“É alarmante haver têxteis sonantes em dificuldade. Há um efeito de arrastamento”

Ricardo Silva, novo presidente da Associação Têxtil e Vestuário de Portugal (ATP), alerta para a elevada dependência de um único cliente no setor, como "grupos assentes em Inditex", a dona da Zara.

O setor do têxtil e do vestuário tem enfrentado um ano difícil, que se intensificou depois do verão com vários grupos a avançarem com o fecho de unidades, planos de revitalização e o despedimento de centenas de pessoas. É neste momento conturbado que Ricardo Silva, o novo presidente da Associação Têxtil e Vestuário de Portugal (ATP), assume a liderança desta instituição que representa o setor. Em entrevista ao ECO, o também CEO da Tintex destaca a resiliência do setor, destacando que, apesar das notícias negativas nas últimas semanas, o volume de negócios do setor fechou o primeiro semestre estável face ao ano anterior: “não está em decréscimo da forma que estamos a pensar”.

Questionado sobre se espera mais despedimentos, Ricardo Silva diz que “não da mesma forma acentuada” a que se assistiu em setembro. “Claro que nos alarma haver aqui sinais de empresas em dificuldade, empresas sonantes“, assume. Para o novo ‘patrão’ dos têxteis, um dos problemas do setor é a dependência de um grande grupo.

“O que conseguimos ver diferenciador entre esses casos positivos e menos positivos é a diversificação da carteira de clientes”, explica, acrescentando que “quem está alicerçado num número muito exclusivo de clientes, vai estar sempre mais sujeito à volatilidade“. É o caso da Polopiqué que avançou com uma profunda reestruturação do negócio, com fecho de unidades e despedimento de 280 trabalhadores. Ricardo Silva considera-a um “caso específico”, em que estava exposta “a um mono cliente, ao grupo Inditex“. Mas não é caso único: “Há grupos assentes em Inditex. Esse é um problema português hoje“, resume.

O setor têxtil e do vestuário tem enfrentado um período difícil. Quais são as prioridades para o seu mandato à frente do setor?

A ATP é um elemento agregador. Temos de separar têxtil de vestuário enquanto subsetores, mas têm de estar necessariamente agregados enquanto valores. Não existe têxtil sem vestuário, não existe vestuário sem têxtil. Os números do primeiro semestre, na realidade, não são aquilo que parecem. O alarmismo que vemos [é] por algumas empresas estarem com mais dificuldades, pelas notícias globais que vemos. Este ano, nos dois subsetores – têxtil mais vestuário -, o setor não tem um decréscimo das exportações. Estamos praticamente iguais ao ano passado.

Quais são os valores?

Em termos de exportações estamos estáveis face ao ano passado. Há empresas melhores e empresas em maior dificuldade. Mas o setor não está em decréscimo da forma que estamos a pensar. Outros países do mundo estão em bastante maior decréscimo. A China, notoriamente, está a cair mais. Portugal consegue assumir aquela resiliência.

Agora, claro que nos alarma haver aqui sinais de empresas em dificuldade, empresas sonantes, números importantes. Há um efeito de arrastamento entre as empresas e a colaboração pode ficar em causa. O setor trabalha sempre em colaboração. Sempre foi assim, há muitos anos que é. Muito na ótica, no passado, de cliente-fornecedor; cada vez mais na ótica de parceiros. Portanto, vejo o setor como algo agregador, com um negócio muito centrado na Europa. Também do ponto de vista de startups ligadas ao setor, na área da tecnologia, há aqui uma transformação industrial e, por isso, acredito que esta fase seja mais conjuntural do que estrutural.

O que justifica o facto de este primeiro semestre não ser tão mau como se poderia antecipar, até pelo que está a acontecer com grandes empresas do setor?

