Centeno “é um agente político” e “tem deturpado a sua função”

“O país está muito mal gerido, mas os eleitores nem sempre sentem isso na pele, porque estão sempre a receber aspirinas e pensos rápidos" que são os fundos europeus, defende o economista Nuno Palma.

O economista Nuno Palma, que editou recentemente o livro “As causas do atraso português”, defende ideias polémicas como os fundos europeus serem uma maldição e que a dependência dos mesmos é uma doença. Rejeita que a revisão em alta do crescimento para 2%, este ano, pelo Banco de Portugal, devido às exportações e ao Plano de Recuperação e Resiliência (PRR) seja uma prova de que os fundos são bons para a economia nacional. O professor da Universidade de Manchester vai mais longe e diz duvidar das previsões do banco central.

O governador do Banco Portugal não é um agente independente, é um agente político. Tem-no sido, nos últimos anos, deturpando a sua função. Foi diretamente de ministro das Finanças para governador do banco central. Só acredito nesses números quando os vir efetivamente a acontecer. Até lá, não acredito nos números do Banco de Portugal”, diz em entrevista ao ECO.

Nuno Palma tem sido um forte defensor da “maldição dos recursos”, uma ideia que explica no seu livro. À semelhança do ouro do Brasil, no século XVIII, agora são “os fundos europeus que distorcem a economia e o sistema político”, diz. “Achar que dependemos de dinheiro a cair do céu para nos desenvolvermos é uma ideia falsa. É uma ideia utópica e que simplesmente não vai funcionar como estratégia de desenvolvimento para o país”, acrescenta.

“Portugal não tem as instituições nem o capital humano para saber gerir” os fundos europeus, critica. “O país está muito mal gerido, mas os eleitores nem sempre sentem isso na pele, porque estão sempre a receber aspirinas, estão sempre a receber pensos rápidos. Estão sempre a receber injeções de fundos de fora que não correspondem à criação efetiva de riqueza da economia”, concluiu.

A recente suspeita, que envolve Manuel Serrão e a sua Associação Selectiva Moda, são para si um exemplo do efeito negativo que os fundos europeus podem ter na economia nacional?

São um exemplo de que o dinheiro não está a ser bem utilizado. Pagar hotéis de cinco estrelas durante anos a fio claramente não é uma estratégia de desenvolvimento para o país. Agora, podemos dizer apenas que é dinheiro, que está a ser desperdiçado. Afirmo que é mais do que isso. Ou seja, a própria existência destes fundos distorce a economia e distorce o sistema político português de formas que são muito prejudiciais ao desenvolvimento e ao crescimento económico. O mecanismo pelo qual os fundos operam e tem efeitos negativos na economia, tanto o económico como o político, a fraude nem sequer é o mecanismo principal. Até poderia não haver nenhuma fraude em termos do que é legalmente uma fraude e, mesmo assim, os fundos iriam ter efeitos negativos. E têm. Mesmo os fundos que são utilizados de formas não fraudulentas, têm efeitos muito negativos para a economia e para o sistema político português. Como é um exemplo mediático, eventualmente ajuda a chamar a atenção para esta questão. Mas, na realidade, a percentagem de fraudes é difícil de medir.

Em Portugal, tradicionalmente tem uma percentagem de fraudes comparativamente reduzida face aos outros países europeus…

Dentro do que podemos medir.

Há estudos que dizem não termos a verdadeira noção da dimensão das fraudes praticadas.

O funcionamento de todo o sistema de Justiça em Portugal torna difícil saber se esses números são reais. Mas mesmo que esteja um bocadinho acima dos outros em termos de fraudes, a taxa de fraudes hoje não é o que era nos anos 90 em Portugal. Os fundos têm um efeito negativo, mesmo que não houvesse fraude. Esta é a afirmação que faço. Porque o mecanismo principal, não tem a ver com a fraude.

A revisão em alta do Banco de Portugal das perspetivas de crescimento para este ano, para 2% e 2,3% para o próximo, acima da média da zona euro, por via das exportações, nomeadamente do turismo e dos fundos do PRR, não contradiz esta sua afirmação de que os fundos são maus para a economia nacional?

O governador do Banco Portugal não é um agente independente, é um agente político. Tem-no sido, nos últimos anos, deturpando a sua função. Foi diretamente de ministro das Finanças para governador do banco central. Só acredito nesses números quando os vir efetivamente a acontecer. Até lá, não acredito nos números do Banco de Portugal.

