O sentimento nas escolas tem sido de intranquilidade, entre protestos e greves. Mário Nogueira frisa, contudo, que os pais estão mais preocupados com aulas perdidas por causa da falta de professores.
No dia em que arranca o novo ano letivo, o secretário-geral da Federação Nacional dos Professores (Fenprof) garante que a luta em torno da recuperação do tempo de serviço congelado vai continuar até que chegue a bom porto. E avisa, em entrevista ao ECO, que solucionar esta questão poderia dar um contributo importante para a melhoria do sentimento vivido nas escolas, que, nos últimos meses, tem sido de intranquilidade.
Mário Nogueira sublinha que, neste momento, a não recuperação dos cerca de seis anos de tempo de serviço já é “uma questão de obstinação” por parte de um Governo, alertando que os professores não vão pactuar com o roubo que seria, afirma, reconhecer um dia a menos do período que foi trabalhado.
Em entrevista, o sindicalista fala ainda da relação com o STOP e frisa, insistentemente, que a Fenprof se pauta pela responsabilidade e pelo respeito para com os demais sindicatos com os quais convive.
Em 2019, em entrevista ao ECO, disse que “estava fora de hipótese” não recuperar na íntegra o tempo de serviço relativo ao período de congelamento das carreiras. Quatro anos depois, uma parte desse período ainda está por recuperar, mas os professores continuam a insistir. O que o leva a acreditar que essa recuperação vai mesmo acontecer?
Faltam 2.393 dias. Seis anos, seis meses e 23 dias. Aquilo que me leva a continuar a acreditar que está fora de hipótese não haver essa recuperação, independentemente do primeiro-ministro atual até ter posto em causa a continuidade do seu Governo, no dia 2 de maio de 2019 – penso até que foi a única vez que António Costa pôs a possibilidade do seu Governo se demitir –, é que esta é uma questão que os professores sentem que é algo que é seu e lhes estão a tirar. Os professores não estão a exigir um aumento salarial de ‘x%’, porque a inflação foi esse valor. O que está em cima da mesa é que houve um período em que os professores trabalharam, apesar das progressões estarem congeladas, em que tiveram os cortes salariais, e em que tiveram todas essas medidas de sacrifício. Depois, o que é que os professores viram? De uma forma geral, na Administração Pública, todos os trabalhadores recuperaram esse tempo de serviço. Mais: viram que aos seus colegas da Madeira ou dos Açores, com os mesmos horários, as mesmas responsabilidades, as mesmas exigências, o tempo de serviço está a ser recuperado integralmente. Portanto, os professores sentem duas coisas. A primeira é que lhes estão a tirar algo que é seu. E quando alguém nos tira algo que é nosso, lutamos até ao fim para recuperar o que é nosso. Segundo, os professores sentem-se discriminados. Quando alguém se sente discriminado, luta para que seja feita justiça. Até ao último professor que tenha tempo ainda por recuperar e até ao último dia desse tempo, os professores não vão deixar de lutar.
“A razão pode demorar muito, mas acaba por vencer”. Estou a citar o que disse em entrevista ao ECO em 2019. Portanto, continua convencido que os professores poderão vencer esta luta, apesar de todo o histórico que vai em sentido contrário?
Neste momento, acho que já estamos até perante uma questão mais de obstinação do que propriamente uma questão política. Nem sequer estamos a exigir que para o ano o Governo conte o tempo de serviço todo. Os sindicatos apresentaram uma proposta de recuperação faseada. Propomos que a recuperação seja feita até ao final da legislatura, em três momentos: 2024, 2025 e 2026. Mas pode ser em 2027 ou até 2028. Estamos disponíveis para discutir isso, não estamos é disponíveis para perder este tempo. Do ponto de vista da massa salarial global, nos primeiros três anos poderia significar, se a recuperação fosse em três anos, um aumento que nem sequer chegaria aos 4%. Nos anos seguintes, haveria imediatamente um decréscimo por conta da saída de milhares e milhares de professores para a aposentação. A massa salarial global seria ao fim de meia dúzia de anos mais baixa do que é hoje e o tempo de serviço seria contado.
Portanto, o argumento financeiro de que a recuperação tem um impacto incomportável não colhe.
Não, não colhe. Há aqui obstinação, um não querer dar o braço a torcer, porque os políticos pensam sempre que, quando dizem uma coisa, voltar atrás é sinal de fraqueza. Sinal de fraqueza é ficar teimoso numa posição que prejudica as pessoas, tanto no imediato – porque estão a ganhar menos –, como no futuro, por causa da aposentação.
Se o Governo propuser recuperar mais tempo do que já têm garantido, mas menos do que o total, há disponibilidade da vossa parte, fazendo algum compromisso?
Recuperar menos do que aquilo que as pessoas trabalharam significava pactuar com um roubo. Não devemos pactuar, nem ser cúmplices de roubos. A hipótese de se deixar tempo de serviço por recuperar está fora da mesa, porque também não foi deixado nos outros setores. Porque é que os professores são menos? Provem-nos que não é financeiramente suportável e encontraremos soluções que o sejam. O Governo já cedeu em 30%. Consideramos isso um primeiro momento de recuperação. Agora falta o resto.
