Um choque fiscal e uma reforma no processo de licenciamento são os dois eixos apontados por Hugos Santos-Ferreira, presidente da APPII, como fatores cruciais para resolver a crise na habitação.
Há vários anos que as rendas e os preços das casas em Portugal não param de aumentar. Os salários das famílias, apesar de também terem crescido, subiram a um ritmo mais moderado. No mercado, esta discrepância gerou uma profunda crise no acesso à habitação com os especialistas do setor a reclamar medidas urgentes e capazes de contornar este ambiente hostil.
Hugo Santos-Ferreira, presidente da Associação Portuguesa de Promotores e Investidores Imobiliários (APPII) acredita que a chave para a crise na habitação está do lado da oferta e não da procura, como o Governo tem procurado atuar nos últimos anos.
“A resposta não é mexer do lado da procura. Já todos vimos que isso não resolve. É termos mais oferta”, refere o líder da APPII em entrevista ao ECO, sublinhando que para isso é crucial promover um choque fiscal no plano da construção e também no licenciamento, para que, desta forma, os preços das casas atinjam preços que os portugueses consigam suportar.
Desde 2019, os preços das casas aumentaram, em termos reais, 22,3%, segundo dados do FMI. Na Europa nenhum país superou Portugal e no mundo apenas Israel teve uma valorização acima de Portugal. Além disso, nos primeiros seis meses de 2023, praticamente todos os países do mundo registaram uma contração dos preços, ao contrário do que sucedeu em Portugal. Há uma bolha no mercado?
Esses números não surpreendem. Relatam aquilo que já há vários anos dizemos, que é uma grande falta de oferta para uma crescente procura, tanto internacional mas também nacional. Isso provoca um enorme desequilíbrio entre a procura e a oferta, que resulta em preços altos. Este é o primeiro problema da habitação.
Quais são os outros?
O segundo problema é uma crise de acesso à habitação que afeta as pessoas que estão fora do mercado, que não têm casa, nomeadamente os jovens (que são uma das uma das fatias da população mais afetadas) ou aquelas pessoas que, por alguma razão tiveram de deixar a sua casa, comprada ou arrendada, e têm de voltar a entrar no mercado, têm de voltar a comprar casa. Essas pessoas não conseguem encontrar resposta no mercado.
O terceiro problema da crise habitacional prendesse com a valorização do imobiliário face a uma não valorização dos salários. Ou seja, estamos a falar de valorização do património imobiliário — o que diria que até é positivo para os proprietários porque ficam com um património mais elevado porque a sua casa valorizou –, mas essa valorização do imobiliário não encontra paralelo numa subida dos salários, e portanto estamos a falar de salários baixos. O último ponto da crise na habitação é um problema de mobilidade. Segundo a OCDE, Portugal é um dos países que tem a maior crise de mobilidade habitacional na Europa.
O problema da crise habitacional não é uma só uma, mas várias com vista a resolver, desde logo, o problema da baixa oferta e da cada vez menor oferta para uma crescente procura.
O que significa isso?
A mobilidade habitacional é a transição de casa para casa. A OCDE diz que a maior crise na mobilidade habitacional das pessoas deve-se a uma bruta carga fiscal que em Portugal incide sobre a habitação, nomeadamente sobre a transição de casa. Estamos a falar de IMT, estamos a falar de imposto de selo e estamos a falar de um IVA a uma taxa máxima [23%] não dedutível na construção que é paga pelos promotores imobiliários e que, por isso, será repercutida no preço final da casa, quando o imóvel é posto à venda.
A crise no acesso à habitação por parte das famílias prende-se justamente por esta dinâmica dos preços subirem a um ritmo mais rápido do que os salários. Isto acontece pelas forças de mercado ou porque as políticas públicas adotadas só têm contribuído para agravar esta situação?
Pelos dois motivos. E por isso é que a resposta para o problema da crise habitacional não é uma só uma, mas várias com vista a resolver. Desde logo, o problema da baixa oferta e da cada vez menor oferta para uma crescente procura.
Os proprietários não têm a confiança necessária na lei do arrendamento nacional e nos governos que nos têm governado nos últimos anos para preferirem ter a sua casa abandonada, devoluta, sem gerar rendimento, a colocá-la a dar rendimento.
Como é que isso se consegue?
Segundo dados da Administração Tributária, em 2022 face a 2021, o parque habitacional só aumentou 0,8%. Mais. Construímos menos 15% de casas nesta década do que na década anterior. Uma das formas de aumentar a oferta é aproveitar o vasto património que está devoluto, quer seja público quer seja privado, e coloca-lo à disposição do arrendamento.
E por que é que isso não acontece?
