Joe Berardo, de investidor do regime a suspeito na justiça
Chegou a ser uma das figuras públicas mais prestigiadas do país e foi instrumental em lutas pelo poder. Coleciona derrotas desde que passou pela CPI à gestão da CGD, em 2019. Foi detido hoje pela PJ.
“Pessoalmente, não tenho dívidas”. A frase de Joe Berardo na comissão parlamentar de inquérito à gestão da Caixa Geral de Depósitos, em 2019, foi uma das marcas de uma audição que chocou o país em medida idêntica à recente passagem de Nuno Vasconcellos pelo Parlamento, quando disse que “quem tem de pagar é a Ongoing”. Que nada tem.
As similitudes são várias. Foram ambos “patrocinados” com avultados empréstimos para comprar ações e participar em disputas acionistas, Berardo no BCP e na Portugal Telecom, Vasconcellos só nesta última. Ambos sofreram pesadas perdas com a desvalorização brutal das ações deixando um buraco nas instituições financeiras credoras. Os dois arranjaram forma de evitar que a sua fortuna respondesse pelas dívidas.
Tirando o modus operandi daquelas operações que marcaram um período do poder em Portugal, dominado por Ricardo Salgado e José Sócrates, a história de Berardo é em tudo diferente. Nasceu a 4 de julho de 1944 no Funchal e emigrou para a África do Sul aos 19 anos, onde fez fortuna com negócios na extração mineira e de José passou a Joe. Foi também aí que se cruzou com o empresário Horácio Roque, de quem foi sócio na hotelaria na Madeira.
O regresso a Portugal acontece na segunda metade da década de 80, já como Comendador da Ordem do Infante D. Henrique, atribuída por Ramalho Eanes. Destaca-se como investidor na bolsa de Lisboa, então mais fulgurante e recheada de empresas, ganhando uma aura de guru que o levava a ser seguido pelos participantes mais pequenos do mercado.
Ascensão meteórica
A sua imagem pública ascendia. Ao sucesso nos investimentos bolsistas somava-se o prestígio como colecionador de arte. Em 2007, nascia o Museu Coleção Berardo, no Centro Cultural de Belém, reunindo um acervo de 862 obras, numa das maiores coleções de arte moderna e contemporânea da Europa. Pergaminhos que, nesse mesmo ano, o levaram a lançar uma OPA sobre a SAD do Benfica (que terminou sem sucesso) e a ser desafiado para entrar na guerra pelo controlo do maior banco privado português. O empresário chegou a protagonizar uma campanha da American Express, que na altura tinha uma parceria com o BCP.
Joe Berardo desempenharia um papel central na luta entre Paulo Teixeira Pinto e Jardim Gonçalves pelo poder no BCP, entrando na disputa ao lado do primeiro, depois de ser “armado” com um empréstimo de 350 milhões de euros cedido pela Caixa Geral de Depósitos, que lhe permitiu reforçar a posição no capital do banco. Paulo Teixeira Pinto acabaria por ceder o lugar de CEO a Carlos Santos Ferreira, que estava na Caixa quando foi concedido o financiamento, mas a crise atiraria as ações para o chão. Como os títulos serviam de garantia, o banco público ficou com um enorme buraco.
Foi também esta operação que o colocaria nos holofotes, depois da auditoria forense revelar a enorme dívida ao banco do Estado, levando-o a ser chamado à comissão parlamentar de inquérito. Perante os deputados, com o seu advogado de longa data, André Luiz Gomes, ao lado, Berardo recusaria ter participado num “assalto [à gestão] ao BCP” e disse que o investimento no banco foi “o maior desastre” da sua vida. Também disse que o seu apartamento de luxo em Lisboa está em nome da Fundação Berardo. E riu-se perante a possibilidade de deixar de mandar na associação que detém a coleção de arte, depois de parte das quotas terem sido dadas como garantia aos bancos. Tinha, entretanto, diluído a participação daqueles através de aumentos de capital.
À afirmação de um deputado de que o incumprimento no crédito estava a custar uma pipa de massa a muito gente, respondeu “a mim não”. A indignação do país político e publicado foi geral.
Coleção de derrotas
Talvez Joe Berardo hoje olhe para a audição daquele 12 de maio de 2019 também como um desastre. Deixou em frangalhos a sua imagem pública e serviu para atiçar ações legais dos bancos credores e o interesse das autoridades. A sua prestação no Parlamento levaria à abertura de um processo que podia levar à retirada das comendas – em 2004 tinha recebido também a Grâ-Cruz da Ordem do Infante, atribuída por Jorge Sampaio – mas acabou por levar apenas uma repreensão. Pode ainda acontecer, se for condenado.
Desde então tem colecionado derrotas. Novo Banco, BCP e Caixa – aos quais deve 962 mil milhões – uniram esforços para conseguirem o arresto das obras de arte. Segundo disse o diretor de recuperação de créditos a empresas do Novo Banco na recente comissão de inquérito, as instituições estão otimistas sobre a possibilidade de reverter a manobra do empresário na Associação Coleção Berardo. Se forem bem-sucedidos, o empresário terá mesmo de entregar o espólio. As primeiras decisões judiciais vão nesse sentido.
Em dezembro de 2019, perdeu os recursos contra o arresto de dois prédios em Lisboa e uma quinta na Madeira, pedido pela CGD. Há pouco mais de dois meses deu entrada uma ação de execução do Novo Banco contra a Metalgest e a IPSS, no valor de 3,5 milhões.
Já este ano, o madeirense viu a Fundação Berardo perder o estatuto de utilidade pública, depois da Inspeção-Geral de Finanças ter identificado irregularidades na gestão. Segundo avançou o Público, a auditoria ao período entre 2007 e 2017 concluiu que a fundação prosseguiu fins distintos dos estatutários, sendo usada quase apenas para operações financeiras. Incumpriu quer as obrigações das IPSS, quer a Lei-Quadro das Fundações. O relatório dava ainda conta de uma forte degradação das contas, que passaram de 102 milhões de euros positivos em 2007 para prejuízos de 575 milhões em 2017.
Além da coleção, Berardo tem o negócio dos vinhos, onde entrou em 1998, com a compra do controlo da Bacalhôa Vinhos de Portugal, em 1998, e que detém também as marcas Aliança e Quinta do Carmo, e o Buddha Eden no Bombarral. Chegou a ter 32% da Sogrape, mas vendeu em 2012 à família Guedes, depois de anos de relação tensa entre os acionistas. Parece ser, pelo menos por agora, o único património de relevo ainda a salvo dos credores.
Dois novos museus
Berardo não ficou parado. Continuou a dar expressão à sua paixão pela arte e a ligar a ela o seu nome, com a abertura do Museu Berardo Estremoz, dedicado ao Azulejo e, há pouco de dois meses, do Berardo – Museu Arte Deco (B-MAD) em Lisboa.
A contas com os bancos, Berardo enfrenta agora o ajuste de contas com a justiça, mais de uma década depois de, entre 2006 e 2009, ter contratado quatro financiamentos com a CGD, no valor de 439 milhões de euros, que são o foco da operação da Polícia Judiciária lançada esta terça-feira. Ele e o advogado, André Luiz Gomes, foram detidos no âmbito de uma investigação pela suspeita da prática dos crimes de administração danosa, burla qualificada, fraude fiscal e branqueamento.
O que dirá agora o homem que um dia se descreveu, numa entrevista ao Jornal de Negócios em 2007, como o “portuguese dream”?
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