“Animosidade” é válida, mas protestos dos ativistas são “perturbadores”

Francisco Ferreira diz que Zero tem "beneficiado" do alerta deixado por ativistas. Sobre os ataques a ministros diz que "Governo merece algum protesto" mas ressalva que aquelas ações "são excessivas".

Aos olhos do presidente da associação ambientalista Zero, as ações de ativismo climático dos últimos meses, embora sejam sinais encorajadores de uma geração que luta pelo futuro do planeta, levantam questões quanto à sua eficácia. “Algumas ações estão muito bem conseguidas. Outras são excessivas e perturbadoras“, admite Francisco Ferreira em entrevista ao ECO/Capital Verde.

Para o ativista, que partilha também a vocação de docente e investigador, as exigências dos ativistas são “demasiado ambiciosas” e, em alguns casos, não têm em consideração os impactos ambientais, sociais e económicos — três pilares que considera fundamentais para um desenvolvimento sustentável.

Mas também lança farpas ao Governo. Desde a fraca aposta nos transportes públicos, à falta de valorização do hidrogénio que será produzido em Portugal e exportado para o resto da Europa através do gasoduto ibérico com ligações a França, o H2MED. Para Francisco Ferreira, além de considerar a obra “desnecessária” e um gasto “supérfluo”, sublinha que a prioridade é que o hidrogénio seja aproveitado a nível nacional para as indústrias e até para descarbonizar a economia.

“Precisamos de hidrogénio para fazer a nossa descarbonização e não a descarbonização dos outros”, frisa.

Está à frente da Zero há oito anos e desde então tem conduzido um movimento de transição em nome do clima. No último ano, temos assistido por todo o mundo a um aumento de movimentos e manifestações pró clima, também liderado pelos jovens. Um lado mais radical do movimento. Como encara o aumento deste tipo de protestos em Portugal, reflexo do que acontece lá fora?

Quer em Portugal, quer no resto do mundo, os jovens estão a aperceber-se que, a cada dia que passa, temos maiores consequências do aquecimento global e das alterações climáticas, e não vemos suficiente ação política que conduza em sentido inverso. A nossa dependência dos combustíveis fósseis em Portugal continua na ordem dos 70%. Continuamos a ter uma ligação íntima àquilo que são as fontes poluidoras e, apesar de se falar cada vez mais de sustentabilidade por parte da indústria, por parte dos governos, por parte das autarquias, há uma enorme diferença entre a afirmação e a ação. E, portanto, há realmente uma justificação para esta maior frustração em relação àquilo que são consequências que se vão agravar de acordo com o conhecimento científico que temos em relação às alterações climáticas.

Os protestos, em muitos casos, têm sido excessivos, criam barreiras e conflitos entre muitas pessoas que estão sensíveis ao tema das alterações climáticas, mas que quando identificam alguns tipos de violência, acabam por se querer distanciar desse tipo de atuação. Temo-nos focado muito na forma. Mais do que no conteúdo, porque esse, até diria, que na maior parte dos casos, é justificado.

Têm sido feitas exigências, mas não têm sido apresentadas propostas para concretizar essas exigências…

As propostas também existem, mas são demasiado ambiciosas para aquilo que é desejável.

Por exemplo, termos renováveis a 100% no mix elétrico em 2025? É fazível?

Temos perto de 70% de eletricidade de fontes renováveis. [Para chegar ao 100%], teríamos de ultrapassar toda a legislação e mais alguma para pôr painéis fotovoltaicos e eólicas, e num ano e pouco. Isso, pura e simplesmente, não é possível. Seria, do ponto de vista social e ambiental nefasto. E, além disso, não temos os materiais. Precisamos de indústria e, infelizmente, continuamos a depender muito da China. Temos problemas estruturais a resolver dentro das próprias renováveis.

Quando vemos essa meta [100% de renováveis no mix elétrico] ou a meta da neutralidade climática [até 2025]… o Painel Intergovernamental para as Alterações Climáticas (IPCC), não diz em lado nenhum que temos de atingir a neutralidade climática em 2030 para conseguirmos limitar o aquecimento em 1,5 graus Celsius. E, aliás, as associações de ambiente à escala europeia consideram que deveríamos atingir a neutralidade climática, em 2040. É esse o nosso objetivo. Portugal tem a meta para 2050 e está a pensar 2045. O desejável era chegar a 2040, mas 2030, mais uma vez…

É um prazo apertado para fazer uma transformação?

Não é possível… É certo que estamos a ver os sistemas todos a necessitarem de uma ação muito maior. Mas seria dramático pararmos o funcionamento da sociedade face aos custos que isso teria. Vimos na pandemia que é possível parar, ou andar lá muito perto da paragem, mas depois percebemos os prejuízos que isso causou à escala mundial para retomar o funcionamento da sociedade e da economia.