Temos de nos perguntar porque há cerca de 350 mil proprietários em Portugal que preferem ter as suas casas vazias do que ter as suas casas a gerar rendimento. Não se entende. Isso acontece porque os proprietários não têm a confiança necessária na lei do arrendamento e nos governos dos últimos anos. Preferem ter a sua casa abandonada, devoluta, sem gerar rendimento, a colocá-la a dar rendimento. Os portugueses têm de saber que a lei do arrendamento em Portugal é alterada mais de uma vez por ano. Cada vez que sai um Orçamento de Estado no nosso país, a lei do arrendamento é alterada. É uma regra. Geralmente em detrimento dos proprietários.
Os últimos anos foram muito evidentes a desresponsabilizar os inquilinos que não pagam. E um inquilino que não paga está a prejudicar o seu proprietário que, por outro lado, tem de continuar a pagar a AIMI, IMI, os seus impostos, todas as suas contribuições, mas não recebe a sua renda.
Mas defende uma lei do arrendamento a favor dos proprietários?
Não. Defendo uma lei do arrendamento equilibrada, porque os inquilinos têm de ser protegidos, mas os proprietários também têm de ser protegidos. Se os proprietários e os inquilinos não são protegidos de forma equitativa e se sentem desfavorecidos, desprotegidos, não há mercado de arrendamento. Aliás, basta ver no pacote “Mais Habitação” apresentado no ano passado, com o ataque à propriedade que foi feito com ameaças de obras coercivas de arrendamentos passados. Qual é o proprietário que tem um fogo, uma casa devoluta, e que quando ouve que o Estado vem buscar a sua casa, que o vai obrigar a fazer obras, que o vai castigar, que vai cobrar mais IMI, fica com vontade e segurança em arrendar a casa? Nenhum. E se a vontade já era nula, passa a negativa.
Não encontra medidas positivas promovidas pelo Governo no ano passado para combater a crise na habitação?
Foram tomadas algumas medidas em 2023. O problema é que os preços subiram e a oferta continuou a decrescer. No ano passado, a estratégia política foi resolver o problema da crise habitacional mexendo na procura: por um lado limitando as rendas a 2%, acabando com os vistos gold e acabando com os residentes habituais. A pergunta que faço é: tivemos mais casas no mercado de arrendamento e casas mais baratas? Não.
Quando veio o anúncio do travão das rendas a 2%, quando as rendas podiam ter sido atualizadas de acordo com a inflação — do ponto de vista legal, a 6% 7 % –, os proprietários ficaram ainda com mais medo, com mais receio de pôr as casas no mercado de arrendamento e o mercado ressentiu-se com menos 30% de casas no mercado do arrendamento. E mesmo aqueles que ousaram colocar as suas casas no mercado de arrendamento incrementaram as rendas em mais 30%, já para fazer face aos custos. Mas o Governo percebeu que esse não era o caminho e no Orçamento do Estado para 2024 voltou atrás. No entanto, acabámos com os residentes não habituais, que ainda por cima até traziam mais economia, mais liquidez, mais riqueza a um país pobre como é o nosso, a troco de termos mais habitação, mais barata. Nada disso aconteceu.
Mas os dados mais recentes do INE referentes ao terceiro trimestre de 2023 já revelam um abrandamento da subida dos preços.
Não teve que ver diretamente com isso. O abrandamento dos preços teve que ver, por um lado, ainda com a inflação, as taxas de juro, uma crise à escala internacional, não só económica mas a nível geopolítico, temos uma crise política interna e, portanto, tudo isso gera uma incerteza muito grande e um efeito suspensivo para não haver um decréscimo, mas um abrandamento na subida. Mas mesmo que tenha havido um decréscimo da procura, que é insignificante, esse abrandamento ao nível da procura não foi o suficiente para fazer face àquilo que é a falta da oferta. A resposta não é mexer do lado da procura. Já todos vimos que isso não resolve. É termos mais oferta.
Temos uma carga fiscal absolutamente excessiva também na questão do arrendamento, desde logo com o IVA na construção que não é dedutível.
Como se consegue ter mais casas no mercado?
Se conseguirmos trazer mais confiança no arrendamento vamos fazer com que 350 mil proprietários, segundo dados do Censos, tenham confiança para colocar as suas casas no mercado de arrendamento. Havendo mais casas no arrendamento, os preços vão começar a descer.
E como se consegue dar mais confiança aos proprietários?
Por um lado, dando mais estabilidade à lei do arrendamento, criando uma lei que seja estável, previsível e, acima de tudo, equilibrada.
Considera por isso que a lei está em desequilíbrio?
