Rute Oliveira Serôdio é sócia da PRA da área de contencioso e arbitragem. É a advogada escolhida pela Advocatus na rubrica "Como é fazer contencioso em plena pandemia?".
Rute Oliveira Serôdio é sócia da PRA da área de contencioso e arbitragem. Considera que não há necessidade der reduzir as férias judiciais e critica a justiça fiscal e administrativa. Defende ainda que o combate à corrupção pelas autoridades públicas tem estado mais parados devido ao combate à pandemia.
As férias judiciais são um tema que é politicamente recorrente. Perante este contexto da pandemia, concorda que deveriam ser reduzidas, de forma a recuperar o tempo perdido? Parece-me uma solução simples mas que terá alguns anti – corpos.
Durante as férias judiciais os prazos em processos não urgentes, estão suspensos, mas podem ser praticados atos pelas secretarias que irão produzir efeitos após o termo destas. Os processos urgentes continuam sempre a correr os seus termos, e reduzir o período de férias criaria mais perturbação do que verdadeira recuperação.
Fala-se ou falou-se em situações de pre rutura do SNS. E do sistema de Justiça? O que se pode esperar com esta paragem derivada da pandemia?
Há de facto tribunais que já estavam “afundados” como sejam os tribunais administrativos e fiscais, que vão ainda ficar piores. O relatório de evolução do sistema da Comissão Europeia para a Eficiência da Justiça, divulgado no final do ano passado, aponta que em Portugal, a decisão de processos administrativos em primeira instância, continua acima dos 900 dias e acima dos 1000 dias na segunda instância, e continuamos a ter uma das taxas mais altas de processos administrativos pendentes.
Mas também os juízos de execução, que ainda sofrerão atrasos maiores, onde claramente deve haver um reforço e melhoria de meios humanos e técnicos.
Quem serão as maiores vítimas desta paragem?
Tal como no SNS serão os utentes que estão mais dependentes e expostos ao bom funcionamento do sistema de justiça a precisar de cuidados urgentes e atempados.
O discurso dos atrasos na Justiça é recorrente. Já foram adiadas 50 mil diligências devido à Covid-19. Esta passará agora sempre a ‘desculpa’ para esses mesmos atrasos?
Gostaria muito que assim não fosse, e como é sabido, os prazos para os advogados, ao contrário do que ocorre com os demais players, não são meramente indicativos. Nós temos que cumprir os prazos “no matter what” e muitas vezes com manifesta frustração, encontramo-nos sem explicações plausíveis para apresentar aos clientes, que esperam anos por uma decisão definitiva. Se não existir controlo mais eficiente dos prazos, a justiça acabará de facto de “rastos”.
Os processos urgentes continuam sempre a correr os seus termos, e reduzir o período de férias criaria mais perturbação do que verdadeira recuperação”.
Não é fácil ser PM ou ministra da saúde nesta fase. Estamos reféns das opiniões de demasiados especialistas?
As opiniões dos especialistas nesta matéria são fundamentais, a questão colocar-se-á no modo de as implementar e cotejar com os interesses existentes e conflituantes que delinearão a decisão política.
Fazer contencioso em confinamento é possível?
Não só é possível, como ficou demonstrado, mas inclusivamente trouxe um conjunto de vantagens, evitando-se esperas, muitas vezes prolongadas para o início das audiências, evitando-se deslocações, adiamentos por falta de salas, e torna-se mais fácil a conciliação de agendas. Mas não funciona em processos que seja necessário confrontar as testemunhas com documentos, penso que a alteração do Código de Processo Civil que aplicou o princípio «Digital como Regra» a todos os processos cíveis, poderá ainda ser melhorado, a partir do momento em que se consiga visualizar os processos no citius como um pdf único ou em sistema de livro podendo ser partilhado no decurso do julgamento. Acredito mesmo que se devia manter a possibilidade de serem feitas diligências à distância, para audiências que somente tivessem participação dos mandatários. Penso que ainda há muito para desenvolver nesta área.
Dá-se ao “luxo” de poder recusar casos?
A recusa de casos não deverá ser equacionada como um “luxo” mas como uma necessidade, pois não devemos aceitar o patrocínio de questões para as quais não temos competência e/ou disponibilidade para dela nos ocuparmos prontamente, em casos de não conseguirmos garantir o sigilo profissional ou existindo conflitos de interesse. Já me ocorreu nesta última situação, sim.