Mas também temos de perceber que muitos dos alvos dos protestos estão certíssimos. Quando olhamos para uma petrolífera, o caso da Galp em Portugal, que começa a ter mais investimentos na parte das renováveis, mas dois terços desses investimentos continuam a ser na extração e na refinação; quando o próprio Governo não tem políticas públicas para contrariar aquilo que é um aumento grande das emissões — principalmente no caso do transporte rodoviário que está na ordem dos 6% em comparação com o período de pré-pandemia — também o Governo aqui merece algum protesto. Talvez não na forma como tenha surgido, mas o que é facto é que há falhas no Governo. Por exemplo, nos transportes públicos, na ferrovia. Como é que, depois de tantos anos, continuamos a ter de usar o avião para ligar 320 quilómetros entre Lisboa e Porto?

Muitos dos protestos que têm sido feitos têm um fundamento que gostaríamos que tivesse mais visibilidade. As metas propostas são ambiciosas demais para conseguirem ser concretizadas. Não apenas do ponto de vista ambiental, mas do ponto de vista social e económico.

Os protestos, em muitos casos, têm sido excessivos. Temo-nos focado muito na forma. Mais do que no conteúdo, porque esse até diria que, na maior parte dos casos, é justificado.

Francisco Ferreira, presidente da associação ambientalista Zero

Não teme que estas ações acabem por afastar as pessoas da causa?

Esse é um dos problemas. Algumas das ações, pela perturbação que causaram, podem ser contraproducentes. Felizmente, temos um movimento ambientalista que tem muitas formas de agir. Desde processos em tribunal, ler o Orçamento do Estado, falar com os governantes, fazer a sensibilização… Todos temos o mesmo objetivo. Mas temos de fomentar a união e acima de tudo, ganhar as pessoas para este alerta e para esta necessidade de aceleração, e não tanto causar essa divisão. Como digo, algumas ações estão muito bem conseguidas. Outras são excessivas e perturbadoras.

Estas ações acrescentam alguma coisa àquilo que a Zero defende?

Acho que sim. A Zero tem beneficiado, do ponto de vista do alerta. Temos uma forma diferente de atuação. Objetivamente, cabe a esses movimentos fazerem a avaliação do que tem sentido fazer ou não. Não temos de interferir com a conduta de cada um. Precisamos realmente de uma população em Portugal que perceba esta emergência climática.

Francisco Ferreira, presidente da associação ZERO, em entrevista ao ECO/Capital Verde - 27OUT23
Francisco Ferreira, presidente da associação ZERO, em entrevista ao ECO/Capital Verde Hugo Amaral/ECO

E ao contrário? Que reivindicações fazem sentido até 2030 e que estão a ser deixadas para trás?

Em 2030, deveríamos estar muito próximos de 100% de eletricidade renovável — mas sem exageros. Um dos problemas que não têm sentido é, por exemplo, termos uma potência enorme de energia solar e de energia eólica por instalar em áreas por vezes sensíveis do ponto de vista da paisagem, do ponto de vista da ocupação do solo…

Está a referir-se, nomeadamente, ao abate de árvores?

Por exemplo, o abate de florestas. O que deve ser garantido é que a energia renovável é usada de forma mais eficiente e com objetivos que sejam melhores para o país. Por exemplo, produzir hidrogénio verde de fontes renováveis para exportar é uma ideia desastrosa do ponto de vista da eficiência. O hidrogénio deve ser utilizado para substituir combustíveis fósseis quando não há outras alternativas ou para criar combustíveis para determinados segmentos, como são, por exemplo, os veículos pesados ou combustíveis para a navegação ou para a aviação. Portanto, não devo procurar ter uma necessidade de termos energia renovável muito maior para justificar um projeto que é puramente geopolítico.

Fala do “corredor de energia verde”, H2MED, o gasoduto ibérico para o transporte de gases renováveis vai ligar a Península Ibérica a França, até ao resto da Europa?

Sim. É um gasto supérfluo, desnecessário. Precisamos de hidrogénio para fazer a nossa descarbonização e não a descarbonização dos outros. Precisamos de indústria que utilize esse hidrogénio, precisamos de criar valor para o uso desse hidrogénio cá. Não estarmos a fazer essa aposta, no nosso entender, não tem sentido porque a energia que vou perder para transportar por gasoduto este hidrogénio para a Alemanha, ou para o centro da Europa, é efetivamente uma má opção.

[Gasoduto ibérico] é um gasto supérfluo, desnecessário. Precisamos de hidrogénio para fazer a nossa descarbonização e não a descarbonização dos outros.

Francisco Ferreira, presidente da associação ambientalista Zero

Então, devemos desenvolver uma cadeia de valor em Portugal primeiro?

Exatamente. É essa a prioridade. O fundamental é eletrificar o meu sistema, que é o mais eficiente, e substituir o gás natural, substituí-lo por biometano, cuja estratégia terá de surgir. Ter aqui vários segmentos que levam à substituição de combustíveis fósseis que utilizamos por esse biometano ou hidrogénio. Essa deve ser a prioridade e não estar a enviar para outro país da Europa. Temos de ter um país que realmente rentabiliza as cadeias de valor. Mesmo em relação às próprias minas que têm sido extremamente polémicas. O que queremos é aproveitamento do lítio. Queremos que Portugal aproveite essa mais-valia do ponto de vista económico face aos danos ambientais que esse aproveitamento tem. Isto, obviamente, numa lógica europeia de insistirmos, acima de tudo, na reutilização, na reciclagem.

Veja aqui a entrevista completa:

  • Diogo Simões
  • Multimédia

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