O gestor do contrato na alteração ao Código dos Contratos Públicos

  • Luís M. Alves
  • 13 Maio 2021

A figura do gestor do contrato, para olhos menos treinados, pode ter ficado menos esotérica, mas, acreditamos, pode o legislador, sem essa intenção, ter aberto a porta para futuros litígios.

O Decreto N.º 133/XIV que “Aprova medidas especiais de contratação pública e altera o Código dos Contratos Públicos, aprovado em anexo ao Decreto-Lei n.º 18/2008, de 29 de janeiro, o Código de Processo nos Tribunais Administrativos, aprovado em anexo à Lei n.º 15/2002, de 22 de fevereiro, e o Decreto-Lei n.º 200/2008, de 9 de outubro”, tendo sido promulgado, aguarda publicação em Diário da República. O mesmo é resultado da necessidade de se introduzir alterações ao Decreto da Assembleia da República n.º 95/XIV, com o mesmo objetivo, que foi devolvido por Sua Excelência o Senhor Presidente da República. Seguidamente iremos atender às alterações do Código dos Contratos Públicos (doravante CCP), com as recentes alterações, no respeitante à figura do gestor do contrato.

O gestor do contrato foi introduzido no CCP, pelo Decreto-Lei n.º 111-B/2017, de 31 de agosto, pelo novel artigo 290.º-A, com o seguinte teor: “1 – O contraente público deve designar um gestor do contrato, com a função de acompanhar permanentemente a execução deste. 2 – Quando se trate de contratos com especiais características de complexidade técnica ou financeira ou de duração superior a três anos, e sem prejuízo das funções que sejam definidas por cada contraente público, o gestor deve elaborar indicadores de execução quantitativos e qualitativos adequados a cada tipo de contrato, que permitam, entre outros aspetos, medir os níveis de desempenho do cocontratante, a execução financeira, técnica e material do contrato. 3 – Caso o gestor detete desvios, defeitos ou outras anomalias na execução do contrato, deve comunicá-los de imediato ao órgão competente, propondo em relatório fundamentado as medidas corretivas que, em cada caso, se revelem adequadas. 4 – Ao gestor do contrato podem ser delegados poderes para a adoção das medidas a que se refere o número anterior, exceto em matéria de modificação e cessação do contrato”. Concomitantemente, foi acrescentado no artigo 96.º, n.º 1, a nova alínea i) que incluía como elemento obrigatório do contrato a “A identificação do gestor do contrato em nome da entidade adjudicante, nos termos do artigo 290.º-A;”.

A primeira novidade é a exceção da obrigatoriedade da utilização deste sujeito procedimental na execução dos contratos públicos, nos procedimentos de ajuste direto simplificado. Assim, está expressamente indicado no artigo 128.º, n.º 3, na nova redação: “O procedimento de ajuste direto regulado na presente secção está dispensado de quaisquer outras formalidades previstas no presente Código, incluindo as relativas à (…) designação do gestor do contrato previsto no artigo 290.º-A”. Pelo que, com a entrada em vigor do diploma legal modificativo do CCP, as entidades adjudicantes têm a faculdade de não indicação do gestor do contrato; parece-nos que se trata de uma mera dispensa, pelo que, querendo, podem as entidades adjudicantes continuar a nomear o gestor do contrato, ainda quando o contrato é precedido de um procedimento pré-contratual por ajuste direto simplificado.

A segunda novidade é a possibilidade da entidade adjudicante, para cada contrato, ter a discricionariedade de nomear mais que um gestor do contrato, ainda que não se trate da modificação da natureza deste órgão administrativo, de singular para coletivo, porquanto o legislador exige que, cada gestor do contrato tenha, previamente, definidas as funções a desenvolver e as responsabilidades daí decorrentes – assim resulta da nova redação do artigo 290.º, n.ºs 1 e 2: “1 – O contraente público deve designar um ou mais gestores do contrato, com a função de acompanhar permanentemente a execução deste. 2 – Caso o contraente público designe mais do que um gestor do contrato, deve definir de forma clara as funções e responsabilidades de cada um”.

A terceira novidade é a permissão estatuída nos termos do disposto no artigo 290.º-A, n.º 6: “Em casos excecionais, devidamente fundamentados, o contraente público pode contratualizar a gestão do contrato com um terceiro”. Com a devida vénia, a utilização da expressão “contraente público” não nos pode levar ao engano. Com efeito, o CCP designa por “entidade adjudicante” o ente que aprova o procedimento adjudicatório, e por “contraente público” o ente que celebra o contrato público. Ora, não será na fase da execução do contrato, mas anteriormente, ainda na fase prévia à celebração do contrato que poderá ser contratualizado o terceiro, para exercer as funções de gestor do contrato. E esta conclusão resulta, claramente, da necessidade de a minuta do contrato conter identificado o (s) gestor (es) do contrato. Assim, querendo a entidade adjudicante «externalizar» o gestor do contrato tem de, obviamente, antes da celebração do contrato, utilizando um procedimento pré-contratual previsto no CCP, proceder à adjudicação desse contrato. Evidentemente, resulta do explanado, que não concordamos que, no âmbito de um procedimento pré-contratual que não tenha por objeto exclusivo a adjudicação da prestação contratual de exercício de funções de gestor do contrato, se possa incluir como prestação contratual acessória a indicação do gestor, como veremos adiante. Na linha do mesmo raciocínio, também não nos parece que respeitará os princípios da contratação pública, maxime, o da imparcialidade, que a entidade adjudicante utiliza o mesmo procedimento para adjudicar prestações contratuais de “gestor do contrato” para múltiplos contratos. Não nos parece consubstanciar tal «impedimento», se a entidade adjudicante proceder a adjudicação por lotes, quando cada adjudicatário fique responsável por exercer essas funções apenas para um único contrato. A escolha do legislador pela imposição à entidade adjudicante da fundamentação da excecionalidade, no caso concreto, da utilização de terceiros para o exercício das funções de gestor do contrato, pode originar dúvidas; desde logo, é invocável a falta de recursos humanos pela entidade adjudicante, e sendo positiva a resposta, a que, em concreto, dever-se-á atender, para a definição no mapa de pessoal da entidade adjudicante, desta não previsão – devem as entidades adjudicantes, em futuros concursos de pessoal indicar na descrição de funções a exercer as inerentes à figura de gestor do contrato? Mas, não causará engulhos o facto da entidade adjudicante ter titulares de órgãos com competência para a emissão dos atos administrativos pré-contratuais e adjudicatórios, mas não deter no seu mapa de pessoal trabalhadores capazes para a fiscalização da execução dos contratos que celebra?

