O economista Daniel Bessa alerta para onda de falências que se avizinha, sobretudo na hotelaria. Quanto ao PRR considera que o Governo está a usar o mecanismo para financiar projetos públicos.
O economista Daniel Bessa alerta que no Plano de Recuperação e Resiliência (PPR) o tecido empresarial português “foi muito pouco ouvido” e que o Governo está a usar o PRR para financiar projetos públicos, como a capacitação digital, que na sua ótica é uma obrigação do Estado. O ex-ministro da Economia conta, em entrevista ao ECO, que “não vê nada neste PRR que seja transformador”.
Alguns setores como a hotelaria, restauração e turismo foram brutalmente abalados pela pandemia da Covid-19. Daniel Bessa teme uma onda de falências nesses setores e considera que “existem empresas cujo óbito ainda não foi declarado”, sobretudo no setor da hotelaria. O economista não acredita que a linha de capitalização do PRR vá conseguir impedir uma vaga de insolvências.
Apesar do cenário de instabilidade económica defende que existiu uma “enorme evolução com esta crise em comparação com a anterior” e que as instituições europeias — como o Banco Central Europeu, a Comissão Europeia e o Conselho Europeu — “tiveram uma evolução enorme em relação aquilo que mostraram na crise anterior”. “Foram tomadas medidas de tranquilização e de preservação do tecido produtivo. Isso foi fantástico”, destaca.
Numa altura em que o PSD propõe o prolongamento das moratórias até final do ano para as empresas e particulares diretamente ligados aos setores mais afetados pela pandemia, o economista deixa o alerta: “Nenhum português pode estar descansado sobre o que virá no momento em que começarem a levantar as moratórias”.
No entanto, o ex-ministro da Economia defende que em algum momento será necessário regressar às regras básicas. “Está-se a acumular dívida e por mais justificada que seja não deixará de criar problemas e em algum momento isso terá de ser invertido”.
Muitos empresários queixam-se que o PRR está orientado para o Estado em vez de se focar na produtividade, no futuro do país e no setor privado. Concorda? Mesmo depois das mudanças que o Governo fez?
Há quem diga que mudou um pouco e que existe mais dinheiro para o setor privado. Fui uma das pessoas que o Presidente da República ouviu na questão do Programa de Recuperação e Resiliência (PRR) e vou partilhar os argumentos que defendi. Uma das componentes que o Plano de Recuperação e Resiliência tem (componente 16) é apontada como expoente do investimento privado.
Para as empresas 4.0 estão destinadas 650 milhões de euros. Onde vão ser gastos estes 650 milhões? Os primeiros 150 milhões vão ser gastos em capacitação digital das empresas e isso consiste em criar uma academia e em formar 800 mil pessoas. As empresas são beneficiárias deste montante, mas o que o Estado está a fazer aqui é usar o PRR para pagar o que é uma obrigação sua. Formar mais recursos humanos na área digital é uma obrigação do sistema do ensino e do sistema de formação profissional.
A segunda destas três linhas de investimento é a transição digital das empresas, que tem alocado 400 milhões de euros. Aqui estão abertas linhas de financiamento a que as empresas poderão concorrer, mas está dito que as principais beneficiárias serão as microempresas que serão qualificadas em e-commerce para se conseguirem internacionalizar. Há algo que não bate certo nisto: se fôssemos falar com as associações empresariais, as empresas (pequenas, médias e grandes) sobre como deviam ser gastos estes 650 milhões de euros, tenho a maior dúvida que os empresários portugueses quisessem dar a este montante essas utilizações, que se diz que são em seu benefício.
O essencial do investimento apoiado pelo PRR é público, mas mesmo no investimento privado as empresas foram muito pouco ouvidas e estão a financiar-se projetos públicos.
A terceira tranche são 100 milhões de euros para a transição digital das empresas. Vai financiar projetos públicos que têm como propósito criar o papel das empresas e diminuir a utilização das empresas. Dos 650 milhões de euros, 250 milhões são para beneficiar projetos públicos embora sejam atribuídos às empresas.
Não vejo nada neste PRR que seja transformador. Para transformação é preciso falar com as empresas.
Os projetos não vão ter a capacidade transformadora que um PRR deveria ter?
