Carlos Tavares tece duras críticas ao Mais Habitação e diz que solução passa pelo arrendamento, mas é necessário ultrapassar "o trauma grande" dos proprietários que vêm as regras mudar sucessivamente.
São várias as críticas de Carlos Tavares às medidas desenhadas pelo Governo no pacote Mais Habitação. Desde logo, o economista que coordenou um estudo da Sedes, “Habitação e políticas de habitação para Portugal”, aponta que “não se pode olhar para o setor da habitação de forma isolada” frisando que o pacote de medidas do Governo devia incluir políticas de várias áreas, como é o caso dos transportes, que “são um ponto essencial” para resolver a crise na habitação que o país enfrenta.
Além disso, em entrevista ao ECO, Carlos Tavares questiona se “faz sentido” termos um ministério da Habitação quando para o “que se passa no setor, são muito mais importantes as decisões do ministro das Finanças e do ministro da Economia do que da ministra”.
O ex-ministro da Economia de Durão Barroso e ex-presidente da CMVM salienta ainda, ao ECO, que para a Sedes a solução a longo prazo para a crise da habitação passa por canalizar “todo o esforço no mercado de arrendamento” até porque são necessários vários anos para construir e, em seu entender, não há falta de casas, lembrando os dados do Censos 2021 que apontam para “4,9 milhões de alojamentos para 4,2 milhões de agregados familiares”.
Mas para impulsionar o mercado de arrendamento, é preciso ultrapassar um “trauma grande dos proprietários” que resulta da alteração sucessiva das regras e perceber porque “há um conjunto de alojamentos que não estão a ser ocupados” e que “não estão no mercado”, sublinha Carlos Tavares.
Como vê as medidas do Mais Habitação? Vão resolver a crise na habitação?
Fala-se de uma política de habitação, quando devíamos falar de políticas que influenciam a habitação. Não se pode olhar para o setor da habitação de forma isolada. Temos um ministério da Habitação e não sei se faz sentido, se deveríamos ter ou não. Provavelmente, para efeitos do que se passa no setor, são muito mais importantes as decisões do ministro das Finanças e do ministro da Economia do que da ministra da Habitação.
Os transportes são importantes para este problema?
Os transportes são um ponto essencial. Por exemplo, numa distância relativamente pequena, se as pessoas morarem na linha de Sintra ou na linha de Cascais a uma distância de 20 ou 30 quilómetros de Lisboa, é uma grande distância para chegar ao emprego às 9 horas da manhã. Em Londres, 20 ou 30 quilómetros de distância para o emprego é uma distância absolutamente comportável, porque há mais oferta de transportes. Há uma série de políticas todas elas convergentes para a questão da habitação.
O Governo ignorou esses fatores no Mais Habitação?
Não constam lá. Aquilo a que chamam o pacote Mais Habitação tem um afunilamento de políticas em duas ou três áreas que parece que resolvem o problema a curto prazo e provavelmente não resolverão. Algumas até podem ser contraproducentes.
Qual é a vossa solução?
Devíamos por todo o esforço no mercado de arrendamento.
Mas o mercado do arrendamento também tem tido alguns problemas. E as rendas também têm vindo a disparar…
Porque quando os preços disparam, os imóveis que estão no mercado também aumentam. O aumento de preços é a raiz de vários problemas. Nos cálculos que fizemos às prestações de crédito, a renda teria sempre um valor mais alto do que a prestação para a compra. É uma limitação à procura de imóveis para arrendamento. E soma-se a isso a limitação da oferta, porque há proprietários que, por fruto da instabilidade e da alteração sucessiva das políticas de arrendamento, optam por não por os imóveis no mercado. Há um trauma grande dos proprietários no mercado de arrendamento, porque as regras mudam sucessivamente. Além de que se entendeu que os proprietários são responsáveis pela segurança social dos arrendatários. Ou seja, quando as pessoas não podem pagar congela-se as rendas, limita-se as rendas. Tem de ser o Estado a criar mecanismos para dar apoio às pessoas.
E o que pode ser esse mecanismo?
Devia ser criado um regime absolutamente transparente de níveis de referência das rendas e devia haver incentivos fiscais. Ou seja, a fiscalidade devia ser menor para níveis de renda mais baixos e para períodos de arrendamento mais longos, por exemplo. Os proprietários deviam poder contar com um regime que não andasse dependente de compromisso político, com regras sempre a alterar. Se isso implicasse que algumas rendas tivessem de subir para além daquilo que os arrendatários pudessem pagar e que não tenham alternativa, aí deveria entrar a função social do Estado. Tal como entrou agora, para efeitos das pessoas que tinham comprado casa e que ficaram com prestações mais altas. Mas as medidas do Mais Habitação e toda esta discussão tem uma lacuna que é original.
