Maria do Rosário Palma Ramalho defende maior autonomia de empresas e trabalhadores para negociarem condições laborais. E quer a renovação da contratação coletiva, para acabar com os acordos "zombie".
Maria do Rosário Palma Ramalho rejeita a ideia de que a proposta de reforma do Código Laboral — e de mais oito diplomas — desequilibre a relação entre empresas e trabalhadores. “É engraçado que não se tenha dito, mas este projeto tem muitas normas de reforço das garantias e direitos dos trabalhadores“, afirma em entrevista exclusiva ao ECO na semana em que arranca a discussão dos diplomas em sede de concertação social. O Banco de Horas individual é uma das medidas emblemáticas, mas a ministra do Trabalho não a identifica como a mais importante. “É muito difícil escolher uma: são mais de 100 alterações ao Código do Trabalho, alterámos nove diplomas“.
As principais mudanças anunciadas, e o discurso político que as suporta, apontam para uma dimensão relevante, a do equilíbrio de poder entre empresas e trabalhadores. Como é que se assegura esse objetivo de maior autonomia na relação laboral sem uma intervenção tão intrusiva, digamos assim, da Autoridade das Condições de Trabalho que garanta esse equilíbrio?
Olhe… esse termo que utilizou, o equilíbrio, é o mais virtuoso aqui. É, efetivamente, o mais virtuoso. Tenho visto muitos comentários sobre a legislação laboral, vêm dos dois lados e na verdade…
Espera que se encontrem a meio?
Eu acho que se devem encontrar e demonstram que esta proposta é de facto o produto do equilíbrio. E porquê? Na verdade, o trabalhador ainda está numa posição de real inferioridade negocial perante o empregador que decorre da sua inferioridade económica, não é da sua dependência económica. Aí, ao nível do contrato de trabalho, temos que manter o nível de proteção e, em alguns casos, nesta reforma, até reforçamos os níveis de proteção. É engraçado que não se tenha dito, mas este projeto tem muitas normas de reforço das garantias e direitos dos trabalhadores. Mas, já ao nível das relações coletivas, não se justifica hoje, em pleno século XXI, uma posição paternalista do Estado sobre as associações sindicais e patronais que as impeça de exercerem mais livremente essa negociação.
Mas como é que se desbloqueia a contratação coletiva?
A pergunta é como é que foi tão bloqueada ao longo do tempo.
Porque está muito bloqueada, na verdade.
Muitíssimo bloqueada… Houve uma tentativa em 2003 de desbloquear, foi excessivamente abrupta e, portanto, o resultado foi contraproducente. As próprias convenções passaram a ter cláusulas de salvaguarda da sua aplicação, mesmo já para além dos prazos de vigência, e depois multiplicaram-se os prazos.
Pequenas intervenções…
Pequenas e grandes. O prazo de vigência das convenções é curto, mas o de ‘sobrevigência’ pode ir muito tempo. Nós temos um fenómeno que chamo das “convenções coletivas zombie”. Já não estão vigentes, mas continuam a aplicar-se e, sobretudo, estão a impedir a renovação. A multiplicação de arbitragens, para a denúncia, para a ‘subvigência’… Temos sempre tentativas e tentativas sucessivas de evitar a caducidade das convenções coletivas quando a caducidade é determinada por uma cláusula que as próprias partes lá puseram, que as partes quiseram. Portanto, temos que introduzir aqui racionalidade, temos que promover um sistema expedito de renovação.
Mas para garantir essa caducidade? É desejável que exista essa caducidade?
É desejável que as partes, na fase final das convenções coletivas ou até durante a sua aplicação normal, já estejam a discutir a sua renovação, para que essa caducidade não ocorra. Mas se não chegarem a acordo, há uma caducidade. Mas, nesse caso, há toda a panóplia de direitos que o próprio Código de Trabalho e as outras normas laborais garantem. Portanto, não há um vazio normativo. Eu costumo dizer, os países com economias fortes têm uma negociação coletiva dinâmica de fortíssima renovação, de grande dinamismo e com associações patronais e, sobretudo, associações sindicais fortes. Sou, desde sempre, uma grande adepta da negociação coletiva e procurámos traduzir isso neste projeto num conjunto de matérias.