Quando criamos um plano de apoio à transformarão de uma economia é para financiar investimento empresarial em projetos empresariais que modifiquem as empresas (…) Vão ser injetados no mercado português 14, 15 ou 16 mil milhões de euros em compras. Sejam privadas ou públicas, quem vai beneficiar são as empresas privadas. Mas isso não muda a capacidade produtiva da resposta da economia portuguesa. Apenas cria uma oportunidade para usar capacidade que está instalada.
Como olha para o Banco de Fomento, que será responsável pelo instrumento de recapitalização das empresas?
Acho completamente necessário e toda a gente está de acordo. Um dos pontos mais fracos da economia portuguesa é a falta de capital próprio e com a pandemia, pior. Portanto, não sei se o Estado sozinho, com ou sem Banco de Fomento, conseguirá resolver um problema desses, mas tudo o que se fizer nesse sentido é bem-vindo. Se através do Banco de Fomento for injetado capital próprio nas empresas que melhore os seus rácios e depois seja oferecido, a longo prazo, uma possibilidade de recompra pelos privados, tirando o Estado dessa função, isso é bem-vindo. Todavia, a economia portuguesa é capaz de ser um barco grande demais para poder ser muito mudado por uma via dessas. É importante, é bem-vindo, mas acho que não tem capacidade para mudar a economia portuguesa.
A presidente do BCE alertou para a subida das insolvências. Teme uma vaga de falências nos próximos meses?
Alguém acredita que a linha de capitalização que o PRR vai ter poderá impedir uma vaga de falências? Não pode. No termo das moratórias, existem muitas empresas que não vão ser capazes de satisfazer os seus compromissos. Há empresas que estão vivas porque o óbito ainda não foi declarado.
A situação de partida já era de enorme fragilidade, em muitos casos. Um ano e meio depois, sem grande atividade — sobretudo a restauração e a hotelaria — não acredito que uma percentagem de dois dígitos (10% já está lá), provavelmente mais no caso destes setores, não venha a fechar. Seria um milagre. Muitas dessas empresas já estavam em dificuldade e um ano e meio depois paradas não têm capacidade de voltar.
Quando falo em dois dígitos estou a situar-me por baixo. Já vi previsões de encerramentos de uma percentagem superior a 10%, sobretudo na hotelaria. No caso da restauração, que é um segmento mais pequeno, acredito que muitos empresários encerrem uns espaços para abrir outros. Na restauração, área das microempresas, não acarreta tanta preocupação. A hotelaria é diferente. Um hotel não é uma coisa que se fecha aqui para abrir acolá.
Os bancos estão a relativizar o fim das moratórias em setembro. Concorda que o risco não é assim tão grande?
Não acredito que os bancos estejam a relativizar o problema das moratórias. Não passa pela cabeça de ninguém que fossem criar um clima de menor confiança. O discurso é de enorme confiança na solidez do sistema, na qualidade da relação entre o sistema bancário e o sistema político. Foi um bocadinho o país das maravilhas. Não podia ser de outro modo… Já tenho a idade suficiente para acreditar, mas não muito. Os bancos tomaram medidas, reforçaram o provisionamento em 2020, antecipando-se a perdas que ainda não ocorreram e fizeram muito bem.
Não sei se as perdas serão muito superiores aquilo que provisionaram. Nenhum português com o mínimo de maturidade e bom senso pode estar descansado sobre o que virá no momento em que começarem a ser levantadas as moratórias. E temos alguns sinais que não nos tranquilizam: agora de novo a Assembleia da República propõe-se a legislar para prolongar as moratórias. O que é isso? Enfim, a intenção pode ser a melhor, mas a partir de certo momento será perverso. Mais cedo ou mais tarde terá de vir à luz do dia.
Não antevê portanto uma catástrofe?
Também não vale a pena estar aqui a traçar cenários de catástrofe. Nesta crise, as instituições europeias, sobretudo o Banco Central Europeu, mas também a própria Comissão Europeia e o Conselho Europeu, tiveram uma evolução enorme em relação àquilo que nos tinham mostrado na crise anterior. Foram tomadas medidas de tranquilização e de preservação do tecido produtivo e isso foi fantástico. Agora, em algum momento teremos de regressar às regras básicas. Está-se a acumular dívida e por mais justificada que seja não deixará de criar problemas e em algum momento isso terá de ser invertido.
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Entrevista: “Há empresas cujo óbito ainda não foi declarado”, alerta Daniel Bessa
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