Carta Portuguesa de Direitos Humanos na Era Digital: Não Há Remédio sem Contra-indicações
A formação, aliada à cidadania e à justiça, também no contexto digital, tornar-nos-á a todos, e à sociedade, um pouco mais fortes.
Vou quase diariamente à pastelaria da minha rua tomar café. Numa visita recente percebi que a proprietária, a D.ª Rosa, estava um tanto agitada. A sempre impressionável senhora tinha estado a ler uma notícia no seu telemóvel que descrevia os efeitos supostamente nocivos do uso continuado do álcool gel. A D.ª Rosa, que limpava as mãos com gel dezenas de vezes ao dia, tinha ficado muito preocupada com o que lera.
E não era caso para menos. A notícia em causa relatava, através de citações de fonte não identificada, que tinha sido realizada uma investigação comprovando os perigos do uso do álcool gel e que as autoridades estavam a ponderar a suspensão da sua comercialização. Amplamente divulgada na web, a informação havia sido partilhada por milhares de utilizadores.
Ninguém pôs em causa a veracidade da informação. Se estava disponível na web e se tantos utilizadores a partilharam, haveria de ser verdade. Mas não era. Tratava-se de mais um caso do que agora se chama fake news, isto é, informação falsa sem qualquer apoio factual. Uma história criada por alguém com o intuito de enganar os leitores e outros destinatários similares. Os motivos podem ser os mais variados, mas nunca são inocentes, já se vê.
Até há pouco tempo, a disseminação desta desinformação, ou mesmo contra-informação, não se encontrava prevista em qualquer texto legal em Portugal. Mas, no passado dia 17 de maio, foi publicada a Carta Portuguesa de Direitos Humanos na Era Digital (Lei n.º 27/2021, de 17 de maio de 2021) que pretende regular um perímetro mínimo de direitos dos cidadãos no ambiente digital.
A Carta vem prever, com algum detalhe, o direito à proteção contra a desinformação, propondo-se sancionar quem produza ou divulgue conteúdos dessa natureza. É considerada desinformação qualquer texto falso ou enganador que seja divulgado com o fim de obter vantagens económicas ou de enganar deliberadamente o público e que seja suscetível de causar prejuízo público. Encontra-se igualmente previsto o direito de apresentação de queixa junto da Entidade Reguladora para a Comunicação Social (ERC) contra as pessoas ou entidades que pratiquem tais atos.
Numa disposição que tem dado origem a aceso debate público, prevê a lei um órgão específico junto do qual a defesa dos direitos nela previstos pode ser posta em prática. Embora alguns falem de uma nova censura, importa esperar pela regulação da lei antes de concluirmos se não estaremos perante um falso alarme. Nenhuma solução para a desinformação é isenta de perigos. Mas o perigo maior numa democracia liberal é o vazio legal, que, neste caso, nos conduziu à desinformação sistémica e cujas primeiras vítimas são os mais desfavorecidos e com menor preparação académica.
Apesar de ser uma questão de tempo até que a D.ª Rosa volte a ser vítima dos perigos do ambiente digital, a Carta estabelece que todos têm direito à educação para aquisição e desenvolvimento de competências digitais e que ao Estado compete a promoção e execução de programas que incentivem e facilitem o seu acesso.
O texto da Carta Portuguesa de Direitos Humanos na Era Digital não vai evitar que aconteçam situações semelhantes à vivida pela D.ª Rosa. Mas é, sem dúvida, um caminho para que todos possamos ser mais esclarecidos. Resta-nos aguardar pela concretização destas medidas e que a Carta seja mais que uma lei no papel. A formação, aliada à cidadania e à justiça, também no contexto digital, tornar-nos-á a todos, e à sociedade, um pouco mais fortes.
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