O Orçamento do Estado para 2018 tem de dar prioridade ao aumento dos rendimentos de quem ganha menos, à saúde e ao investimento.
Estamos na quarta e última parte da entrevista de Francisco Louçã ao ECO. Aqui falamos do que deve ser o Orçamento do Estado do próximo ano, dos casos de Tancos e de Pedrogão, da vida do Bloco e do percurso de Francisco Louçã.
Quais deveriam ser as prioridades do Orçamento do Estado para o próximo ano?
O Orçamento do Estado tem estado condicionado por uma tesoura fechada, entre previsões orçamentais muito conservadoras e regras muito restritivas. Se vir o estudo do Ricardo Cabral, Paulo Trigo Pereira e de outros colegas, eles calculam que, mesmo para o ano corrente, existiria uma folga suplementar de mais 600 milhões de euros, suscitada pelo facto de as previsões terem sido sempre muito restritivas. A aplicação desse dinheiro permitiria um nível superior de impulso à procura agregada, particularmente por via do investimento, que é onde tem havido um défice maior. Creio que no próximo Orçamento há um problema social e um problema económico. Há um problema social, porque há compromissos do Governo, que têm que ser cumpridos, que são caros, como a recuperação das carreiras, a subida das pensões, a redução do IRS nos trabalhadores mais pobres ou de ordenados médios. Há um custo fiscal, mas tem um efeito muito importante sobre a economia, de aumento da procura sem criar uma pressão sobre as importações.
Como sabe [que não tem efeito nas importações]?
Porque aumentar 10 euros numa pensão de 250 euros não permite a essa pessoa importar um BMW. Há aumento do consumo corrente que é dirigido às atividades normais da economia.
Temos um outro problema social, que é o défice oculto. Há um défice oculto quando o Estado não faz os gastos que tinha de fazer na renovação do sistema de Saúde, por exemplo. Não estou a falar nos pagamentos atrasados, porque esses são contabilizados. Estou a dizer a falar em não despesa. O Estado não substitui uma máquina de TAC. Isso não conta nas contas públicas e na verdade é um défice social, porque os serviços de saúde vão perdendo capacidade. E esse défice é muito importante, particularmente na Saúde. Sei que foram contratados 8 mil novos profissionais. Sei que precisamos de mais, que precisamos de equipamentos, precisamos de alteração de políticas no medicamento para produção de genéricos e diminuição de importações.
E finalmente, há o problema do investimento. A variável de ajustamento, nas contenções orçamentais dos últimos anos, foi sempre o investimento público e isso levou-nos a níveis de execução muito deficiente, por exemplo, dos fundos estruturais. É preciso mais investimento público, que arraste mais investimento privado e que permita, nos fundos estruturais e noutros projectos, dar confiança suficiente para melhorar a capacidade produtiva.
Prioridade no investimento, prioridade na saúde e prioridade no aumento do rendimento de quem ganha menos?
Sim. E por isso é que é importante que o IRS seja o foco dessa alteração, para que afete os trabalhadores do setor privado.
Este Governo tem uma política de contenção orçamental, mas de recuperação de rendimentos, criando estímulos que, do ponto de vista social, são sinais muito positivos, de descontração, de alívio para a vida das pessoas. E do ponto de vista económico têm efetivamente um efeito.
Não acha irónico que o Governo que mais criticou o Tratado Orçamental e as políticas de redução do défice, seja também aquele que conseguiu ir “além da troika”, no sentido em que obteve um resultado do défice melhor que previsto?
Os resultados são melhores que todas as doutrinas. Os resultados é que mudam a situação política portuguesa. Se as pessoas sentem um grande alívio, ficam muito satisfeitas por haver um grande alívio. O curioso é como é que o Governo PSD/CDS falhou tanto. Na verdade, a resposta é que teve uma política abertamente recessiva. Este Governo tem uma política de contenção orçamental, mas de recuperarão de rendimentos, criando estímulos que, do ponto de vista social, são sinais muito positivos, de descontração, de alívio para a vida das pessoas. E do ponto de vista económico têm efetivamente um efeito. Poderia ter ido muito mais longe? Sem dúvida que sim. Se tivesse ganho alguma margem de manobra em relação à gestão da dívida. É evidente que hoje podíamos ter uma recuperação muito mais sólida e mais almofadas de proteção contra riscos financeiros futuros. Porque Portugal, tal como a União Europeia, enfrenta grandes riscos financeiros em 2018/2019, por causa de múltiplos fatores. Alguns que nos são externos como a administração Trump, a bolha imobiliária na China, a crise estrutural do euro, o desarranjo de alguns bancos em alguns países, como por exemplo em Itália. Temos riscos muito fortes. E devíamos estar mais protegidos do que aquilo que estamos.
Como é que podíamos estar mais protegidos?
Se tivéssemos mais capacidade de recuperação da estrutura produtiva portuguesa, através de mais investimento.
Mais investimento feito por quem? Pelo Estado?