Eles percebem que estão a roubar tempo de serviço aos professores e, portanto, não se sentem cómodos, quando se fala nisto. Mas há uma decisão política deste Governo, que aos professores não se conta o tempo de serviço.
A Fenprof entregou recentemente uma proposta que prevê a recuperação de 798 dias por ano até ao fim da legislatura. Já receberam do Ministério da Educação alguma proposta de agendamento de uma reunião?
Sabemos que muito em breve vai ser marcada uma reunião para discutirmos as questões relacionadas com a formação de professores. Nessa reunião, levaremos vários assuntos que, além do que é o tema central, correspondem a problemas por resolver. [Quanto à recuperação do tempo de serviço], entregámos uma proposta fundamentada, do ponto de vista financeiro, político, e da justiça. A não marcação de uma reunião para iniciar um processo negocial em torno daquela proposta seria ilegal. O Governo cometeria uma ilegalidade, se não marcar esse processo.
Que postura é que tem encontrado da parte do Governo?
Sentimos grande incomodidade. Eles percebem que estão a roubar tempo de serviço aos professores e, portanto, não se sentem cómodos, quando se fala nisto. Mas há uma decisão política deste Governo, que aos professores não se conta o tempo de serviço. No que diz respeito a reuniões, tivemos um período com o anterior ministro, Tiago Brandão Rodrigues, que foi um autêntico deserto. O ministro não contactava com os sindicatos. Nós só víamos o ministro quando havia cerimónias desportivas. A certa altura até estávamos a pensar fazer uma manifestação de fato de treino. Não é o caso agora. Temos tido muitas reuniões e sobre os mais variados assuntos. Há reuniões, mas não há soluções. Estou convencido que, se esta matéria — que não resolve os outros problemas, mas que resolveria esta injustiça tremenda que as pessoas sentem — tivesse uma solução, a intranquilidade que se tem sentido em muitas escolas era capaz de ser ultrapassada. Não digo que na totalidade. Há outras questões. Mas acho que seria um grande contributo.
Não marcamos greves por atacado, nem marcamos greves como objetivo. A luta surge na sequência do que é ou não a capacidade que encontramos do outro lado para dar resposta aos problemas.
Sobre a intranquilidade, estão em cima da mesa mais greves até ao final do ano? Para outubro, já têm uma sinalizada, julgo. Haverá mais?
Não marcamos greves por atacado, nem marcamos greves como objetivo. A luta surge na sequência do que é ou não a capacidade que encontramos do outro lado para dar resposta aos problemas. Vamos apresentando propostas, porque achamos que as lutas devem fazer-se sempre em torno de propostas, e não de luta por luta. Em convergência com mais oito organizações sindicais, temos já prevista para a semana europeia do professor a colocação de pendões nas escolas, outdoors, um plenário junto à residência oficial do primeiro-ministro, uma conferência internacional e uma greve para assinalar a insatisfação. Depois, passado uma semana, teremos a proposta de lei do Orçamento de Estado. Se essa proposta de lei der resposta a estes problemas, significar um aumento do financiamento da Educação…
Não havendo esse aumento, haverá nova luta. É isso?
Se virmos que a distribuição fará com que tudo se mantenha na mesma, com certeza que estamos a pensar, no dia em que o ministro da Educação for à Assembleia da República defender a parte da Educação, ter aí um dia grande de luta.
O STOP convocou uma greve para o arranque do ano letivo. A Fenprof não se juntou. Porquê?
O STOP é que sabe o que é que marcou. Isso é um problema do STOP, não é nosso.
Há uns dias falava em sindicalismo construtivo. Era por oposição a um eventual sindicalismo destrutivo, por exemplo, do STOP?
A Fenprof não tem agido sozinha. Está num grupo de nove organizações sindicais, que convergem. São sindicatos muito diferentes. Temos sobre a escola, sobre a profissão, sobre o mundo e sobre a vida, opiniões diferentes. Mas há uma coisa que temos entre nós, que é respeito. Havendo respeito entre as pessoas e as organizações, não havendo ataques pessoais, não havendo ataques às outras organizações, não havendo quem se ponha em bicos de pés, conseguimos trabalhar em convergência. Quando não existe esse respeito e alguém acha que é o Sol e que o resto é um sistema que gira em torno de si, claro que não tem lugar num conjunto de nove sindicatos.
Numa altura em que o sindicalismo tem estado a decair, de forma global, como vê o surgimento de novas estruturas e movimentos, como o STOP?
Em Portugal, nos professores, os sindicatos têm uma grande representação. Penso que em Portugal a sindicalização de professores é na ordem dos 70%. Não há uma crise de sindicalização. Quanto ao surgimento de outro sindicato, já havia bastantes e há agora mais um. Não há nenhuma novidade.
Acho que os pais estão mais preocupados com as aulas que os filhos não tiveram, não devido às greves, mas pela falta de professores.
