que previsão faz para o setor laboral nos próximos meses?

Os próximos meses serão, penso que na perspetiva de todos os advogados de Laboral, de grande exigência e muito trabalho. A previsão que me parece ser a mais coerente é a de um aumento do grau de litigiosidade e de pendência nos tribunais, pese embora a morosidade e o preço das taxas de justiça impeçam muitos cidadãos de acederem à justiça.

Quais são as suas perspetivas profissionais para daqui a 20 anos?

Honestamente? Gostaria de estar a preparar a minha reforma, não fosse não acreditar muito na solvência da nossa Caixa dita de Previdência. Espero, sinceramente, seja na CPAS, seja na Segurança Social, gozar algum descanso que não tenho tido desde que abracei esta profissão, poder virar a minha atenção para outras coisas, como o voluntariado, e escrever mais artigos científicos. Só quem é advogado de barra pode perceber quando digo que esta profissão é de desgaste muito rápido.

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