Esse é sempre o problema keynesiano. Quando não há investimento público, o Estado deve fazer investimento. Mas a solução que tivemos foi reduzir.
Mas Portugal tem poucas áreas onde possa investir. Onde é que poderia investir?
Todo o apoio aos fundos estruturais exige uma capacidade de intervenção significativa do Estado e tem um grande efeito multiplicador sobre a economia, como as experiências têm comprovado. As auto-estradas que atravessam regiões desertas não têm grade efeito. Mas um porto com boas condições tem um grande efeito. Ter infraestruturas que são decisivas para atividade económica tem um grande efeito, assim como capacidade de criação de patentes e inovação tecnológica. Não há nada, na investigação de ponta, hoje, que não tenha começado no sector público.
Porque é que pensa que esta política orçamental não trocou, de alguma forma, a degradação dos serviços públicos por mais rendimentos aos funcionários públicos?
Pela simples razão que nós começamos com uma enorme degradação dos serviços públicos ao longo do tempo. E hoje, na escola, por exemplo, não vivemos as perturbações que tínhamos. Lembre-se quando o Governo PSD/CDS atrasava a abertura do ano escolar em cerca de um mês. Porque não conseguia ter as listas completas. Os serviços públicos degradaram-se muito durante o tempo da troika e foram pouco recuperados até agora. Mas não estão pior do que estavam antes. A municipalização da Carris em Lisboa é uma boa notícia para evitar a degradação por que passaria com a privatização.
Se calhar com a privatização já se teria feito alguma coisa?
A privatização era um desastre. Pela simples razão que a privatização é incompetente para responder aos problemas das necessidades sociais. Procura rentabilidade.
Onde está a outra parte da política económica que não seja apenas uma política de funcionários públicos?
A redução da sobretaxa ou o aumento das pensões não é de funcionários públicos. É dos trabalhadores mais pobres de Portugal. É uma política que significa aumento da capacidade produtiva da economia, porque significa mais procura. A redução do IRS é para os trabalhadores do sector privado.
Não creio que [o caso de Tancos] esteja esclarecido. (…) Eu ouvi o ministro dizer isso [que poderia não ter havido roubo em Tancos]. (…) Não tenho hoje atividade política que me leve a fazer comentários sobre cada um dos casos.
O caso Tancos [do desaparecimento de armas] está suficientemente esclarecido?
Não creio que esteja esclarecido.
O que pensa do relatório publicado pelo Expresso?
Eu não li o relatório, só vi o que foi publicado sobre ele.
O que é preciso esclarecer?
É preciso saber quem tem as armas.
Para si, é um dado adquirido que as armas foram roubadas?
Não sei.
Não sabe?
Não me peça informações sobre um caso que não tenho conhecimento. Eu ouvi o ministro dizer isso [que poderia não ter havido roubo em Tancos]. Estranhei um pouco, porque inicialmente o Governo o que anunciou é que terá havido um roubo. Eu parto desse princípio.
Não há aqui responsabilidade política que Louçã, noutros tempos, não perdoaria?
Não tenho hoje atividade política que me leve a fazer comentários sobre cada um dos casos. Acho muito surpreendentes as sucessivas declarações do ministro.
Devia demitir-se?
Isso não é comigo.
E o caso de Pedrógão e os incêndios deste ano? Desorganização do Estado? Pensa que não há degradação dos serviços?
Eu acho que há degradação dos serviços. Como sabe eu fui muito crítico de se ter formado uma comissão para se fazer um relatório. Penso que o Estado devia tê-lo feito mais depressa e por si próprio, independentemente de outras investigações. Mas agora estamos condicionados a esse facto. Não acho que haja dúvidas de que houve descoordenação nas primeiras horas. E que o serviço de Proteção Civil não estava preparado para um drama daquelas dimensões e com aquela concentração, que levou àquela tragédia. Creio que nos dias seguintes respondeu melhor e creio que está a responder melhor. Mas temos um problema estrutural de combate aos fogos. Não por nos faltar capacidade profissional, mas porque Portugal teve uma política florestal que vai gerar, permanentemente desastres, deste tipo.
O BE fez um percurso muito inteligente. Respondeu muito bem à situação política, com muita capacidade. Mostrou uma forma de trabalhar, que cria grande confiança pública, e prosseguiu de uma forma notável.
O BE deixou de ser um partido de protesto, está a institucionalizar-se e a aproximar-se da esquerda do PS?
Não me está a entrevistar como dirigente do BE, porque não sou. E falo pouco sobre isso. O BE fez um percurso muito inteligente. Respondeu muito bem à situação política, com muita capacidade. Mostrou uma forma de trabalhar, que cria grande confiança pública, e prosseguiu de uma forma notável. É um partido que é capaz de fazer luta social, protesto se quiser. E que mostrou que o faz mudando o curso do país, contribuindo para respostas concretas, para soluções, para debates, para alternativas. E isso coloca-o como um partido capaz de trazer segurança, confiança, responsabilidade na política portuguesa. E isso foi um contributo decisivo para os últimos dois anos.
