Como é ser advogado versus professor universitário? “O direito é uma parte da vida”, diz Lourenço Vilhena de Freitas

Atualmente a lecionar na Universidade de Lisboa e na Lusíada, Lourenço Vilhena de Freitas, sócio da Cuatrecasas, desde 1996 que já passou por várias universidades nacionais e internacionais.

Lourenço Vilhena de Freitas, sócio da Cuatrecasas, já lecionou em diversas universidades portuguesas e estrangeiras, mas sempre na área do Direito Público (Administrativo, Urbanismo, Direito Europeu, Direito Internacional). A sua primeira experiência aconteceu em 1996.

O sócio da Cuatrecasas, desde 2016, centra a sua prática em Energia e Recursos Naturais, Infraestruturas, Logística e Transporte e direito Público. Atualmente é Professor Associado com tenure da Faculdade de Direito de Lisboa e estou ainda Professor Convidado da Faculdade de Direito da Universidade Lusíada.

Quando começou a dar aulas?

A minha atividade docente foi sempre desenvolvida em paralelo com a advocacia. Iniciei ambas, mal de licenciei, em 1996; era advogado estagiário e foi ao mesmo tempo monitor e depois assistente estagiário. Dava muito trabalho, nessa altura o início da carreira docente era muito exigente, não havia como agora assistentes convidados, e tínhamos de entrar por concurso, com um trabalho científico, e tive de conciliar isso com o estágio da Ordem e no escritório de então.

Passaram-se diversas etapas na advocacia e na docência e ainda hoje mantenho a atividade docente, sou Professor Associado com tenure da Faculdade de Direito de Lisboa e estou ainda como Professor Convidado da Faculdade de Direito da Universidade Lusíada, sempre na área do Direito Público (Administrativo, Urbanismo, Direito Europeu, Direito Internacional, etc.).

Já ensinei pontualmente em diversas outras Faculdades nacionais e estrangeiras, com colaborações mais extensas ou mais limitadas, a saber, na Faculdade de Direito da Universidade Nova e no Instituto de Ciências Sociais e Políticas, e em Universidades Estrangeiras, em Cabo Verde (Praia e Mindelo), Angola (Agostinho Neto, José Eduardo dos Santos, Lubango, Cabinda), Guiné Bissau e Moçambique (Mondlane). Como investigador também tenho integrado grupos estrangeiros de investigação em matéria de direito da energia na Faculdade de Direito da Universidade de Barcelona.

O que pesou para essa decisão de lecionar?

Eram duas paixões, mas diversamente do que por vezes acontece em que as paixões são conflituantes, sempre as perspetivei como complementares. Como na Medicina ou na Engenharia, em todas as ciências que visam a sua aplicação, a prática favorece a investigação, e apresenta um manancial de experiências que beneficia a criatividade, a inovação e neste caso o avanço do Direito. Mas simultaneamente a ligação à Universidade, permite e exige uma constante atualização “state of the art”, uma solidez teórica que ajuda no encontrar de soluções.

Esta ligação é particularmente mais importante no contexto do Direito Público. Alguns dos advogados com quem trabalhei ao longo do meu percurso profissional tinham uma fortíssima ligação à Universidade; assim o meu patrono o Professor Sérvulo Correia, o Professor Rui Machete na PLMJ, ambos referências no quadro do Direito Administrativo em Portugal; noutra medida, mais pontual, os outros advogados com quem também colaborei mais de perto, a Dr. Sofia Galvão, o Dr. Henrique Chaves e o Dr. Duarte Abecasis tinham a certa altura estado ligados à Universidade. Tudo isso me fez ver a importância dessa ligação. Na verdade, desde cedo a pressenti, até pelo exemplo de André Gonçalves Pereira, grande professor e grande advogado, o fundador do nosso escritório em Portugal, que conhecia bem muito antes de entrar no escritório, ou de outros nomes de referência do Direito Público como Robin de Andrade, com quem tive colaborações pontuais, ou Mário Esteves de Oliveira, académico de referência e advogado, tendência de ligação academia e advocacia que, pelo menos no quadro do Direito Público, se mantém.