O consumo global está mais reduzido do que nos anos passados. Isso vê-se no pós-covid, depois no pós-crise energética, em que os números globais do consumo baixam. É notório. Porque é que Portugal consegue ser resiliente? Tem um tipo de oferta de serviço e de produto que está muito próximo dos mercados onde opera, na Europa. Esta proximidade e agilidade portuguesa fazem com que Portugal consiga nascer como um cluster industrial preferencial. Nas guerras logísticas, com problemas de tempos e entregas, faz com que nos mercados onde operamos não consigam subsistir tanto como polos industriais. Todos caíram. Por isso é que outros mercados caíram mais que nós, Portugal tem esta vantagem competitiva. Agora, porque é que, ainda assim, há empresas em dificuldades? Se olharmos os números do final de 2024, o têxtil teve melhor performance que o vestuário, comparando com o ano anterior. O têxtil conseguiu aumentar o volume de negócios e o EBITDA, enquanto o vestuário teve alguma redução.

O que justifica essa diferença?

Houve uma dissociação dos dois. Nos anos anteriores, em 2022 e 2023, o têxtil sofreu mais pelos custos energéticos — e os têxteis são muito mais afetados pelos custos energéticos do que as partes do vestuário. Tivemos problemas anteriores, neste momento conseguimos recuperar melhor disso do ponto de vista do têxtil.

O vestuário ressentiu-se um bocadinho pelo consumo em baixa. Os custos industriais das empresas subiram de forma mais significativa do que as receitas, muito na relação custo-salário. A área da confeção tem custos-salários mais elevados proporcionalmente e com estas subidas dos salários mínimos nos últimos cinco anos, o seu custo principal aumenta, enquanto o consumo baixou. Há um contraciclo no custo e nas receitas. Daí que a área do vestuário tenha tido mais dificuldades. Por isso é que vemos mais empresas de vestuário em dificuldades neste momento. Mesmo na ótica do calçado, as empresas de calçado com dificuldade são as de confeção.

Ricardo Silva, novo presidente da ATP (Associação Têxtil e Vestuário de Portugal), em entrevista ao ECORicardo Castelo/ECO

Este abrandamento vai manter-se?

É algo passageiro, no meu entender, porque os custos energéticos estabilizaram, tanto ao nível da eletricidade como do gás natural. Um dos grandes fatores de desequilíbrio foi a energia. Ainda assim, temos um desequilíbrio face à Ásia, mas, se olharmos para o contexto europeu, estamos estáveis — e mais estáveis do que antes. Os custos salariais continuam a subir e vão continuar a subir sempre, mas agora já são expectáveis [os aumentos]. Cinco anos depois de uma estagnação ou quase estagnação é que foi mais precipitado.

O setor não estava preparado para esta subida de salários?

Ninguém estava preparado para aumentos salariais desta ordem, sempre seguidos por uma média de 7% ao ano nos últimos cinco anos. O problema é que a produtividade nacional em qualquer setor não acompanhou este aumento salarial e isso cria um desequilíbrio nas empresas.

Esse aumento foi motivado pelo salário mínimo, ou por iniciativa das empresas?

O salário mínimo aumentou, portanto, os salários médios sobem todos. A área industrial portuguesa está indexada ao salário mínimo, por proximidade.

Antecipa mais despedimentos e encerramentos nos próximos meses?

Não da mesma forma acentuada que vimos agora em setembro. Setembro é sempre um mês muito difícil, onde vemos mais fechos ou despedimentos. Agora, o custo energético estabilizou, as taxas de juro estão a baixar. A dívida que as empresas precisaram de contrair nos últimos anos, devido às dificuldades do ciclo económico e da energia, fica mais aliviada devido às taxas de juro mais baixas. Aquele ponto de constrangimento que tínhamos enquanto tecido empresarial reduz-se.

Mas estamos a falar só da parte dos custos…

As margens têm subido. O preço de venda tem subido e algumas empresas conseguem fazer com que a sua margem suba, porque o preço sobe mais que os custos. E a quantidade mantém-se resiliente. Há casos muito positivos, há casos menos positivos. O que conseguimos ver como diferenciador entre esses casos positivos e menos positivos é a diversificação da carteira de clientes.

