Uber: como deixámos de levantar o braço para chamar um transporte

  • Juliana Nogueira Santos
  • 10 Outubro 2016

De São Francisco para o mundo, a startup dos carros pretos alterou irreversivelmente o nosso dia a dia. O que aconteceu nestes seis anos?

Todo o progresso humano surge de um problema que tem de ser resolvido: foi o que aconteceu com o fogo, quando o escuro da noite e a carne crua já não agradavam, com a alavanca, quando a força de braços começou a ser insuficiente, e também com a Uber. Numa noite fria de 2008, Travis Kalanick e Garrett Camp, amigos de longa data, estavam em Paris para marcarem presença numa conferência de tecnologia e não conseguiam apanhar um táxi. Já tinham comentado de como era penosa essa tarefa na sua cidade, São Francisco, mas foi a quase 9000 km de casa que se deu a epifania.

Quero carregar num botão e arranjar boleia. E que seja uma boleia com classe.

Garrett Camp

Nesta altura já não eram novatos nas andanças do empreendedorismo e das startups, tendo cada um fundado a sua empresa e, consequentemente, arrecadado milhões com as vendas a grandes companhias. Kalanick criou a Red Swoosh, uma ferramenta de partilha P2P de ficheiros, comprada em 2007 pela Akamai Technologies por 19 milhões de dólares. Camp lucrou 75 milhões de dólares com a venda da sua StumbleUpon, uma plataforma de bookmarking social, à gigante eBay, exatamente no mesmo ano. O dinheiro não era, portanto, um obstáculo.

“O motorista pessoal de todos”

Kalanick estabeleceu-se em Paris mas Camp regressou a São Francisco com uma ideia fixa: iam criar um serviço de mobilidade urbana inovador que aliasse o luxo à tecnologia. Com um investimento inicial de 200 mil dólares, comprou o domínio ubercab.com e começou a desenvolver um protótipo da aplicação – nesta altura, ainda em segundo plano, visto que continuava a ocupar o cargo de presidente executivo na StumbleUpon.

O ponto de partida era básico e consensual: aluguer de limusinas para viagens curtas dentro de cidade, pedido com apenas um clique na aplicação, sem mediadores nem transações. O mais difícil seria definir o modelo de negócio: Camp queria comprar alguns carros de gama alta, contratar motoristas e alugar uma garagem para funcionar como entreposto, enquanto Kalanick não concordava com tal investimento, querendo apenas fazer um outsourcing de todos esses serviços.

Começo atribulado

Em julho de 2010 seria lançado a UberCab, uma empresa de transportes sem qualquer carro próprio, motorista empregado ou garagem. O negócio começou a expandir-se através do passa palavra: os amigos foram contando a outros amigos até que, poucos dias depois — e porque no início era necessária uma palavra-passe para aceder à aplicação –, a caixa de e-mail estava cheia de pedidos de acesso.

Mas, com a exposição também começaram a surgir os problemas, nomeadamente com as empresas de táxis. A Agência Municipal de Transportes da cidade de São Francisco direcionou uma ordem de cessação de atividade à empresa, invocando, entre outros motivos, a utilização do termo “cab” – “táxi” em português. A empresa viu-se obrigada a deixar cair o sufixo, adotando o nome que utiliza hoje. Sempre foi do conhecimento dos criadores que estavam a entrar em terrenos movediços: Travis Kalanick numa exposição na Y Combinator Startup School em 2012, afirmou que “Quanto mais antiga a indústria e quanto mais protegida pelo governo, pela corrupção ou pelos dois, mais transtornos vão existir”.

Escalada até ao sucesso

O ano de 2011 foi crucial para que a startup dos carros pretos se assumisse como uma líder do mercado. Através de duas rondas de financiamento, levantou cerca de 48 milhões de dólares – a primeira, destinada à otimização do produto e da criação de uma carteira de cliente, veio da Benchmark Capital e permitiu a expansão a seis cidades, entre as quais Nova Iorque e Paris, e a segunda, destinada ao desenvolvimento das vendas e da publicidade, chegou de Jeff Bezos, da Menlo Ventures e da Goldman Sachs.

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Em 2012, a empresa alargou a oferta com o Uber X, um serviço mais acessível que utiliza carros de gama média em vez dos Mercedes, Audi e BMW que caracterizavam a frota. Desde então, somaram-se investimentos e lançamentos de novos produtos como o UberRUSH, um serviço de entregas para empresas, em abril de 2014, o UberPOOL, lançado em agosto de 2014 e que permite a partilha do mesmo carro e, mais recentemente, em abril de 2015, o UberEATS, outro serviço de entregas, mas desta vez de comida.