E o contrário também é verdade, os grandes mestres de quem fui mais tempo assistente na Universidade em Direito Administrativo, os Professores Marcelo Rebelo de Sousa, Fausto Quadros e Paulo Otero tinham fortes ligações à prática ou como árbitros e parceristas, ou, no caso de Fausto de Quadros, também como advogado.

O Estado tem recursos limitados e tem feito um certo desinvestimento no ensino superior de forma transversal a todos os governos.

Lourenço Vilhena de Freitas

Sócio da Cuatrecasas

Em que faculdades dá aulas?

Como referi, a minha alma mater é a Faculdade de Direito de Lisboa na qual completei, num percurso clássico, licenciatura, mestrado e doutoramento e onde fui sucessivamente Monitor, Assistente Estagiário, Assistente, Professor Auxiliar após o doutoramento e agora, após concurso, Professor Associado com “tenure”.

Leciono também recentemente contratos públicos e contencioso do poder público no curso de Mestrado avançado da Faculdade de Direito da Universidade Lusíada como Professor Convidado.

Lecionei, como referi, noutras escolas e regularmente cursos breves de uma semana de mestrado ou pós-graduação em Universidades do espaço lusófono na área dos contratos administrativos, energia e telecomunicações.

O que diferencia um aluno de direito face aos de há uma década?

A globalização, a europeização e a internacionalização do Direito, por um lado, e a especialização, por outro. A influência do direito anglo-saxónico nas PPP, nos contratos, obriga a uma formação que tenha em conta o direito comparado, por outro lado é cada vez mais relevante a importância do Direito da União Europeia, na contratação pública por exemplo, e do Direito Internacional (no investimento estrangeiro, na arbitragem, na resolução bancária, nas imunidades soberanas). A especialização e subespecialização, não só por ramos de Direito, mas também por áreas de negócio, ou jurisdições, são uma realidade nas sociedades de advogados, o que não elimina mas antes obriga a uma visão periférica, à capacidade de, trabalhando numa área, identificar os problemas que podem surgir noutra área. Isso coloca desafios cada vez maiores aos estudantes de Direito, que não podem já limitar-se a estudar as classificações dos clássicos ramos de Direito (obrigações, reais…) e a quem são cada vez mais exigidos novas valências em áreas novas do direito (energia, telecomunicações…), soft skills e conhecimentos de gestão. As Faculdades terão de ter a abertura para ir acompanhando estas mudanças. As novas gerações de estudantes com quem tenho contactado tem já naturalmente essa curiosidade e interesse, é geracional.

Todas as reformas têm aspetos negativos e positivos. Bolonha não foi exceção.

Lourenço Vilhena de Freitas

Sócio da Cuatrecasas

O que tenta passar como mensagem principal do que é o direito?

O direito é uma componente essencial da sociedade, faz parte do tecido social, promovendo a colaboração e permitindo a composição de litígios, aspetos inerentes e necessários à convivência em sociedade. Reflete a história e é condicionado por valores e pela realidade e reflete-se tecnicamente em princípios, normas, institutos, cuja construção é essencial para categorizar os conhecimentos essenciais para a prática.

É uma realidade do dia-a-dia. Lembro-me da primeira aula do Professor Freitas do Amaral, que disse ser igual à que lhe tinha dado o Professor Marcelo Caetano, e rezava assim: levantei-me de manhã, acendi a luz a isto meus senhores é regulado pelo direito administrativo, fui tomar banho, abri a água e isso meus senhores é regulado pelo direito administrativo, fui para o metro e isto meus senhores é regulado pelo direito administrativo, entrei na faculdade e fui dar uma aula e isto meus senhores é regulado pelo direito administrativo, e continuava assim até ir dormir.

O direito é uma parte da vida. Mas tem de ser organizada, categorizada, e os professores de direito são chamados a essa função, simultaneamente construtiva e letiva, que deve permitir dar aos alunos o instrumental mais perene. O Professor Alberto Xavier dizia que os pareceres que teve sobre os casos mais difíceis se basearam para a sua resolução nas noções mais básicas de introdução ao direito, qual a lei que se aplica no tempo, como se aplica no espaço, como se interpreta e como se integram as lacunas, e tem razão, é essa a essência que temos de tentar ensinar, o essencial em vez do contingente.