Mas podemos usar números da Comissão Europeia…

Mas deixe-me terminar. Tem havido muita propaganda à volta da convergência e divergência de Portugal, que é muito fácil de explicar. O meu livro mostra isso claramente. Portugal está a divergir há mais de duas décadas, não há nenhuma dúvida. Está cada vez mais pobre em relação à Europa. O ponto é que tem flutuações. Ou seja, não é uma linha linear a descer, tem flutuações para cima e para baixo. A tendência é de descida em relação à média. É sempre fácil encontrar um momento qualquer, uns meses, um trimestre, em que houve um bocadinho de convergência. E quando há um bocadinho de convergência, faz se muita propaganda. Ahh Portugal convergiu! Mas isso é sempre temporário, porque a tendência de longo prazo tem sido sempre de divergência há mais de duas décadas e não tenho nenhuma fé que isso vai inverter. Pela razão óbvia: as reformas que são necessárias para que essa tendência se invertesse simplesmente não estão a ser implementadas de todo. Ou só estão a ser encontradas no papel. E esse é outro ponto em que Portugal muitas vezes engana a União Europeia, por exemplo, encomendando estudos pagos, por exemplo, à OCDE, como ainda recentemente este Governo fez. Mas o Governo do PSD que saiu de funções em 2015 também o fez. Também encomendou este tipo de estudos pagos, a organizações internacionais em que se diz que as reformas estão a ser feitas. Por exemplo, a reforma da Justiça está a ser feita. Mas são, antes de mais, relatórios pagos e depois são coisas feitas no papel e que não têm uma aplicação efetiva. Enquanto estas reformas não existirem, de facto o país não vai crescer, vai continuar a divergir e cá estaremos para ver se converge ou não.

Como são feitos esses relatórios pagos? Isso não põe em causa a credibilidade das próprias instituições internacionais que são utilizadas para esse fim?

Do meu ponto de vista, sim. Mas sempre que são relatórios específicos sobre um país, e não comparados, esses relatórios são pagos e encomendados pelos Estados nacionais.

As reformas que são necessárias para que essa tendência [de divergência face ao resto da Europa] se invertesse simplesmente não estão a ser implementadas de todo. Ou só estão a ser encontradas no papel.

Ao nível do PRR, perdeu-se uma boa oportunidade para utilizar um bolo que não estávamos à espera de receber para efetivamente fazer essas tais reformas estruturais de que o país necessitava?

É evidente que devia ter aproveitado melhor. É esse o ponto. Portugal não tem nem as instituições suficientemente fortes nem o capital humano para que isso seja possível. Não é possível utilizar melhor. Não tem a ver sequer com quem está no Governo. Não subscrevo, de todo, a ideia de que o dinheiro foi mal utilizado porque era o PS a gerir. Se fosse o PSD o dinheiro já seria melhor utilizado? Não subscrevo, de todo, essa ideia. Para mim o problema é muito mais estrutural. O PRR é um tipo de fundo europeu, há outros como os fundos de Coesão, o FEDER, há imensas coisas. O PRR era um fundo especificamente determinado para lutar contra a pandemia. Era essa o seu objetivo e depois para criar uma transição nestas economias, mas sempre na lógica. Inicialmente da pandemia. A pandemia já desapareceu. Agora é que o dinheiro está a chegar em força. A União Europeia, em teoria, pede reformas estruturais em troca deste dinheiro. Às vezes até pode bloquear ou não desbloquear algum dinheiro, porque uma ou outra forma não foi feita. Mas a grande parte do dinheiro está a chegar e ouvimos sempre os políticos a dizer que temos de ter taxas de execução altas. Não podemos deixar que a burocracia atrase a execução. Do meu ponto de vista, quanto menos execução, melhor. Ou seja, num sentido funcional, obviamente, se temos compromissos, devemos cumpri-los. Se nos comprometemos a executar, o país deve executar. Mas o melhor era nem chegar a dinheiro nenhum.

Mas se a economia portuguesa se visse privada da totalidade dos fundos europeus de que tem beneficiado nestes últimos tempos, isso não criaria uma recessão profundíssima na economia nacional?

Isso fazia com que a economia nacional sentisse as verdadeiras consequências da forma como o país é gerido. O país está muito mal gerido, mas os eleitores nem sempre sentem isso na pele, porque estão sempre a receber aspirinas, estão sempre a receber pensos rápidos. Estão sempre a receber injeções de fundos de fora que não correspondem à criação efetiva de riqueza da economia.

