A advogada penalista,sócia fundadora da Carlos Pinto de Abreu & Associados, dá uma entrevista à Advocatus sobre a Agenda Anticorrupção apresentada pela ministra da Justiça.
Sócia fundadora da Carlos Pinto de Abreu e Associados, Vânia Costa Ramos é advogada desde 2007 no escritório de Carlos Pinto de Abreu. Foi advogada na Germano Marques da Silva e Associados de 2004 a 2007. Foi presidente do Forum Penal, Vice-Presidente da European Criminal Bar Association, membro do Legal Experts Advisory Panel da Fair Trials International e membro da Defence Extradition Lawyer’s Association. A advogada penalista está ainda admitida a exercer perante o Tribunal Penal Internacional (International Criminal Court), desde 2023. É doutoranda na Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa com o tema “Circulação da prova na União Europeia – ensaio de uma teoria europeia da exclusão da prova em processo penal” e mestre em Ciências Jurídico-Criminais na Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa. Leia a entrevista à Advocatus.
O que falta na Agenda anticorrupção apresentada pelo Governo?
O relatório técnico da Agenda anticorrupção tem quarenta páginas. Apenas duas são dedicadas a “educação”. Para mim, este vetor é essencial e o seu tratamento é curto e muito geral. Denota uma falta de coordenação mais estreita com outros Ministérios relevantes. Também considero que a diminuição dos níveis de corrupção será mais facilmente atingida com o melhoramento do funcionamento e transparência radical da atuação dos serviços do Estado. A este nível, a Agenda tem algumas iniciativas, mas também me parece ficar aquém do desejado. Na verdade, na minha modesta opinião, a Agenda anticorrupção não deveria ser um produto do Ministério da Justiça – como é o caso – mas sim de vários Ministérios. Sem prejuízo da necessidade de melhorias a nível do judicial, não é a abordagem justicialista do fenómeno que resolve o problema.
Pontos positivos dessa mesma agenda?
Considero excelente a intenção de rever o regime processual penal da prova em ambiente digital. É uma necessidade geral, não só em matéria de corrupção. Um regime mais claro, moderno, mas que proteja também os visados e defina claramente as regras para o respeito das exigências de proporcionalidade, será um avanço imprescindível em qualquer Estado de direito.
Não é admissível que hoje, todos os dias, sejam apreendidas e devassadas vidas totais de pessoas (o que acontece quando se apreende ou monitoriza um smartphone ou um computador portátil, por exemplo, sem quaisquer limites quanto à extensão ou duração da mesma). Inclusivamente quanto a meras testemunhas, por tempo indefinido e sem que estas tenham acesso aos objetos e documentos que são seus. Também não é admissível que, quando um processo termina arquivado, ou alguém é absolvido, não seja indemnizado pela privação assim sofrida. A Agenda não toca estes aspetos, apenas deixando uma referência vaga à garantia dos direitos individuais das pessoas afetadas.
Trata-se, além do mais, de um tema em que são imprescindíveis uma consulta e contributos alargados de todos os envolvidos: juízes, ministério público, advogados, órgãos de polícia criminal, empresas do setor e a sociedade civil mais em geral (por exemplo, os próprios jornalistas e ONG para quem a proteção da confidencialidade das comunicações e informações também é essencial). Uma reforma à pressa não é desejável, nem admissível numa sociedade transparente e democrática.
Deixa-me apreensiva a ausência de referências concretas ao processo através do qual será levada a cabo a “revisitação global” referida na Agenda. Exige-se aqui total transparência e abertura ao contributo efetivo da sociedade civil e das profissões forenses e atores do sistema de justiça penal para uma reforma legislativa devidamente participada. Ou seja, participação logo na construção da proposta de alteração, não só depois de apresentada a proposta fechada, como um mero proforma “para inglês ver”.
Não é admissível que hoje, todos os dias, sejam apreendidas e devassadas vidas totais de pessoas (o que acontece quando se apreende ou monitoriza um smartphone ou um computador portátil, por exemplo, sem quaisquer limites quanto à extensão ou duração da mesma)”
O que necessita de ser esclarecido?