Sim. Quando vemos que caminhamos para a despenalização ou a desresponsabilização civil de um inquilino incumpridor, um inquilino que não paga, então começamos a ter uma lei em desequilíbrio. Os últimos anos foram muito evidentes a desresponsabilizar os inquilinos que não pagam. E um inquilino que não paga está a prejudicar o seu proprietário que, por outro lado, tem de continuar a pagar o AIMI, o IMI, os seus impostos, todas as suas contribuições, mas não recebe a sua renda. Isto é uma lei em desequilíbrio.
Temos também de nos perguntar porque Madrid, por exemplo, aqui ao lado, tem 25 mil casas de construção nova para arrendamento, tem seis mil casas para habitação acessível para arrendamento em construção e nós temos zero casas em construção para arrendamento, quer seja acessível ou não.
Por que é que isso acontece?
Temos uma carga fiscal absolutamente excessiva também na questão do arrendamento, desde logo com o IVA na construção que não é dedutível. Por isso é que talvez a grande ‘pedra de toque’ disto tudo seja resolver a carga fiscal e muito resolver este IVA que não é dedutível.
Um espanhol quando compra uma casa nova para habitação própria permanente paga 10% de imposto. Um português, com o modelo que nós temos hoje, paga 23% de IVA que se pagou na construção e que vai direitinho para o preço da casa, paga IMT, que pode chegar a 7%, paga 0,8% de imposto de selo na aquisição. Só aqui já estamos a falar em mais 30%.
O problema resolvia-se tornando o IVA dedutível ou é preciso baixá-lo?
As duas soluções são viáveis. Hipótese número um: reduzir a taxa do IVA na construção para 6%.
Como já acontece na construção para efeitos de reabilitação.
A habitação que todos consideramos, e bem, um bem essencial, é o único bem essencial em Portugal que ainda não teve direito a uma taxa reduzida de IVA. Pergunto, porquê? Porque é que andam os nossos governantes a falar em habitação e ainda ninguém teve a coragem política — acho que é falta de coragem política — para baixar o IVA de 23% para 6% na casa dos portugueses? Esta diferença faria com que os portugueses passassem, por um lado, a pagar 6% de IVA em vez de 23% na compra da sua habitação. A outra hipótese, e aí coloca-se a solução espanhola que é a que encontramos maioritariamente no resto da Europa, que passa por tornar o IVA dedutível.
Como é que isso beneficiaria o consumidor final?
Um cidadão espanhol quando compra a sua casa, compra-a com IVA a uma taxa intermédia de 10%. Só que na venda de uma casa nova para um consumidor final, a casa não tem IMT nem imposto de selo. Não tem impostos sobre transações. Assim, o construtor que pagou os tais 10% de imposto na construção vai permitir deduzir no final esse IVA. Ou seja, um espanhol quando compra uma casa nova para habitação própria permanente paga 10% de imposto. Um português, com o modelo que temos hoje, paga 23% de IVA que se pagou na construção e que vai direitinho para o preço da casa, paga IMT, que pode chegar a 7%, paga 0,8% de imposto de selo na aquisição. Só aqui já estamos a falar em mais 30%. Além disto tudo, Portugal teve a brilhante ideia de acrescentar um duplo IMI, o famoso AIMI, também chamado de “imposto Mortágua”, que incide só sobre o IMI de terrenos para habitação e casas para habitação. Resultado: os espanhóis pagam 10% de imposto. Aqui pagamos facilmente entre 40% a 50% de imposto.
Na Área Metropolitana de Lisboa e do Porto, por cada ano de atraso de licenciamento a mais (para lá de um ano) preso numa Câmara Municipal, são mais 500 euros por metro quadrado por ano desse atraso.
Mas o problema da habitação é apenas uma questão tributária ou há mais questões que importa resolver, como por exemplo a situação do licenciamento?
Devia haver um choque fiscal muito grande e dar confiança aos proprietários e aos investidores para colocarem mais casas, quer à venda quer no arredamento. O terceiro ponto é o licenciamento. Um projeto de licenciamento nas áreas metropolitanas de Lisboa e Porto pode demorar facilmente entre três a cinco anos. Três a cinco anos, um projeto numa Câmara Municipal preso no licenciamento.
Apesar de todas essas condicionantes há investidores interessados em investir em Portugal?
Há interesse nacional e internacional para construir, em Portugal, muitos milhares de fogos para habitação para os portugueses, quer para arrendamento quer para venda. Só que temos um estrangulador. Temos um processo de licenciamento que faz com que, passados três, cinco anos, só passe a conta-gotas um processo, dois processos, três processos. Isto faz com que a habitação se torne num diamante, num bem escasso. Como a habitação se tornou num diamante, num bem escasso, é um bem caríssimo, muito por conta deste efeito de conta-gotas, de estrangulador.