Qual é?
Não haver um diagnóstico claro da situação. Diz-se que há falta de oferta porque não se constrói o suficiente e que desde a troika que se deixou de construir.
E não é assim?
A verdade é que quando veio a crise financeira dizia-se que se tinha construído a mais. E na altura, se compararmos os Censos de 2011 com os de 2021, o número de população até diminuiu um pouco, mas o número de agregados familiares aumentou cerca de 2% e o número de imóveis também aumentou 2%. Aquilo que os números do Censos de 2021 mostram é que nesse ano havia 6 milhões de imóveis para 4,2 milhões de agregados familiares. E mesmo tirando as segundas habitações, que são 18,5%, ficam 4,9 milhões de alojamentos para 4,2 milhões de agregados familiares. Algo que também é elucidativo disto é que se dividirmos o número de agregados familiares pelo número de habitações, temos 1,7 de taxa de ocupação de pessoas por alojamento, que é o mais baixo da Europa. Portanto, partir-se logo do princípio que há falta de oferta e que é preciso construir, mas há 4,9 milhões de alojamentos.
Mas com mais construção os preços não iriam baixar?
Mas quanto tempo demora um imóvel a construir? Quer dizer, tentar resolver um problema que é de agora e ir construir mais agora, fazer projetos, ter autorizações e ainda por cima há muitas pessoas que defendem que se devia criar novas zonas para construir, ou seja, isso demora anos. Portanto esperar que o mercado se regularize pelo aumento da oferta…
Então a curto prazo, qual pode ser a solução mais eficaz?
A curto prazo, devíamos perceber qual a razão pela qual existe esse gap. Ou seja, há mais imóveis ou mais alojamentos do que agregados familiares. O que significa que há um conjunto de alojamentos que não estão a ser ocupados, não estão no mercado. É preciso perceber porquê. O que tenho ouvido de alguns especialistas é que houve muitos imóveis que se degradaram e precisam de obras, mas que os proprietários não estão disponíveis para investir porque não sabem qual o regime de arrendamento que vão encontrar, nem se podem recuperar o investimento que fizeram na reabilitação do imóvel. Além disso, como os preços estavam sempre a subir, os proprietários pensam que mais vale esperar que os preços subam e em vez de arrendar, vendem por um preço mais alto. É uma situação muito perversa.
O pacote Mais Habitação veio aumentar essa desconfiança?
Sim. Pode contribuir para isso. Tentar resolver o problema pela via do arrendamento coercivo, é especialmente assustador.
O Governo e o PS acabaram por recuar bastante nessa medida. O que foi aprovado ficou muito longe da intenção inicial.
Neste momento caímos no pior dos mundos. Temos uma medida que assusta e que não produz efeito. Por isso digo que que falta um diagnóstico, que não é difícil fazer. Não são precisos anos para o fazer.
Vê alguma medida positiva no Mais Habitação?
Não conheço a versão final aprovada. Mas há uma medida que está no programa Mais Habitação que é correta, que é a isenção de qualquer custo fiscal quando um imóvel é convertido de alojamento local para habitação.
Como viu a decisão de veto do Presidente? Vai ter efeitos no mercado?
Não conheço a redação do veto. Mas as razões que estão subjacentes são muito idênticas às que temos transmitido, no sentido em que há um conjunto de medidas que poderão não só não resolver o problema, mas em alguns casos até tornar mais difícil a recuperação do mercado de arrendamento. Como penso que essa é a via mais eficaz de resolução do problema, percebo que tenha havido essa decisão e que seria tanto mais útil enquanto houvesse alguma disponibilidade para alargar a discussão e não afunilar nas medidas que dizem estritamente respeito ao setor da habitação, mas alargar a todas as políticas que são convergentes, incluindo as que são mais estruturais como os transportes, a política fiscal ou a política do país para que exista estabilidade. O pior que podia acontecer era agora termos decisões de um conjunto de medidas, haver novas eleições com outro partido a vencer e mudar tudo outra vez. Não gosto muito da expressão de pactos de regime mas é necessário algum entendimento, porque o acesso à habitação é um problema muito importante. Se este assunto for bem estudado, é fácil que as medidas possam ser relativamente consensuais, desde que consigamos pôr de lado os interesses para que todas as políticas confluam na melhoria na situação da habitação e que se forem políticas adequadas também nos ajudam na Economia.
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