O facto de estar integrado num escritório de grande dimensão, corta-lhe as vazas para aceitar alguns clientes?
Na linha da última resposta, terei que dizer que sim, quer por existir ou poder vir a existir conflito com interesses de outros clientes, e termos que recusar, o que não seria tão provável acontecer em sociedades de menor dimensão. Mas mantenho intacta a autonomia para recusar os patrocínios que considero injustos.
Sente que o escritório onde está, pela estrutura que tem, dá menos valor ao contencioso e mais a uma advocacia de negócios?
Não, o departamento de contencioso tem um peso bastante preponderante na PRA e cada vez mais especializado, havendo um saudável convívio entre ambas as “advocacias” com sinergias recíprocas bastante positivas.
O contencioso já foi mais valorizado do que é?
Continua a ser um departamento core, e considero que somos mesmo os pontas-de-lança desta grande equipa, composta por todos os departamentos.
E as boutiques nesta área fazem sentido?
Há mercado para todos, mas penso que as dificuldades serão crescentes se considerarmos as boutiques como os pequenos escritórios que exercem contencioso em todas as áreas. Talvez boutiques em áreas muito especializadas façam mais sentido, quase tanto, como os departamentos especializados.
Já foi ameaçado ou insultado em tribunal?
Em tribunal não, mas há uns anos atrás, senti-me ameaçada numa penitenciária onde me tinha deslocado para consultar um recluso, e os guardas prisionais, finda a diligencia, demoraram mais de uma hora para me deixar sair das instalações.
Qual foi o caso em que saiu do tribunal e pensou “saí-me mesmo bem!”? Sem falsas modéstias.
Para ser franca, sinto-me muito satisfeita maioritariamente em duas situações, quando fechamos um excelente acordo judicial e antevíamos que o desfecho da lide seria desfavorável ao cliente, ou como aconteceu noutro dia, nas alegações conseguimos dar a volta a um processo em que a condenação se fazia anunciar no decurso do julgamento.
A Justiça faz-se condenando. Esta é a tese que domina na opinião pública. Como explicar ao cidadão comum que não é esse o caminho?
Muito simplesmente porque nem todos os casos que chegam a julgamento deveriam lá chegar, e refiro-me aos processos crime em que a defesa poderia ser mais ativa precocemente e haver um maior envolvimento do advogado em sede de inquérito.
Por outro lado, há condenações que quando ocorrem já não servem os propósitos da justiça, pois demoraram tanto tempo até ser proferida decisão, que já não serve às vítimas nem aos arguidos.
Como é a sua relação com a magistratura. É do tipo de advogada conflituosa, diplomata, respeitadora ou mais provocadora?
Considero-me mais respeitadora e diplomata, com um tempero de impetuosidade, mas sem descurar o dever geral de urbanidade. Já participei em julgamentos que no final, fico com uma certa “pena” por terminarem, pois, a relação de trabalho que se construiu era muito boa.
Se fosse ministra da Justiça quais seriam as suas três prioridades?
Apontava mira à afetação de recursos orçamentais ao sistema de justiça para colmatar a falta de recursos materiais e humanos e pôr em funcionamento os gabinetes de assessoria para auxiliar os juízes. Reduzir o valor das taxas de justiça, pois este sistema que temos prejudica a classe média e média baixa, que vê recusado o apoio judiciário em muitas situações perfeitamente injustas e que inviabilizam o acesso aos tribunais. Reforço imediato de juízes e funcionários, nos tribunais de comércio e de trabalho, onde se espera que venha a haver um acréscimo exponencial de processos, findas as moratórias e regimes de exceção. Bem como reforço nos tribunais administrativos e fiscais.
Nem todos os casos que chegam a julgamento deveriam lá chegar, e refiro-me aos processos crime em que a defesa poderia ser mais ativa precocemente e haver um maior envolvimento do advogado em sede de inquérito”
E bastonária da Ordem dos Advogados?
Combate à procuradoria ilícita, reforço de apoios aos jovens advogados recuperar o prestígio da profissão.
E, finalmente, se fosse PGR?
Maior eficiência e reforço de meios para a investigação criminal, reforço de formação e de controlo de prazos.
Qual foi ou é para si o melhor ministro/ministra da Justiça desde o 25 de abril?