Quanto custa esse efeito estrangulador no mercado?
Na área metropolitana de Lisboa e do Porto, por cada ano de atraso de licenciamento a mais (para lá de um ano) preso numa Câmara Municipal, são mais 500 euros por metro quadrado por ano desse atraso. Uma casa, um T2 que esteja preso no licenciamento, por exemplo, em Lisboa, há três anos, portanto, para lá do primeiro ano, são mais 100 mil euros que essa casa custa. Portanto, são mais 100 mil euros que os portugueses pagam por causa de um problema de licenciamento.
Se me dissessem para escolher duas estratégias para resolver o problema da habitação diria choque fiscal e licenciamento. Julgo que estes são os dois grandes obstáculos à colocação de mais casas no mercado que os portugueses podem pagar.
Que avaliação faz do Simplex do licenciamento urbanístico?
Faço uma interpretação muito positiva. Continuar como estávamos era impossível, não era admissível, não dava mais. Nisto aplaudimos o Governo. A ministra da Habitação andou bem porque levantou a dianteira na resolução deste problema, ao incluir como estratégico da Carta Nacional da Habitação o problema do licenciamento que originou o Simplex urbanístico. Longe de ser perfeito e unânime, o Simplex urbanístico é um documento consensual entre todas as ordens profissionais. Mas sendo uma reforma, vai implicar mexidas, vai implicar adequação de processo de sedimentos no privado, no público, nas Câmaras. Tem ainda muitas lacunas e algumas incongruências que vão ser preciso resolver. É um bom início, mas desenganem-se aqueles que dizem que o problema de licenciamento está resolvido.
Mas estamos no bom caminho?
Fazia todo o sentido. Estamos no bom caminho. Mas falta, por exemplo, trazermos o código da construção que basicamente visa congregar, harmonizar e rever duas mil leis, com muitas a datarem de 1950. Hoje em dia, para se construir uma casa tem de se obedecer a dois mil diplomas, a 308 regulamentos municipais. Isto é inviável, encarece as casas.
Estamos a pouco tempo de eleições legislativas, com os partidos a fazerem muitas promessas. Quando olha para as propostas dos partidos encontra resposta ao problema da crise na habitação?
Se me dissessem para escolher duas estratégias para resolver o problema da habitação diria choque fiscal e licenciamento. Julgo que estes são os dois grandes obstáculos à colocação de mais casas no mercado que os portugueses podem pagar.
Com essas duas medidas teríamos garantidamente mais investimento e mais casas no mercado?
Na nossa associação de promotores e investidores imobiliários, todos, sem exceção, querem construir casas para os portugueses. Só não o fazem porque não é possível.
Como assim?
Um processo de construção de um edifício é uma conta de somar custos. Hoje não consigo comprar em Lisboa nenhum terreno para habitação a menos de mil euros o metro quadrado. É impossível. A isso tenho de juntar a contratação de uma empresa de construção e pagar a construção. Com a guerra, com a pandemia, com o aumento do custo da matéria-prima dos materiais, com a falta de mão de obra e com os problemas a nível internacional, o preço da construção galopou no nosso país, na Europa, no mundo. Hoje não se consegue construir para a classe média, em números redondos, por menos de 1.500 euros o metro quadrado. Significa que já vamos em 2.500 euros o metro quadrado e ainda me falta pôr o custo do licenciamento, dos arquitetos, das taxas urbanísticas. Considerando que um cidadão da classe média não consegue, com acesso a financiamento, pagar mais de 2.500 a 3 mil euros o metro quadrado, não é possível construir para a classe média.
Qual é o exemplo que Portugal deveria seguir para mudar esta realidade?
Madrid é um exemplo. Está a aumentar o seu perímetro urbano para trazer mais casas ao mercado em todos os escalões, em todos os segmentos, em todas as tipologias, também para a habitação acessível. E com isso os preços estão a suavizar em todos os segmentos, em todos os escalões, tanto para os ricos como para os pobres. Para a classe média, para todas as classes. Este é o caminho que devemos seguir.
Assine o ECO Premium
No momento em que a informação é mais importante do que nunca, apoie o jornalismo independente e rigoroso.
De que forma? Assine o ECO Premium e tenha acesso a notícias exclusivas, à opinião que conta, às reportagens e especiais que mostram o outro lado da história.
Esta assinatura é uma forma de apoiar o ECO e os seus jornalistas. A nossa contrapartida é o jornalismo independente, rigoroso e credível.
Comentários ({{ total }})
“A habitação é o único bem essencial que ainda não teve direito a uma taxa reduzida de IVA”
{{ noCommentsLabel }}