Se tivesse de escolher: professor/a universitário/a ou advogado/a no escritório?

É uma escolha que já não vou ter de fazer, o tempo mais difícil para a conciliação já passou, mas não escondo que a compatibilização foi muito difícil. Em qualquer caso são conciliáveis, naturalmente com mais trabalho.

Mas a esse respeito conto-vos uma história, quando iniciei o meu estágio falei na altura com André Gonçalves Pereira e pedi-lhe para ir para o seu escritório. Era amigo da família e conhecia-o de pequeno. E ele recebeu-me no mítico ultimo andar da Praça Marquês de Pombal n.º 1, a morada mais fácil de Lisboa, e disse-me logo que sim. Mas, segundos depois, com a rapidez que o caracterizava, aditou: mas com essas notas não vai fazer carreira académica? Disse-lhe que sim. Ao que logo que disse: acho que são carreiras que não são conciliáveis até acabar o doutoramento, que é muito exigente. Dou-lhe um conselho, faça o doutoramento em exclusividade e depois venha para cá. Tentei argumentar, num manifesto erro de principiante: mas o senhor Professor fez tudo ao mesmo tempo; ao que ele retorquiu, com a graça que o caracterizava – mas eu era um génio e no seu caso ainda não se sabe… Não segui o seu conselho, mas hoje reconheço que tinha razão, a tentativa de realização simultânea dos dois percursos atrasou-me o doutoramento e atrasou-me a carreira de escritório.

O que lhe ‘rouba’ mais tempo?

Ambos me consomem muito tempo de diferentes maneiras, o escritório em maior medida, mas a universidade tem também um peso considerável, sobretudo com a investigação (mais do que apenas a mera docência), porque temos sempre de produzir lições, artigos, monografias, que são exigências da carreira docente. Mas como disse há sinergias entre ambos. Ainda há pouco tempo nos apareceu um caso raro de impugnação de um ato europeu, meio conselho, meio administrativo, meio jurisdicional, de duvidosa admissibilidade portanto, e por mero acaso na semana antes, para efeitos de uma monografia que estou a escrever, tinha lido um acórdão do Tribunal Geral que versava sobre isso. Foi mera coincidência, mas deu para fazer “um brilharete” ao cliente.

Não tenho uma visão estatista do ensino e penso que no futuro cada vez mais as Faculdades de Direito privadas rivalizarão com as Universidades Públicas desde que consigam encontrar características distintivas, como sempre a problemática da diferenciação.

Lourenço Vilhena de Freitas

Sócio da Cuatrecasas

Os cursos melhoraram com Bolonha?

Todas as reformas têm aspetos negativos e positivos. Bolonha não foi exceção. Modernizou os cursos de Direito e sobretudo internacionalizou-os. Hoje tenho turmas exclusivamente em inglês compostas apenas de alunos estrangeiros. Nos idos dos anos 90 isso era impensável. A internacionalização e a investigação são vetores estratégicos da competitividade das Universidades. A Faculdade de Direito de Lisboa, e refiro esta por ser aquela à qual estou mais ligado, está, quer queira quer não, no mercado, e tem de competir nacional e internacionalmente. Já não é suficiente a sua brilhante história, os grandes mestres que produziu, os Presidentes, Primeiros-Ministros, Ministros e Conselheiros que gerou, etc. É necessário estar nos rankings, aparecer, e soube fazer essa transição magnificamente com Bolonha. Partindo de uma lógica conservadora, a Faculdade de Direito dita “clássica” soube modernizar-se. Hoje o seu Centro de Investigação de Direito Público é o melhor do país, o único com excelente, e a Faculdade dita clássica teve a melhor classificação das Faculdades de Direito Portuguesas no ranking de Shangai. E esses aspetos hoje em dia, e num mundo global, contam muito. Bolonha e o consequente processo de modernização, que foi doloroso e com muitos avanços e recuos, permitiu isso. Houve dores de crescimento, se a licenciatura e o doutoramento se mantiverem excelentes a meu ver, na “clássica” não soubemos fazer da mesma forma a transição ao nível do mestrado, e os nossos mestrados perderam alguma competividade.

E como avalia os cursos em Portugal?

