Escalões de IRS sobem para número recorde
O Governo está a avaliar a possibilidade de desdobrar os escalões de IRS, especificamente o terceiro e o sexto. A concretizar-se, Portugal passaria a ter um número nunca antes atingido de escalões.
O Governo está a fazer um “trabalho muito sério” para avaliar a possibilidade de o próximo Orçamento do Estado trazer um novo desdobramento dos escalões do IRS, medida que, a concretizar-se, poderá levar Portugal a atingir um número recorde de taxas de imposto, indicam os fiscalistas ouvidos pelo ECO. Esses especialistas salientam, no entanto, que é preciso perceber de que modo será “compensada” a perda de receita implicada neste desdobramento, temendo, por exemplo, um agravamento de outros impostos.
Em entrevista, esta segunda-feira, à TVI, o primeiro-ministro, António Costa, lembrou que o Governo anterior fez um primeiro desdobramento dos escalões do IRS e salientou que estava prevista uma nova medida nesse sentido, que acabou por ser adiada por causa da pandemia.
Agora que a crise sanitária parece ter atingido uma nova fase de maior tranquilidade (à boleia, sobretudo, dos avanços na vacinação) e que a economia portuguesa começa a recuperar, o Executivo está a “fazer um trabalho muito sério para identificar a possibilidade de, no próximo Orçamento do Estado” incluir, então, um novo desdobramento dos escalões, especificamente no terceiro (que cobre rendimentos coletáveis dos 10.732 euros aos 20.322 euros) e no sexto (que abrange os rendimentos coletáveis dos 36.967 euros aos 80.882 euros).
“Há dois escalões, sobretudo, que têm de ser mexidos. É o terceiro escalão, que cobre rendimentos entre os 10.000 e os 20.000 euros, o que é uma enorme diferença. E, depois, é o sexto escalão, que [cobre] rendimentos que vão de 36.000 euros a 80.000 euros. É uma diferença gigantesca“, disse António Costa, não adiantando mais detalhes sobre as mudanças que poderão ser feitas a este nível.
Portugal conta hoje com sete escalões de IRS. Ora, se o desdobramento sinalizado se traduzir em mais dois níveis nessa tabela, o país ficará, então, com nove taxas de imposto, número que não só é superior ao que estava em vigor quando o Governo de Passos Coelho decidir reduzir os escalões de oito para cinco, como é mesmo um recorde.
“O IRS começou por ter cinco escalões. O máximo até hoje são oito, nunca tivemos nove“, confirma João Espanha, da Espanha e Associados, em declarações ao ECO. Também Rogério Fernandes Ferreira, da RFF e Associados, e João Pedroso de Melo, da Telles, explicam que o máximo registado até agora corresponde a oito escalões de IRS.
O histórico legislativo do Código do IRS corrobora essas indicações. A versão da legislação de dezembro de 2005, por exemplo, refere que havia seis escalões de IRS. Já em 2006, esse número passou para sete. E em 2010 para oito. Poucos anos depois, com Vítor Gaspar nas Finanças, o número de taxas de imposto passou de oito para cinco, e só em 2018 foi possível recuperar dois desses níveis (para sete), já com António Costa na liderança do Executivo.
A medida agora sinalizada pelo Governo significa, assim, que deverá ser possível ultrapassar o número de escalões de IRS que havia antes do período da crise financeira, o que não implica necessariamente uma reversão das medidas de austeridade impostas neste campo, uma vez que é também preciso considerar as taxas aplicadas aos diferentes níveis de rendimento coletável. “Estamos ainda longe da fiscalidade pré troika“, diz ao ECO Luís Leon, da Deloitte, considerando que mais do que olhar para o número de escalões, é preciso olhar para as taxas.
Os fiscalistas ouvidos pelo ECO avisam, além disso, que é preciso perceber de que forma será “compensada” a perda de receita fiscal implicada nesta medida
Rogério Fernandes Ferreira, por exemplo, afirma que a avaliação desta mudança fiscal depende das suas consequências não apenas em termos de alívio efetivo para os contribuintes, mas também em termos de receita. “Como contribuinte, é [uma medida] agradável. Só que os impostos que não pagamos hoje, pagamos no futuro, mantendo-se a dívida“, diz o fiscalista, confessando que, neste momento, seria mais apologista de estabilidade fiscal.
Já António Schwalbach, da Serra Lopes, Cortes Martins & Associados, salienta que a “grande questão” é perceber onde o “Governo se propõe a recolher a receita perdida”, temendo que tal aconteça através dos impostos indiretos, como o IVA. Isto já que, neste momento, tendo o país atravessado uma dura crise pandémica, o Estado não “pode dar-se ao luxo de perder receita”. O especialista alerta, por isso, para o perigo deste desdobramento servir apenas para criar a aparência de uma oferta à classe média, mas na verdade passar por “dar com uma mão e tirar com a outra“.
Luís Leon salienta, por sua vez, que, nesta fase, não é possível avaliar ainda o impacto desta medida, já que não se conhece nem o desenho dos novos escalões, nem as novas taxas. “Em 2018, o valor máximo de IRS que foi reduzido não chegou a 300 euros por ano”, lembra o fiscalista, atirando também que é preciso ver como é que este alívio vai ser “compensado”, se por via do aumento de outro imposto, se através da redução da despesa.
Novo desdobramento “dará uns tostões a muita gente”
João Espanha é mais crítico em relação à medida sinalizada pelo primeiro-ministro, esta segunda-feira. Ao ECO, o fiscalista explica que o terceiro e o sexto escalões do IRS concentram, respetivamente, cerca de 70% e 20% dos agregados que pagam IRS, “mas a receita daí advém é relativamente escassa”. Daí que o desdobramento em causa poderá “não ter grande impacto na receita” e corre o risco de ser sinónimo de dar “uns tostões a muita gente, que se deslumbrará com tamanha generosidade”. “É politicamente vantajoso, mas não terá grande impacto na vida das pessoas”, salienta. “Esta medida agora anunciada parece-me ser pouco mais do que um detalhe eleitoralista, pelo que, a verificar-se, pouco ou nada mudará“, acrescenta.
O fiscalista frisa, por outro lado, que o Estado age, em relação à receita fiscal, “como um viciado em heroína” e defende, em alternativa, que se se começasse a reverter as medidas de Vítor Gaspar — como o regresso das deduções personalizantes sem limite global, a eliminação das sobretaxas e a reposição dos escalões anteriores à crise financeira — “seria um bom começo“. “Enquanto o Estado sugar a economia e as famílias com um IRS irrespirável e uma miríade de taxas e taxinhas, não se poupa, não se investe e nem se gasta, pelo que com esta receita nunca sairemos da cepa torta”, diz João Espanha.
Na mesma linha, Samuel Fernandes de Almeida, da Vieira de Almeida, acredita que o desdobramento em causa é “uma medida política compreensível, pois estamos a falar da classe média”. “Em ano de eleições, é normal os Governos adotarem estas medidas, sendo que a carga fiscal atingiu em 2020 novos máximos, apesar da pandemia”, salienta.
Já questionado sobre como esta medida deveria ser desenhada, o fiscalista atira: “Em termos de política fiscal, deveríamos ter como objetivo equiparar as nossas taxas às do nosso vizinho e principal parceiro económico, a Espanha. Uma economia pequena e aberta como a nossa não se pode dar ao luxo de ser pouco competitiva”.
É importante explicar que o primeiro-ministro já tinha admitido que o Orçamento do Estado para 2022 poderá trazer mudanças nos escalões do IRS, até porque tal medida consta do programa do Governo.
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