Pode a Europa sobreviver se Moscovo fechar a torneira ao gás russo?

Para já, as respostas dividem-se entre um rotundo "não" e um "talvez" com muitas reticências. Bruxelas já negoceia com países como o Qatar, Argélia e Egito o fornecimento de gás natural liquefeito.

No caso de um cenário de guerra iminente, em que Moscovo decida cortar o abastecimento de gás ao países europeus como retaliação face às sanções já impostas por parte dos EUA, da UE e outras potências mundiais, pode a Europa sobreviver a este inverno sem gás russo? E durante quanto tempo?

Para já, as respostas dividem-se entre um rotundo “não” e um “talvez”, mas com muitas reticências. Bruxelas já pediu aos Estados-membros para tentarem diversificar ao máximo os seus fornecedores de gás natural e já está mesmo no terreno, face a esta crise que se adensa a cada minuto que passa, a negociar com países como o Qatar, Argélia e Egito o fornecimento de gás natural liquefeito (GNL) — que chega aos portos europeus por navio e não por gasoduto — para aliviar possíveis cortes no fornecimento russo.

“Não é possível substituir todo o gás russo por GNL”, avisou desde logo Thierry Bros, professor da Sciences Po Paris, em declarações à agência France-Presse (AFP). Quanto ao gás, abastecido por gasodutos, “vem da Noruega, Argélia e Azerbaijão, mas esses países já não têm capacidade de produção adicional”, indicou.

“Em termos de volumes [de GNL], os três gigantes, atualmente, são o Qatar, a Austrália e os Estados Unidos”, indicou por seu lado Vincent Demoury, delegado-geral do Grupo Internacional de Importadores de Gás Natural Liquefeito (GIIGNL), acrescentando: “São sobretudo estes três países que teriam flexibilidade para produzir mais, ou redirecionar para a Europa volumes tradicionalmente direcionados para outros mercados”.

Mas há um problema: o GNL obriga a um processo de regaseificação e as capacidades europeias para este processo já estão quase esgotadas. A opção teria sempre de passar pela construção de novos terminais de GNL, como já está a acontecer na Alemanha, por exemplo.

Do lado da Rússia, ainda não há ameaças explícitas de cortes no gás que é exportado para a Europa, mas o Kremlin já avisou que as sanções já impostas — como a decisão pela Alemanha de não certificar o gasoduto Nordstream 2, pronto desde o início do ano e que permitiria duplicar os fluxos de gás para o centro europeu — vão sair caras e os preços do gás vão subir em flecha.

Que países europeus mais sofreriam sem o gás russo?

De acordo com um estudo do think tank Bruegel, com sede em Bruxelas, “no curto prazo e olhando para a UE como um bloco, é até possível que os 27 consigam sobreviver a um corte dramático no abastecimento do gás russo, no entanto o cenário complica-se tendo em conta as situações económicas, técnicas e políticas individuais de cada país”.

Os países que mais sofreriam sem o gás russo seriam a Alemanha, Hungria, Itália e os Países Baixos.

Em Portugal, o Governo já deu conta que a dependência face a Moscovo é baixa, apesar de em 2021 a Rússia ter sido o terceiro maior fornecedor de gás do país. Em 2022 ainda não chegou gás russo a Portugal.

O estudo conclui assim que a Europa tem dois grandes desafios pela frente: encontrar alternativas ao gás russo e, ao mesmo tempo, reduzir o consumo doméstico e também a procura. Nesse cenário, cabe aos governos estabelecer desde já um plano de emergência para definir prioridades para o uso do gás, tais como aquecimento ou para produção de eletricidade.

Quanto às alternativas, o estudo do Bruegel reconhece que “a Península Ibérica é um hub para terminais de importação de Gás Natural Liquefeito (gás natural em estado líquido que foi arrefecido para facilitar a segurança de armazenamento e transporte em navios) proveniente, por exemplo, dos Estados Unidos, que até já aumentaram a sua produção para exportar mais para a Europa.

A ideia agrada a Portugal. Na opinião do secretário de Estado da Energia, João Galamba, uma das portas de entrada do gás americano na Europa podia ser o Porto de Sines. “No entanto há ainda a limitação da interligação ente Espanha e França. O gasoduto nos Pirinéus existe mas tem pouca capacidade. O papel dos portos da Península Ibérica tem de ser repensado, apesar da resistência de França”, rematou Galamba, relembrando que “a melhor defesa contra a dependência do gás natural é investir mais nas renováveis”.

A região pode importar 40 terawatts-hora (TWh) por mês, mas só pode consumir apenas 30 terawatts-hora. O desafio é transportar o excesso de gás para o resto da Europa, já que os gasodutos existentes permitem uma transferência máxima de 5 terawatts-hora por mês.

Além disso, o sistema de gasodutos da Europa central e do leste foi originalmente concebido para levar as importações do leste aos consumidores finais. Apesar do investimento em capacidade de fluxo reverso e da construção de novos gasodutos, se muito gás viesse do oeste da Europa, os gargalos dos gasodutos poderiam impedir entregas suficientes para a Europa central e oriental.

Bruxelas quer alternativas ao gás russo, mas países dizem não

Outras geografias alternativas podem incluir importações da Noruega e do norte de África com volumes adicionais de GNL. No entanto, Noruega já avisou que está a entregar à UE o máximo possível da gás, com a Argélia a usar o mesmo argumento. O estudo conclui que a produção doméstica de gás da UE é muito limitada, tanto nos Países Baixos como em outros lugares.

Atualmente, Washington e Bruxelas estão a negociar com o Qatar o fornecimento de gás para a Europa. O país é um dos maiores produtores mundiais de GNL: escoa três quartos da sua produção para os países asiáticos e fornece cerca de 5% do gás para a Europa.

No entanto, o ministro da Energia do Qatar, Saad al-Kaabi, já veio dizer que é “impossível” substituir a curto prazo o volume de gás que a Rússia fornece à Europa, tendo em conta que representa até 40% das importações do bloco da UE.

Por seu lado, o homólogo russo Nikolai Shulginov, garantiu que Moscovo está empenhado em honrar contratos com países europeus e em continuar a exportar gás natural “sem interrupção” para países como a Turquia, França e Alemanha. Ambos participam na 6.ª Cimeira do Fórum dos Países Exportadores de Gás (FPEG), que está a decorrer em Doha, capital do Qatar.

Os 11 membros do Fórum — Qatar, Rússia, Irão, Argélia, Bolívia, Egito, Guiné Equatorial, Líbia, Nigéria, Trindade e Tobago e Venezuela, e mais sete países associados — representam 70% das atuais reservas de gás e 51% das exportações mundiais de gás natural liquefeito e reuniram-se de emergência devido à crescente preocupação mundial com a segurança energética, aumentada pela tensão entre a Nato e a Rússia em relação à crise na Ucrânia.

Os Estados Unidos são neste momento os maiores produtores de gás natural do mundo (e a caminho de se tornarem os principais exportadores de GNL em 2022), mas não integram o Fórum.

E com a Europa à procura de alternativas ao gás russo, os países exportadores de gás do Fórum também já deixaram bem claro que a sua capacidade para de repente aumentar os fornecimentos e substituir a Rússia é limitada. Isto porque estas nações já têm os seus próprios compradores de gás e só poderiam desviar cerca de 10 a 15% dos volumes de que dispõem, o que não chega aos 40% assegurados por Moscovo.

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