Poderá o BE, um dia, fazer parte de um Governo?
Quando tiver votos para isso.
Não em governos de coligação?
O futuro o dirá.
Sinto-me como sempre fui. (…) Republicano, laico e socialista.
É filho de um oficial da Marinha e de uma advogada, há 60 anos, muito invulgar para uma mulher naquela época. Na prática pertence a uma família da elite. Como é que se converte à esquerda radical?
Já falei tanto sobre isso. Estava no ensino secundário num tempo de ditadura. Ditadura queria dizer total restrição às liberdades, medo permanente e uma certeza: é que qualquer jovem chegava aos 18 anos e teria que participar numa guerra colonial. Este cocktail – ditadura e guerra colonial – levava muitos jovens [a terem esse percurso]. Eu não sou caso único.
Da elite é capaz de ser.
No meu liceu havia muitas pessoas que fizeram o mesmo percurso que eu. Santana Lopes foi para a direita, como se sabe. Mas há muitos outros que participaram em lutas políticas da esquerda, sobretudo naquele período e depois disso. Depois disso, durante alguns anos, viajei bastante pela América Latina. Conheci as ditaduras do Chile, da Argentina, do Paraguai, no Brasil… Perceber como funcionava este império mundial e esta forma de destruição de povos, de democracia, de pessoas, confirmou a minha ideia que era preciso uma alternativa em que pudéssemos viver como o povo quer. Em que se possa ter uma vida política aberta, uma democracia vibrante, uma capacidade de participação. E isso creio que é o significado do socialismo.
Ainda se sente de esquerda radical?
Sinto-me como sempre fui.
O que significa…
Que sou o mesmo: republicano, laico e socialista.
Conheceu Marcello Caetano. Lembra-se?
Sim, foi professor da minha mãe.
Na sua biografia conta-se que quando lhe perguntou o curso que queria e lhe disse que era Económicas, ele disse que eram todos de esquerda?
Estávamos nos anos finais da ditadura. Os responsáveis da ditadura sentiam que os jovens lhes fugiam muito, que o movimento estudantil lhes escapava. A minha universidade esteve fechada de 73 a 74.
Que memória tem de Marcello Caetano?
Uma memória de fragilidade.
E essa memória de fragilidade consubstanciava-se em quê?
A ditadura não controlava uma grande universidade pública. Não podia determinar a sua vida. Havia territórios da cidade, do nosso país, que já estavam insubmissos em relação a uma ditadura que haveria de terminar meses mais tarde. Eu estive na Capela do Rato durante 24 horas. Muitas pessoas da elite. O Francisco Sousa Tavares, tanta outra gente, o Nuno Teotónio Pereira, que eram da elite. E lá estavam a protestar contra a Guerra Colonial. Depois disso é que fui preso.
Em dezembro de 72, passou a passagem de ano na prisão?
Em Caxias.
Tem memórias disso?
É um choque. Ao contrário de pessoas que foram presas comigo, eu tinha acabado de fazer 16 anos e fui libertado dias depois sob caução. Outras pessoas ficaram mais tempo e submetidas a pressões e a torturas. Eu fui interrogado, mas nada de assustador.
O dono de Portugal é o dinheiro. Foi na ditadura e depois foram as mesmas famílias que se reconstituíram depois das privatizações. (…) O poder político foi profundamente modificado.
Porque é que esta elite, da qual faz parte, não é também o “dono de Portugal” [“Os Donos de Portugal” é um livro de que Francisco Louçã é co-autor)?
Porque o dono de Portugal é o dinheiro. Foi na ditadura e depois foram as mesmas famílias que se reconstituíram depois das privatizações.
Mas essas famílias também se reconstituíram no poder político?
Não. O poder político foi profundamente modificado. O PCP era clandestino, deixou de o ser. O PSD vem de uma pequena parte da ala liberal da união nacional, que estava já em choque com a ditadura. Lembro-me de ter havido uma intervenção de um deputado da ala liberal a defender os presos da Capela do Rato. O CDS vem mais de dentro do aparelho do regime. Mas renovou-se geracionalmente.
Os socialistas vêm muito da elite portuguesa?
Mário Soares era interveniente desde os anos 50/60. Mas o António Costa não tinha nenhuma atividade política antes do 25 de abril, era muito miúdo. Toda essa geração é diferente.
Mas ele próprio, António Costa, pertencia à elite.
É filho do Orlando Costa. Mas não vai pedir que haja uma espécie de fidelidade de classe social.
Estou a desafiá-lo a refletir sobre isso.
Mas as sociedades são assim.
E a elite lisboeta está muito associada à esquerda, mais do que à direita? Até que ponto esta elite não é também um pouco “a pena dos pobrezinhos”?
Acho que é preconceito. Se vir as listas do CDS, vê as famílias queques da capital. Se vir as listas do BE vê gente do povo. Vê professores universitários como vê pedreiros ou amas.
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