O anúncio da publicitação das decisões judiciais é também de saudar. No entanto, o seu conteúdo é insuficiente e vago. Esta publicitação é uma exigência constitucional – não pode haver informação sobre o direito e acesso efetivo aos direitos e ao seu exercício sem o conhecimento das decisões judiciais. Vivemos numa realidade distorcida, onde a “jurisprudência” é definida pelos media e redes sociais que escolhem dar mais ênfase aos casos mais problemáticos, criando um enviesamento da perceção da justiça. E em que a “jurisprudência” oficial é apenas limitada a um conjunto de decisões dos tribunais superiores escolhidas sem critérios conhecidos e escrutináveis, permitindo “ocultar” jurisprudência incómoda, ou diversa.
O avanço na promoção da democracia e do Estado de direito não é compatível com o prolongamento indefinido desta situação. Precisamos de um prazo para a concretização desta medida. Com urgência.
A fase da instrução pode vir a sofrer alterações. Acha isso um bom sinal?
Como já referi antes, sou frontalmente contra a eliminação da fase de instrução. É uma fase absolutamente essencial, quer para arguidos, quer para vítimas de crime. É pelo menos bom sinal que não se fale em eliminar esta fase – uma medida demagógica, populista e muito provavelmente inconstitucional.
Quanto a algumas ideias avançadas, considero que não faz sentido uma diferenciação entre a instrução requerida pelo arguido ou pelo assistente, proposta como conceito possível na agenda. Além do mais, como também venho referindo , não deve pensar-se numa limitação da instrução sem olhar para a fase de inquérito. Se queremos porventura evitar que os sujeitos processuais utilizem a fase de instrução em casos em que esta possa não ter grande utilidade, sem coartar os seus direitos, então temos de iniciar uma discussão a sério sobre o papel do contraditório no inquérito. Para mim, não faz sentido a falta de contraditoriedade da prova e de participação dos sujeitos processuais nas diligências no inquérito, em particular um inquérito público. E mesmo num inquérito em segredo de justiça, há sempre uma fase em que a publicidade pode passar a vigorar e poderia existir mais contraditório. Fala-se em repensar a fase de instrução “com ousadia e sem preconceitos”. Porque não se estende esta afirmação à fase de inquérito?
Sou frontalmente contra a eliminação da fase de instrução. É uma fase absolutamente essencial, quer para arguidos, quer para vítimas de crime. É pelo menos bom sinal que não se fale em eliminar esta fase – uma medida demagógica, populista e muito provavelmente inconstitucional”
Volta a estar em cima da mesa a ideia da justiça premial. Estamos a ir por um caminho perigoso?
A justiça premial parece-me quase incontornável, em alguns casos, mas de facto muito perigosa, sobretudo num sistema com uma fraca (para não dizer, muitas vezes, inexistente) cultura de diálogo e negociação clara, pragmática, frontal e respeitadora da lei, entre os intervenientes processuais em processo penal. Esta realidade contrasta com outras que conheço a nível internacional.
Mais perigosa ainda num país em que quem não tem meios económicos para se defender será representado por Colegas que são remunerados de forma absolutamente irrisória e sem qualquer relação com a qualidade e o tempo efetivo despendido no processo. Essa realidade implica que não possam gastar o tempo que seria necessário para a defesa. A Agenda não toca neste tema. Mais, no nosso sistema inexiste acesso ao direito no que diz respeito às ferramentas tecnológicas que agilizem o tratamento da prova, e a Agenda também não fala em estender o acesso a essas ferramentas aos arguidos, vítimas. A igualdade de armas e um processo justo não são possíveis sem a disponibilização deste tipo de ferramentas a quem patrocina os intervenientes no processo, uma vez que as versões comerciais disponíveis não estão ao alcance da esmagadora maioria das pessoas, empresas ou mesmo escritórios de advogados. Este é um tema que deveria também estar incluído na revisitação global da prova em ambiente digital, tratada na Agenda. E que é determinante para a real apreensão das consequências da introdução da justiça premial no processo penal.