Mas, todos os países europeus, desse ponto de vista, estão em pé de igualdade, porque os fundos são atribuídos em função do PIB per capita.

São atribuídos em função do atraso do país relativamente à média dos outros países. Os países mais ricos da Europa não recebem em termos líquidos. Certas regiões podem receber, em termos absolutos, mas não em termos líquidos, o país como um todo. Houve vários países da Europa que receberam esse dinheiro e convergiram. Foi o caso da Espanha e alguns países da Europa de Leste. Estão a convergir ou já convergiram, nalguns casos. Portugal não. A maldição dos recursos, um fenómeno bastante estudado na literatura internacional, é sempre condicional às características de um país. Vou dar dois exemplos extremos. No caso do petróleo, que é a maldição dos recursos naturais, um exemplo bastante conhecido é a Venezuela. Por ter muito petróleo, isso tem consequências muito negativas, tanto para a economia como para o sistema político da Venezuela. A Noruega, que também tem muito petróleo, essas consequências negativas não aparecem porque sabe investir esse dinheiro. Investe num fundo soberano, não gasta tudo de uma vez, tem cuidado onde gasta, não deixa que o dinheiro distorça o sistema político. Portugal não é a Venezuela, mas também não e a Noruega. E neste aspeto, está mais próximo da Venezuela do que da Noruega. Portugal não tem as instituições nem o capital humano para saber gerir este dinheiro. Achar que o país não vive sem ele era o mesmo que, no início do século XVIII, alguém dizer que Portugal não ia conseguir viver sem o ouro do Brasil. No entanto, o que hoje sabemos, histórica e cientificamente, é que o ouro do Brasil teve consequências muito negativas para a economia e para o sistema político português no século XVIII. Foi uma espécie de pecado original que nos condenou ao atraso durante os séculos seguintes. Achar que dependemos de dinheiro a cair do céu para nos desenvolvermos é uma ideia falsa. É uma ideia utópica e que simplesmente não vai funcionar como estratégia de desenvolvimento para o país.

Nuno Palma, professor e economista, em entrevista ao ECO - 28MAR24
Nuno Palma defende que se Portugal não recebesse fundos europeus isso “fazia com que a economia nacional sentisse as verdadeiras consequências da forma como o país é gerido. O país está muito mal gerido, mas os eleitores nem sempre sentem isso na pele, professor e economista”.Hugo Amaral/ECO

Diz que não temos as instituições nem os recursos humanos para aplicar bem os fundos europeus. O que era preciso para as ter? Dizemos sempre que temos a geração mais qualificada de sempre.

Essa frase não faz muito sentido da forma como é dita. Posso explicar porquê. Não basta contar o número de anos de escolaridade das últimas gerações. Há uma grande profundidade histórica do atraso do país. No início do século XXI, mais de metade da população portuguesa apenas tinha a escola primária ou menos. Isto é, um país com um capital humano muito baixo. É verdade que as gerações muito recentes estão a ter muitos anos de escolaridade e a percentagem dos que vão para a universidade já supera os 40% da geração em idade universitária. Mas também temos de ter em conta a qualidade desse ensino, que valor acrescentado dá e quais são os salários futuros que as pessoas conseguem. O ensino universitário em Portugal, há exceções, globalmente é muito, muito fraco. É muito endogâmico, a qualidade da investigação feito nas universidades é fraca, a qualidade do ensino é fraca. Portanto, contar apenas quantos alunos vão para a universidade, sem ter em conta a qualidade de ensino, é um bocadinho curto.

Deixe-me contrapor que, desde 2014, Portugal tem vindo a bater recordes sucessivos no registo de patentes europeias. E a maior parte dessas patentes são registadas precisamente por universidades e não por empresas.

Isso não me impressiona nada. Se essa dinâmica fosse real, não era verdade que 40% dos jovens que tiram licenciaturas saem imediatamente do país. A percentagem anda por aí. Se essas patentes tivessem dado efetivamente oportunidades às pessoas dentro de Portugal, as pessoas não saiam nas percentagens que estão a sair. Uma economia dinâmica paga salários altos, tem produtividade alta. A economia portuguesa tem uma produtividade muito baixa. Ou seja, temos de pôr muita carne de porco para saírem poucas salsichas. A produtividade, é isto. Os portugueses trabalham mais horas do que noutros países para produzir menos.

  • Diogo Simões
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