A quarta novidade é relativa à obrigatoriedade de, como impõe o artigo 290.º-A, n.º 7 “Antes do início de funções o gestor de contrato subscreve [r] a declaração de inexistência de conflitos de interesse, conforme modelo previsto no anexo XIII ao presente Código”. No Anexo XIII o legislador introduz um n.º 2 com o seguinte teor: “2 – Modelo previsto no n.º 7 do artigo 290.º-A: … (nome, número de documento de identificação e morada), na qualidade de … (dirigente, trabalhador, ou prestador de serviço atuando em nome do contraente público) da … (contraente público), tendo sido designado gestor do contrato relativo a … (objeto do contrato), declara não estar abrangido, na presente data, por quaisquer conflitos de interesses relacionados com o objeto do contrato ou com o cocontratante. Mais declara que se durante a execução do contrato tiver conhecimento da participação nele de outros operadores económicos, designadamente cessionários ou subcontratados, relativamente aos quais possa existir um conflito de interesses, disso dará imediato conhecimento ao contraente público, para efeitos de impedimento ou escusa, nos termos do disposto nos artigos 69.º a 76.º do Código do Procedimento Administrativo. … (local), … (data), … (assinatura)”. Não obstante a deficiente redação, constatamos que o artigo 1.º-A, n.º 4 do CCP define “conflitos de interesses” como: “qualquer situação em que o dirigente ou o trabalhador de uma entidade adjudicante ou de um prestador de serviços que age em nome da entidade adjudicante, que participe na preparação e na condução do procedimento de formação de contrato público ou que possa influenciar os resultados do mesmo, tem direta ou indiretamente um interesse financeiro, económico ou outro interesse pessoal suscetível de comprometer a sua imparcialidade e independência no contexto do referido procedimento”. Como observamos anteriormente, não nos parece que respeite este desiderato, quando o adjudicatário acumule as funções de execução de obras, serviços ou bens, com as funções de gestor de contrato, ou quando intervenha, simultaneamente, em diferentes contratos não integralmente executados, enquanto gestor de contrato.

A última grande novidade, é a clara afirmação desta figura na execução de contratos de obras públicas – artigo 344.º: “2 – Durante a execução do contrato, o dono da obra é representado pelo diretor de fiscalização da obra, em todos os aspetos relacionados com a obra, e pelo gestor do contrato, em todos os outros aspetos da execução do contrato, e o empreiteiro por um diretor de obra, salvo nas matérias em que, em virtude da lei ou de estipulação contratual, se estabeleça diferente mecanismo de representação. 3 – Sem prejuízo de outras limitações previstas no contrato, o diretor de fiscalização da obra e o gestor do contrato não têm poderes de representação do dono da obra em matéria de modificação, resolução ou revogação do contrato. 4 – Na falta de estipulação contratual, durante os períodos em que se encontrem ausentes ou impedidos, o diretor de fiscalização da obra, o gestor do contrato e o diretor de obra são substituídos pelas pessoas que os mesmos indicarem para esse efeito, desde que, no caso do diretor de fiscalização da obra, a designação do substituto seja aceite pelo dono da obra e comunicada ao empreiteiro.”. Não podemos concluir a priori que esta opção legislativa venha simplificar ou não a execução dos contratos, mas fica cristalino que as funções de gestor do contrato e de diretor de fiscalização de obra, não podem ser exercidas simultaneamente por idêntico titular. O que parece apontar esta solução é, digamos, a intenção do legislador, relativamente à execução da obra no terreno, limitar o gestor do contrato ao exercício de funções de «backoffice», e o diretor de fiscalização da obra, como «frontoffice». A opção vertida no número 4, acreditamos, não será de deixar ao alvedrio ao titular a escolha do seu «substituto», mas que no contrato fique indicado o ou os potenciais «suplentes».

A figura do gestor do contrato após a nova revisão do CCP, para olhos menos treinados, pode ter ficado menos esotérica, mas, acreditamos, pode o legislador, sem essa intenção, ter aberto a porta para futuros litígios contratuais.

  • Luís M. Alves
  • Consultor e membro do Conselho Executivo da Revista de Direito Administrativo

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