Se tivermos a justiça premial, esta realidade levará a que os acordos penais sejam aceites porque não é do ponto de vista económico viável para o próprio defensor levar o caso a julgamento, nem sequer este tem capacidade tecnológica ou apoio técnico para a defesa eficaz dos interesses do cliente.
Consequência: condenações injustas. Já o vimos noutros países. Por isso: se queremos ousadia, ousemos em garantir um efetivo acesso ao direito, com um patrocínio judiciário oficioso devidamente remunerado, que inclua não só os honorários dos Advogados mas o acesso aos instrumentos tecnológicos e técnicos necessários para a defesa efetiva dos direitos das pessoas, e em que os cidadãos possam escolher livremente o seu Advogado, dentro dos que aceitam atuar no sistema de acesso ao direito.
A AD e o PS devem estar alinhados nas soluções para a Justiça?
É um imperativo. As orientações fundamentais em matéria de consolidação da Justiça e do Estado de direito não podem mudar ao sabor das eleições legislativas.
A justiça premial parece-me quase incontornável, em alguns casos, mas de facto muito perigosa, sobretudo num sistema com uma fraca (para não dizer, muitas vezes, inexistente) cultura de diálogo e negociação clara, pragmática, frontal e respeitadora da lei, entre os intervenientes processuais em processo penal”
Que perfil deverá ter o próximo PGR?
Deverá ser alguém com elevadíssimo prestígio no mundo das profissões forenses, que promova uma cultura de profissionalismo e de diálogo com todos os intervenientes na justiça penal, com conhecimentos jurídicos de excelência, irreprovável consciência ética, sentido de responsabilidade social e serviço da causa pública, e com excelentes capacidades de liderança e comunicação interna, bem como de comunicação externa.
A autonomia do MP é uma ‘desculpa’ da magistratura para não prestarem contas?
Não percebo se a pergunta se dirige aos magistrados concretos, ou ao órgão Ministério Público. Em qualquer caso, a autonomia não pode servir de desculpa para uma desresponsabilização. O Ministério Público exerce a ação penal para interesse da sociedade, e deve prestar-lhe contas. A importância, o impacto e a responsabilidade do papel que o Ministério Público desempenha na nossa sociedade só pode legitimar-se através de uma devida prestação de contas, exercida pelos mais altos responsáveis – os “líderes”, a quem cumpre, de forma legal, transparente, sóbria e eficaz do ponto de vista da comunicação, educar o público sobre as atuações e chamar a si a responsabilidade pelas mesmas.
São necessárias alterações legislativas para repor o poder hierárquico do MP?
Creio que o necessário é alteração de mentalidades e de cultura. Como já disse antes, é necessário repensar o MP com uma organização do trabalho em equipas, com líderes claramente definidos, e com uma muito maior organização e articulação que permita otimizar o trabalho colaborativo. Hierarquia significa também responsabilidade. O “superior” ou, como prefiro designar, o “líder”, não é só quem organiza, revê, e acompanha o trabalho dos demais Colegas. É quem assume a responsabilidade pelo trabalho coletivo. Quando este corre bem, mas também quando corre mal. É necessário analisar se a lei permite colocar esta mudança em prática. Se não o permite, então teremos de refletir sobre possíveis alterações. No entanto, há que fazer um diagnóstico sério e ouvir, com o necessário tempo e antes de qualquer alteração, além do próprio Ministério Público, os demais intervenientes do sistema de justiça penal e a sociedade civil.
A ministra disse que será necessária uma nova era para o MP. Concorda?
Concordo que é necessária uma nova era, no sentido de uma revolução na mentalidade e cultura do MP. De adaptação a uma sociedade da alta complexidade, celeridade, e publicidade, na qual só é possível trabalhar com equipas altamente organizadas e especializadas, com repartição de tarefas e coordenação pela liderança respetiva, devidamente municiadas dos instrumentos tecnológicos mais desenvolvidos. Mas essa era não pode deixar de estar assente na legalidade, na defesa do interesse público, dos direitos das pessoas e da justiça, e numa atuação eticamente irreprovável e socialmente responsável.
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