Pela sua imensa capacidade de trabalho, o Dr. Almeida Santos.
Estamos (Portugal) muito obcecados com a corrupção?
As estratégias para prevenir, investigar e processar a corrupção são uma preocupação a nível global e fundamental para se caminhar para uma sociedade mais justa, e Portugal tem vindo a melhorar a este nível. Em dezembro de 2019, foi amplamente anunciada uma estratégia nacional de combate à corrupção. A investigação cabe a várias entidades, como ao DCIAP, à PGR e à Unidade Nacional de Combate à Corrupção da Polícia Judiciária. Com destaque para a coordenação e análise das atividades de prevenção atribuídas ao Conselho de Prevenção da Corrupção, dependente do Tribunal de Contas. O quadro jurídico-penal para combater a corrupção encontra-se em vigor e parece-me adequado, tendo agora Portugal que implementar plenamente as recomendações do GRECO (Grupo de Estados contra a Corrupção). Receio que tenha havido um abrandamento nesta frente, atenta a prioridade atribuída a iniciativas para combate à Covid-19. Mas a nível da sociedade civil, temos entidades sem fins lucrativos e independentes que militam ativamente pela integridade e pela transparência, no sentido de reforçar a prevenção e combate à corrupção.
Pretende algum dia pôr em prática a regra de denúncia obrigatória por parte de advogados que se deparem com suspeitas de lavagem de dinheiro?
A nossa sociedade tem há muito estabelecido procedimentos internos rigorosos de controlo, para prevenir a aceitação de clientes, trabalhos ou tarefas que violem as leis de Combate ao Branqueamento de Capitais e ao Financiamento do Terrorismo, e recentemente foi criado um departamento de Compliance, a quem cabe analisar os dados constantes do KYC solicitados a todos os clientes e apurar o risco do cliente.
As operações que os colaboradores da PRA observem que sejam suspeitas do crime de branqueamento de capitais, devem ser reportadas internamente, para verificação se se encontram enquadradas nos atos excluídos de comunicação, nos termos do artigo 4.º da Deliberação 822/2020, de 21/08, da OA e sendo o caso, as reportar.
Se pudesse escolher, em que jurisdição (europeia ou mundial) trabalharia e porquê?
Atendendo a que já exerço em Portugal há duas décadas, se pudesse escolher gostava de ir uma temporada para um país que tivesse o sistema de Common Law, talvez na Austrália que ainda não conheço.
Os advogados têm horizontes mais abertos que os magistrados (juízes ou procuradores)?
Há de tudo, como em todas as profissões, pois na nossa também há quem sofra de miopia.
As decisões judiciais – de primeira ou segunda instância – são muito dependentes ou influenciadas pelo mediatismo?
Não serão 100% impermeáveis pois os julgadores não vivem numa bolha isolados da realidade, mas não acredito que seja um problema generalizado.
Mudaria as regras dos advogados poderem falar de casos concretos, de forma a que o vosso trabalho fosse mais compreendido?
Acho que se deve manter alguma reserva quanto à discussão pública de questões profissionais, mas justificar-se-á sempre que se fale de casos concretos para prevenir ou remediar a ofensa à dignidade, direitos e interesses legítimos do cliente. Não devemos ficar amordaçados e deixar o cliente sujeito à condenação pública.
Gostaria que houvesse uma instância totalmente independente – com maioria de não magistrados – que avaliasse a ética e imparcialidade de um magistrado. Um canal direto entre cidadãos, advogados e magistratura?
Penso que traria maior transparência e reforçaria a confiança dos cidadãos no sistema judicial, que como aponta o relatório de avaliação de justiça na EU 2020, o grau de perceção pelo público da independência judicial tem vindo a diminuir. Haverá, contudo, que salvaguardar a sua independência em relação a influências políticas.
A prestação de contas dos nossos magistrados é necessária?
Se se refere ao registo de interesses, entendo que deva ser o mesmo, para os titulares de cargos políticos e para magistrados.
Arbitragem versus tribunais. Este meio de justiça privada vai engolir os tribunais, mais cedo ou mais tarde?
Em determinadas áreas, como nos negócios, penso que ganhará maior quota de mercado e importância, atenta a manifesta vantagem de celeridade, especialização, flexibilidade e sigilo.
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“Não devemos ficar amordaçados e deixar o cliente sujeito à condenação pública”, diz sócia da PRA
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