Somando as ações do STOP à da Fenprof, o início deste ano ficou marcado por uma sucessão de paralisações, com milhares de alunos e famílias a serem afetados. Não teme que a luta dos professores perca, de algum modo, a simpatia dos portugueses, por estar a perturbar continuamente as suas rotinas?
A Fenprof e as outras organizações sindicais, no ano passado, marcaram cinco ou seis dias de greve, se tantos. Portanto, os dias de greve foram marcados pela FENPROF e por mais oito organizações sindicais de forma responsável e em articulação com os momentos importantes da negociação. Não estivemos envolvidos em greves de semanas seguidas ou com fim indeterminado.
Mas essas greves de semanas seguidas existiram.
Não temos nada que ver com isso.
Mas que impacto é que essas greves podem ter no modo como os portugueses olham para a luta dos professores, em geral?
Pergunte ao Ministério da Educação qual foi o impacto dessas greves e qual foi a adesão, e talvez compreenda porque é que os pais não ficaram muito preocupados com greves por tempos indeterminados. Os níveis de adesão e participação foram muito baixos. [A Fenprof] não chega aqui e diz que vai fazer greve mês e meio. Temos de ter responsabilidade. Acho que os pais reconhecem isso. Acho que os pais estão mais preocupados com as aulas que os filhos não tiveram, não devido às greves, mas pela falta de professores.
Outro tema que aflige os professores é o envelhecimento. O problema não é novo. Há anos que a OCDE tem feito avisos. Tem registado da parte do Governo alguma intenção efetiva de lutar contra esta situação?
Rigorosamente nenhuma. Quando oiço que se calhar até haver a possibilidade de alguns aposentados poderem vir dar aulas por causa da falta de professores, acho que o envelhecimento não é um problema que esteja a assustar o Ministério da Educação. Os professores até 2005 aposentavam-se aos 36 anos de serviço. Em 2006, mudou o regime e passou a exigir-se 60 anos de idade com 40 de serviço. Depois, aumentou para 65 de idade. Agora já vai em 66 e alguns meses. Há um grupo de milhares de professores que, à medida que ia chegando a altura de se aposentarem, a aposentação fugia-lhes. Muitos dos que estão hoje a chegar à aposentação, são professores que deveriam ter-se aposentado há 15 anos. Havia mais ou menos um fluxo de saídas e entradas e, portanto, de rejuvenescimento, que de repente parou.
Como é que se faz agora a atração de jovens para a profissão?
Valorizando a profissão. Se as pessoas pensam que vão ficar anos em precariedade, vão ser colocadas a centenas de quilómetros e não têm sequer um apoio para o arrendamento de casa ou para a deslocação com filhos, nas condições em que trabalham nas escolas e na questão da carreira… enquanto não forem resolvidos estes problemas, não haverá um rejuvenescimento. O que vai acontecer é que o número de professores que sai não é compensado, longe disso, pelos que entram.
Não é por acaso que milhares de professores de colégios privados vieram para o público. Porque se aqui está mal, lá é miserável.
Sobre as condições dos professores. Há alguns dias foi anunciado que 20 mil professores do privado vão receber um prémio para compensar a inflação a partir de setembro. Como é que o setor público vê esse prémio?
É uma vergonha. Esse [prémio de] 4%, que ainda por cima pode ser em subsídio de alimentação ou em dias de férias, só acontece porque no privado se paga miseravelmente aos professores. Não é por acaso que milhares de professores de colégios privados vieram para o público. Se não fosse isso, a crise da falta de professores [no público] ainda seria maior. Alguma falta de professores tem sido, apesar de tudo, em algumas regiões e nalgumas disciplinas, mitigada pela vinda dos professores dos colégios privados. Porque se aqui está mal, lá é miserável.
O Orçamento do Estado para 2024 está à porta. Que expectativas tem?
Na perspetiva dos professores, temos estado a viver um processo de desresponsabilização do Estado, através do Orçamento de Estado, em relação ao financiamento da Educação. Cada vez mais, o Governo procura que as verbas que o Estado central deveria atribuir à Educação sejam atiradas para duas outras fontes de financiamento. Por um lado, os fundos europeus, que neste momento estão quase nos milhões de euros a entrar no financiamento da educação pública. E, por outro lado, os municípios, que, como sabemos, vivem alguns deles dificuldades, porque não têm dinheiro para mandar arranjar a rua e agora tem também esta responsabilidade. Enquanto este for o caminho, vamos ter muita preocupação com o financiamento, porque sabemos que os fundos comunitários, quantas vezes, a certa altura, alteram o seu próprio rumo. E em relação aos municípios, o problema aqui é o das assimetrias. Há municípios muito ricos. E depois há outros muito pobres. Enquanto não houver verbas para resolver os problemas dos professores, das escolas e das famílias, iremos ver com maus olhos o Orçamento do Estado.
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“Intranquilidade nas escolas poderia ser ultrapassada” com recuperação do tempo de serviço dos professores
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