São muito bons. Não penso que fiquem atrás dos das Universidades estrangeiras. A debilidade está na investigação que está ainda parcialmente dissociada do ensino. Investiga-se para progredir na carreira, porque se participa num projeto de investigação, mas não há muitas vezes uma ligação clara entre investigação de ponta e ensino. Não vejo ninguém a dizer quero ir para a Faculdade de Direito de Coimbra porque têm a maior linha de investigação em Direitos Humanos e quero seguir essa área. Essa identificação não é evidente.

Há universidades que ensinam o direito que deveriam fechar por falta de qualidade?

A solução não é fechar, é melhorar, criar corpos docentes próprios, qualificá-los, etc. As universidades públicas funcionam muito bem em Portugal, tal como em França, na Alemanha ou em Espanha, e historicamente acabam por ter a liderança; sendo notável a meu ver a relevância nacional e internacional da Faculdade de Direito de Lisboa e da Faculdade de Direito de Coimbra no Brasil e no mundo lusófono para um país com os recursos de Portugal. De entre as Universidades Privadas ou cooperativas algumas conseguiram criar excelentes cursos, outras como é consabido não, mas nos Estados Unidos a liderança é das universidades privadas. Penso que há lugar para todos os projetos, desde que sejam de qualidade. Não tenho uma visão estatista do ensino e penso que no futuro cada vez mais as Faculdades de Direito privadas rivalizarão com as Universidades Públicas desde que consigam encontrar características distintivas, como sempre a problemática da diferenciação.

O direito é uma componente essencial da sociedade, faz parte do tecido social, promovendo a colaboração e permitindo a composição de litígios, aspetos inerentes e necessários à convivência em sociedade.

Lourenço Vilhena de Freitas

Sócio da Cuatrecasas

O Estado investe pouco no ensino universitário?

O Estado tem recursos limitados e tem feito um certo desinvestimento no ensino superior de forma transversal a todos os governos (as sucessivas crises financeiras também não ajudaram). No entanto, as Faculdades conseguiram, com o alargamento dos mestrados, ir buscar outros recursos. O que falta em Portugal, mas é cultural, é um maior investimento do setor privado, uma ligação da indústria às faculdades, à semelhança do modelo anglo-saxónico. Porque não ter empresas de energias renováveis a estudar os melhores incentivos e enquadramento para o setor (para propor ao Governo)? O Centro de Investigação de Direito Público da FDUL tem tentado ir por aí, imitando o que fez o Instituto Superior Técnico, assessorando entidades públicas e privadas no domínio da investigação científica aplicada.

De que forma as suas ‘skills‘ como professor ajudam no exercício da advocacia?

Como penso que já referi, a minha atividade docente obriga-me a manter-me constantemente “up to date” nas áreas do Direito Público, em especial Administrativo, Europeu, Constitucional, Internacional e na Arbitragem de direito público e isso tem evidentemente benefícios na prática enquanto advogado, designadamente para encontrar soluções invocadoras.

Estamos ainda com demasiados licenciados em direito?

Existe talvez um excesso, mas a licenciatura em direito tem diversas saídas, nem todas passam pela advocacia.

A universidade funciona também como forma de recrutar os melhores alunos para o seu escritório?

Os processos não muito transparentes e padronizados. Não pertenço ao comité da Cuatrecasas Portugal responsável pelo recrutamento em causa, mas o que sei é que evidentemente nos interessa captar os melhores alunos das melhores universidades. Por vezes, pontualmente, se alguém foi meu aluno podem-me perguntar opinião, mas como um mero elemento complementar.

E ensinar em plena pandemia? Como descreve a experiência?

Foi um grande desafio, e tivemos todos de nos adaptar num prazo muito curto, quer no ensino, quer na advocacia. O zoom e o teams deram uma grande ajuda. O desafio foi a diferentes níveis, as aulas teóricas, que passaram a ser gravadas, impuseram um grande nível de exigência, as aulas teórico-práticas colocaram desafios pedagógicos relevantes. Mas toda a comunidade académica se soube adaptar, e os alunos, em particular, reagiram bem, mesmo no difícil domínio das provas académicas e da avaliação. Tudo correu bem no geral.

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