Quem está alicerçado num número muito exclusivo de clientes, vai estar sempre mais sujeito à volatilidade. Quem tiver uma diversificação da sua carteira, vai estar mais seguro pelo dinamismo do mercado aberto. O caso da Polopiqué é um caso mais específico. Estavam mais expostos a um mono cliente, ao grupo Inditex. Com a volatilidade no grupo Inditex, nas suas cadeias de abastecimento mundiais, isso fez com que Portugal sofresse — e eles sofreram mais porque têm uma estrutura muito grande montada à volta daquele negócio.

E há outros casos assim?

Há grupos assentes em Inditex. Esse é um problema português hoje. Em alturas de crescimento funciona muito bem, porque as empresas conseguem ter os custos mais reduzidos, menos custos estruturais. Mas em altura de instabilidade vê-se essa volatilidade. A dispersão do risco por vários clientes é a chave para maior resiliência, não só no têxtil, em qualquer outro mercado.

Ricardo Silva, novo presidente da ATP (Associação Têxtil e Vestuário de Portugal), em entrevista ao ECORicardo Castelo/ECO

As exigências europeias têm forçado a setor a grandes investimentos ao nível da sustentabilidade. Como é que as empresas estão a lidar com este tema?

Existe bastante investimento por parte das empresas. E depois leva-me aqui a outra questão, que é a concorrência chinesa.

Que é outro tema com o qual o setor se tem batido, com os de minimis

A ATP tem sido crítica, a Anivec tem sido crítica, a Euratex tem sido crítica. As associações têm um papel muito central e importante na comunicação central. Toda a Europa está alinhada. Já não via nada de alinhamento na Europa tão massivo, do ponto de vista industrial, há muito tempo. É um bom momento de alinhamento. As pessoas percebem a urgência de haver algum equilíbrio. Há menos consumo da maioria dos têxteis, nos modelos mais tradicionais. Mas também vemos muito consumo em número de unidades de artigos de plataformas a muito baixo preço. Ou seja, provavelmente o consumo em unidades, em peças de roupa, não baixou. O consumo em euros, em dólares, baixou.

Tem-se falado muito de minimis, a lei que permitia que artigos de valor insignificante não fossem taxados e não causasse distúrbio nas alfândegas. Mas isso foi há 50 anos (…) Houve uma revolução muito grande no mercado de consumo. Essa isenção tem de terminar e tem de haver um equilíbrio entre os negócios.

Não há dados estatísticos relevantes e sérios para demonstrar esta dinâmica. Há um desfasamento muito grande, porque o valor destas coisas é muito baixo e não passa pelos canais normais taxáveis. Não há controlo, esse é o principal problema. Tem-se falado muito de minimis, que é exatamente a lei que permitia que artigos de valor insignificante não fossem taxados e não causasse distúrbio nas alfândegas. Mas isso foi há 50 anos, quando se queria enviar presentes de um país para o outro. Houve uma revolução muito grande no mercado de consumo. Essa isenção tem de terminar e tem de haver um equilíbrio entre os negócios.

A China em si não é um problema. A China é um país industrial, tem um mercado gigante, tem uma produção muito grande também. O problema são os modelos de negócio que assentam em desequilíbrios. Agora, é bom para o consumidor? É bom porque é barato. Agora, o barato sai caro. Porque é que estes produtos têm um problema? Primeiro, é um problema de desequilíbrio fiscal, pode criar problemas graves no tecido económico europeu.

A China em si não é um problema. O problema são os modelos de negócio que assentam em desequilíbrios.

Por outro lado, aqueles produtos, se olharmos ao seu custo de fabrico, qualquer pessoa que faça uma análise ao custo de fábrica vê que é impossível os produtos serem produzidos daquela forma, àquele custo. Nos mesmos sítios onde eles são produzidos, na China, há produções normais e de muito boa qualidade. E não é àquele preço, é com preços equivalentes aos europeus.