Há uma medida particularmente relevante, e que é uma reversão face à Agenda do Trabalho Digno, que é o Banco de Horas individual. Qual é a razão para esta medida?
O Banco de Horas é um instrumento muito importante de flexibilização do tempo de trabalho, tanto para as empresas como para os trabalhadores. O Banco de Horas começou, antes de estar previsto na lei, numa empresa que é muito importante em Portugal, a Auto Europa, e através de um acordo direto com a Comissão de Trabalhadores, o que também não está previsto na nossa lei, mas está previsto na lei alemã. É muito importante como regime alternativo ao chamado ‘regime de adaptabilidade’. Em Portugal, a adaptabilidade foi introduzida de uma forma razoável, assente sobretudo na contratação coletiva, mas apenas subsidiariamente em relação à contratação coletiva.
Só se não houvesse um regime de contratação coletiva é que poderia haver adaptabilidade individual. Ora, esta salvaguarda… não existiu quando se introduziu o Banco de Horas. Introduziu-se o Banco de Horas por contratação coletiva e depois, mais tarde, introduziu-se o Banco de Horas individual, mas sem esta salvaguarda. Com isto, o que é que aconteceu? Passou a ser mais vantajoso aos empregadores não ir à contratação coletiva para optarem pelo Banco de Horas individual. E os relatórios anuais sobre a negociação coletiva, muito úteis, publicados todos os anos pelo Centro de Relações Laborais, demonstram que a partir do momento em que foi consagrado o Banco de Horas, deixou de haver tanta previsão destas matérias na contratação coletiva, o que é um efeito nefasto.
É a medida mais importante do ponto de vista da flexibilidade do novo Código do Trabalho?
É muito difícil escolher uma: são mais de 100 alterações ao Código do Trabalho, alterámos nove diplomas — portanto, o Código do Trabalho e mais oito diplomas — e temos, na verdade, quatro pilares essenciais.
Quais?
Primeiro, a promoção da flexibilidade e da produtividade das empresas, condição para maior competitividade. Segundo, a valorização de alguns direitos dos trabalhadores que, do nosso ponto de vista, carecem. Terceiro, a compatibilização do exercício do direito à greve com necessidades sociais impreteríveis, de forma mais razoável. Quarto, a aposta no diálogo social e na contratação coletiva. O Banco de Horas insere-se no primeiro — é uma medida importante —, mas há muitas medidas aí muito relevantes, como a revisão do regime do teletrabalho, para acomodar melhor o híbrido, que não estava bem refletido na legislação.
Tratamos as empresas como se fossem todas altamente competentes, com gabinetes jurídicos impecáveis, capazes de cumprir todos os requisitos procedimentais. Não é a realidade das micro, nem, muitas vezes, das médias. As peças essenciais para a defesa do trabalhador não foram retiradas. Não pode ser despedido sem nota de culpa, sem defesa — defesa escrita —, sem comunicação por escrito da intenção de despedir.
Então, onde está a simplificação?
Por exemplo, na obrigatoriedade de ouvir comissões de trabalhadores — que quase não existem…
No eixo da produtividade, outro ponto são os contratos a prazo. O equilíbrio atual não chega para dar flexibilidade às empresas?
Foi das medidas que as empresas mais nos pediram. E aqui, uma boa parte do nosso trabalho decorre de um ano e meio de contacto a ouvir as empresas, para além da análise que este Ministério e este Governo fazem — a avaliação política e técnica.
Os empregadores pediriam contratos a prazo de 6, 7, 8 anos…
…Se calhar até pediriam contratos a prazo sem fundamento — até três anos, sem fundamento. Uma das limitações dos contratos a prazo são os fundamentos objetivos. Em 1976, na primeira lei dos contratos a prazo, não tinham fundamento. Era um regime muito mais aberto do que este. Quando oiço dizer que isto é ultraliberal, lembro-me desse diploma — exigia apenas um fundamento objetivo.
O que muda, em concreto, nesta proposta?