Hoje, a Uber está avaliada em mais de 60 mil milhões de dólares, ocupando o primeiro lugar da lista da dos “unicórnios” mais bem-sucedidos — um unicórnio é uma startup que rapidamente atinge uma avaliação de mais de mil milhões de dólares, que herda a mística e a raridade do animal mitológico. Está presente em cerca de 470 cidades em 70 países. No entanto, segundo os dados divulgados pela empresa, a primeira metade deste ano ficou marcada por um prejuízo de cerca de 1,2 mil milhões de dólares. O motivo avançado foi o pagamento de subsídios aos motoristas.

A sequela em Portugal

A entrada no nosso país foi feita através da capital, em julho de 2014. Contudo, e como se vinha a notar em todas as cidades em que a empresa investia, as novidades não agradaram aos transportadores já estabelecidos, como é o caso dos táxis. As notícias de confrontos e agressões a motoristas do serviço por parte de taxistas não tardaram e a providência cautelar da Antral seguiu-se rapidamente.

A Associação Nacional dos Transportadores Rodoviários em Automóveis Ligeiros exigia a proibição da atividade da tecnológica, bem como o encerramento do site e da aplicação móvel, mas a atividade não parou visto que o documento incidia sobre a Uber Technologies inc, a empresa que funciona nos Estados Unidos, e não sobre a empresa que funciona em Portugal. Este processo avançou para um processo-crime contra o representante nacional da marca.

Quanto mais antiga a indústria e quanto mais protegida é pelo governo, pela corrupção ou pelos dois, mais transtornos vão existir.

Travis Kalanick

Somaram-se as situações — umas mais insólitas que outras –, desde manifestações a ameaças (e concretizações) de “porrada“, até arremessos de ovos aos carros em serviço. Indiferente às acusações, a empresa não parou o processo de expansão, chegando ao Porto em dezembro do mesmo ano — ainda antes da providência cautelar — e, ao Algarve em junho deste ano.

No passado mês de setembro, a atividade da Uber e de outras plataformas semelhantes foi regularizada, tendo-lhes sido atribuído o estatuto de transportes em veículos descaracterizados.

Das iniciativas levadas a cabo em território nacional destaca-se o UberGreen, uma frota de carros 100% elétricos que esteve à experiência nas cidades de Lisboa e Porto durante três meses, e a oferta dos serviços de transporte no dia das eleições presidenciais deste ano.

Críticas da concorrência

Uma das críticas mais apontadas ao serviço, quer pelos clientes quer pelos seus concorrentes, é à sua tarifa dinâmica. A Uber cobra uma tarifa gradual dependente da procura, ou seja, em dias de muita procura, como por exemplo no Santos Populares ou na Passagem de Ano, é acrescentado um valor variável à tarifa básica. Uma startup israelita concorrente, a Gett, entrou já numa guerra aberta com a líder de mercado, garantindo a inexistência desta tarifa e “um melhor pagamento que a Uber”.

O caso mais intenso de confrontos entre empresas do ramo verificou-se na China, onde a Didi Chuxing mantém 87% da quota de mercado, segundo números divulgados pela empresa. A tecnológica de São Francisco entrou no mercado chinês em julho de 2014 e tentou ganhar uma parte dessa quota, não tendo tido muito sucesso. Kalanick afirmou, numa declaração publicada no blogue da Uber, que “ter sucesso é ouvir a cabeça e seguir o coração”, tendo resolvido a disputa através da fusão das duas empresas. A Uber China desaparece assim, depois de dois anos em funcionamento.

Em Portugal, a Uber conta apenas com a pressão da Cabify, a empresa espanhola que, além de não cobrar tarifa dinâmica, oferece um sistema exclusivo de marcação de transporte.

Após seis anos de funcionamento e, em jeito de balanço, a história da Uber tem-se escrito e reescrito com diversas canetas: uma empresa que traz consigo uma onda de contestação e agitação conseguiu expandir-se mundialmente contra a vontade de muitos, tendo sempre em conta muitos outros – os seus clientes. Contudo, ela não acaba por aqui – o mercado está a fervilhar e o empreendedorismo já corre nas veias das novas gerações. Ainda vai escorrer muita tinta, garantimos.

 

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