A grande diferença que há entre a Europa e, se eu tiver que adivinhar, as empresas que produzem esses produtos, é ao nível das substâncias químicas usadas. Mas é difícil criar mecanismos de controlo.

Mas não será com uma taxa de dois euros na alfândega?

Os Estados Unidos criaram um sistema em que tiraram uma isenção e obrigam os produtos a passar pelo processo normal de alfândega. Se não quiserem passar por esse processo por rapidez, pagam uma taxa mínima de 80 dólares ou 200 dólares, dependendo do país de onde chegam. Na Europa está a falar-se de 25 euros de taxa mínima de manuseamento. Já é alguma coisa. O problema é que podemos comprar coisas por dois euros sem custo de transporte, quando o transporte custa mais que dois euros. Alguma coisa está mal. O consumidor está a aproveitar-se disto agora e há produtos que fazem sentido, que até nem têm toxicidade elevada e não compromete a qualidade nem a saúde das pessoas. Mas não é a maioria dos produtos.

Agora, a Shein já está a montar lojas em França. Se vai montar lojas em França, entra no esquema normal. E se conseguem ter quota de mercado aumentada com base nesse modelo normal, parabéns, estão de parabéns. O problema é quando não seguem as regras. E há uma desvantagem muito grande de toda a gente.

Em relação às tarifas, referiu que o têxtil-lar é um dos subsegmentos que tem maior peso nos Estados Unidos. Como está a ser afetado pelas tarifas?

Os têxteis-lar estão com alguma quebra, este ano de 2%. Não é nada significativo. As tarifas nos Estados Unidos fazem aumentar os preços nos Estados Unidos, seja de que país for. Portugal tem tarifas de 15%, porque está na Europa. Outros países europeus têm a mesma tarifa de 15%. A competitividade portuguesa face a outros produtores europeus é a mesma. Os outros países concorrentes, China, por exemplo, têm uma taxa para os Estados Unidos maior. Portanto, as tarifas vieram baixar a competitividade da China face a Portugal para aqueles produtos.

Mas não há um efeito indireto de a China voltar-se para a Europa para compensar esse efeito?

Isso é outra coisa. O desafio que pode haver para as empresas portuguesas é o menor consumo americano, não é necessariamente as tarifas face a outros países.

Para já, o setor em Portugal não está a ser muito afetado?

Está resiliente. Agora, todas as empresas querem crescimento. Uma coisa é resiliência e estar estagnado, outra coisa é estarmos conformados com isso. Queremos crescimento, portanto, é mau nesse sentido.

E o tal efeito indireto?

Isto foi previsto e já está a acontecer. Nos Estados Unidos removeram a isenção dos minimis e bloquearam este acesso de produtos de muito baixo valor. O escoamento virou dos Estados Unidos para a Europa. Logo nas semanas seguintes viu-se um aumento grande das importações chinesas. Falou-se em 30%.

Em termos acumulados, conta que seja possível manter esta resiliência até ao final do ano?

Não consigo dizer. O primeiro trimestre foi relativamente mais difícil, no geral. No segundo trimestre já houve mais otimismo. No terceiro trimestre há menos otimismo. Há aqui alguma volatilidade. Normalmente no último trimestre há mais otimismo novamente. Há casos de muito sucesso, a crescer bastante bem, mas também não são representativos do setor. Os casos muito negativos também não são representativos.

A expectativa [do setor] não era positiva para o próximo semestre, mas muito por causa do medo que estamos a sentir, desta instabilidade que estamos a sentir do início do ano.

Há sinais positivos?

O consumo na China está a aumentar. Um dos grandes fatores de quebra de consumo global foi a redução do consumo da China nos últimos anos, até por causa das crises imobiliárias, e está a retomar. O consumo nos EUA continua forte, apesar das tarifas. As taxas de juros na Europa estão a baixar, o consumo parece estar a retomar. Com base nestes números, comparando com há seis meses e há um ano, só podemos ser otimistas, porque os principais fatores que influenciam o consumo e o mercado estão melhores do que há seis meses.

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