Duas coisas. Alargar um bocadinho os fundamentos dos contratos a prazo, para que possam ser celebrados com pessoas à procura do primeiro emprego, desempregados de longa duração e também reformados — é uma medida positiva de promoção do envelhecimento ativo. Nos outros dois casos, corrige-se um erro da reforma de 2019, quando se retirou a possibilidade de contratar a termo por esses motivos e, em compensação, se instituiu um período experimental de seis meses nos contratos sem termo.
Que acaba por ser um “falso contrato a prazo”.
Exatamente, porque permite que, ao fim de cinco meses e 29 dias, o contrato seja cessado sem qualquer compensação. Se fosse a termo, haveria pelo menos compensação. Passou-se da precariedade controlada do contrato a termo para a precariedade descontrolada de um período experimental de seis meses, apenas porque a pessoa nunca teve um emprego. Nesta proposta, essa norma desaparece. O período experimental específico para estas categorias desaparece, o que têm é o geral.
E quais são as mudanças no período dos contratos a prazo?
Em vez de a duração inicial ser seis meses, passa para um ano (exceto se for substituição temporária, doença, etc.). A duração máxima, incluindo renovações, passa de dois para três anos e, no termo incerto, de quatro para cinco anos. Parece-nos razoável, tanto para a gestão empresarial como para a proteção dos próprios trabalhadores. Disseram que isto aumenta a precariedade. O que aumentou a precariedade foi o período experimental até seis meses nestas categorias, que são também as que têm maior desemprego — por exemplo os jovens, que já conseguimos descer dois pontos este ano (de 21% para 19%, 18,9%). Assim, há maior estabilidade, é mais estável um contrato que pode durar até três anos do que de dois, e ter um ano inicial, e não seis meses. E, potencialmente, as empresas ficam mais tentadas a converter em contratos sem termo se as coisas correrem bem durante um tempo mais razoável.
Quais são as condições para a renovação desses contratos?
Mantêm-se. Podem ser renovados até três vezes, mas simplificámos. Foi retirado o condicionamento que prendia os períodos subsequentes ao contrato inicial, “como se” as circunstâncias não mudassem. O número de renovações é que passa a ser três. Esta norma, aliás, eu coloco-a no pilar da flexibilização e competitividade, mas também no pilar do reforço da posição jurídica dos trabalhadores — porque passam a ter uma situação mais estável do que se tivessem tempos inferiores.
Falou na reintegração dos trabalhadores. Propõe, neste anteprojeto, que a oposição à reintegração possa ser feita em todas as empresas, por decisão judicial. Porquê esta alteração?
A necessidade decorre do fundamento da própria oposição à reintegração, que não tem a ver com o motivo do despedimento. O despedimento foi considerado ilícito. Ainda assim, o regresso do trabalhador pode ser gravemente prejudicial ao funcionamento da empresa. E isso pode acontecer em empresas pequenas ou maiores. Neste momento, isto estava limitado às microempresas — o regime não mudou em nada, a não ser nesta parte. Mas, na verdade, numa empresa até de média dimensão, pode acontecer — dentro de um departamento, de uma secção. Repare, a reintegração é no mesmo posto ou equivalente. Não nos parece que a dimensão da empresa, por si, seja critério para afastar a possibilidade de grave perturbação [laboral]. Em todo o caso, não é uma alteração tão relevante como tem sido lida, porque cabe ao tribunal decidir. O princípio geral é a reintegração; a exceção tem de estar muito bem justificada. O empregador pode opor-se; quem obsta é o tribunal — ou não, se assim o entender. Além disso, há majoração da indemnização nestes casos, 30–60 dias por ano face aos 15–45 dias da ilicitude.
Isso não cria um atalho para despedir, pagando um pouco mais?
Não é uma “pequena” majoração, é o dobro. Admito que alguém tente um raciocínio maquiavélico, mas há situações em que, independentemente da licitude, a presença perturba. E volto ao essencial: decide o tribunal. Espanha, por exemplo, tem um princípio indemnizatório. Nós mantemos o princípio da reintegração. Maior autonomia para despedir, maior custo — o ponto de equilíbrio é central.

Propõe simplificar os despedimentos por justa causa. Porquê?
Apenas nas pequenas e médias empresas.
Como disse, são 95% das empresas…
Temos um traço original na nossa lei: Tratamos as empresas como se fossem todas altamente competentes, com gabinetes jurídicos impecáveis, capazes de cumprir todos os requisitos procedimentais. Não é a realidade das micro, nem, muitas vezes, das médias. As peças essenciais para a defesa do trabalhador não foram retiradas. Não pode ser despedido sem nota de culpa, sem defesa — defesa escrita —, sem comunicação por escrito da intenção de despedir.
Então, onde está a simplificação?
Por exemplo, na obrigatoriedade de ouvir comissões de trabalhadores — que quase não existem… Temos 206 comissões ativas no país. E em exigências como a audição de testemunhas. São elementos não centrais do processo. Se o trabalhador não se conformar, pode ir a tribunal e promover uma providência cautelar de suspensão do despedimento — que tem de ser resolvida em menos de um mês.
Muitas vezes discute-se muito uma medida com impacto mediatizado, mas não tanto nas decisões de empresas e trabalhadores. Há números de ilicitude por irregularidades meramente procedimentais?
Há muitos exemplos. Isso levou a uma alteração da lei relativamente às consequências da ilicitude. Quando se trate de irregularidades procedimentais não essenciais — que não seja faltar a nota de culpa —, o despedimento é considerado irregular, não ilícito. Não há reintegração e a indemnização é reduzida a metade. É uma solução salomónica que teve isso em conta. Mas devíamos sanar preventivamente e não esperar. Temos de diminuir a conflitualidade social.
Há muita conflitualidade?
Há alguma e, infelizmente, por vezes decorre de regimes pouco claros. Tentámos clarificar. E, em alguns casos, fomos mal interpretados, mas o sistema laboral deve assentar no diálogo e não numa luta de classes. No ano passado, assinámos um acordo de valorização salarial que previa, por exemplo, não serem tributados em TSU os prémios de produtividade. Os trabalhadores querem medidas que aumentem os rendimentos; os empregadores querem produtividade. Um regime que protege excessivamente significa fraca produtividade e baixos salários; um regime que desregula dá crises, desgoverno, despedimentos sem controlo. O objetivo é equilíbrio — e é isso que tentamos fazer. As reformas anteriores desequilibraram o sistema.
Na greve, propõe mudanças, mas limitadas a serviços mínimos. É aí o essencial?
O regime da greve é interessante porque trata do momento mais “bélico” das relações de trabalho — os trabalhadores recusam-se a trabalhar. Apesar disso, o regime foi muitíssimo estável desde o 25 de Abril. A lei teve uma versão em 1974 (moderada demais), outra em 1977 que vigora sem alterações de fundo até ao Código do Trabalho de 2003 — e foi transposta com poucas alterações — e aplicou-se também à Função Pública. Portanto, é um regime equilibrado. Precisa de ajustes mínimos, nos próprios serviços mínimos. Onde intervir? Não na garantia do direito à greve, que se mantém intacta, mas na conjugação com necessidades sociais impreteríveis. Há um alargamento pequeno, a três setores: abastecimento alimentar (já havia águas, não havia alimentar), cuidados a crianças e dependentes (lares, creches) — onde vi, ao longo deste ano e meio, consequências muito duras — e segurança de bens essenciais. Introduzimos ainda uma clarificação…
Qual?
Nestes setores, e noutros onde haja necessidades impreteríveis, é necessário decretar serviços mínimos, cabendo ao tribunal arbitral fixar a medida. Deixa de haver decisões a dizer que não há serviços mínimos.
Isso interfere com o espaço de decisão do tribunal?
O espaço de decisão de qualquer tribunal é o que a lei confere — seja arbitral ou não. Havia grande divergência jurisprudencial. Uns juízes entendiam que sempre tinha de haver serviços mínimos, outros [entendiam] que, em alguns casos, poderia não haver. A lei clarificou — resolve a incerteza.
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“É mais estável um contrato que pode durar até três anos do que até dois”
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