“Não tenho grande apreço por soluções de justiça premial, mais por razões sociais do que jurídicas”

Duarte Santana Lopes, sócio da Morais Leitão, afirma que a demora dos processos na justiça penal está na 1.ª instância e não na fase de recursos. Sobre a justiça premial, admite não ter grande apreço.

Falta conhecer “medidas concretas”. Esta foi um análise feita pelo sócio da Morais Leitão, Duarte Santana Lopes, sobre a Agenda Anticorrupção. Defende que é necessário esclarecer “praticamente tudo”, afirmando que é preciso conhecer as “medidas concretas” em que as intenções e objetivos que compõem a Agenda se vão traduzir.

O advogado considera que a demora dos processos na justiça penal portuguesa está na primeira instância e não na fase de recursos. Sobre a justiça premial, admitiu não ter grande “apreço”, mais por razões sociais ou sociológicas do que jurídicas.

Uma coisa é certa, garante que a existência de consensos e de estabilidade em matérias estruturantes da democracia e da sociedade é “obviamente desejável”, principalmente para beneficiar a área da justiça que considera ter um “relevo social muito significativo”.

O que falta na Agenda anticorrupção apresentada pelo Governo?

Falta, antes do mais, conhecer as medidas concretas. Mas, olhando para o que se conhece, e focando-me nas alterações propostas ao processo penal, diria que falta mais realismo (e menos simbolismo), falta não tomar o acessório por essencial e falta, com o devido respeito, que o Estado assuma a sua responsabilidade na morosidade de alguns processos da justiça penal, ao invés de tentar encontrar soluções que colidem frontalmente com os direitos fundamentais das pessoas – como é o caso das anunciadas propostas quanto ao regime da perda alargada de bens –, apenas porque não consegue resolver o pecado original, que é a excessiva morosidade das investigações nos chamados megaprocessos.

Atualmente existem pelo menos três (mega-)processos cujas investigações decorrem há 10 ou mais anos, no âmbito dos quais foram aplicadas as mais pesadas medidas de coação – desde a suspensão do exercício de funções à prisão preventiva ou domiciliária – e foram apreendidos, e assim continuam, os patrimónios das pessoas que estão a ser investigadas há cerca de uma década, sem que tenham ainda sequer sido sujeitas a uma acusação. Este é, a meu ver, o principal problema da justiça penal portuguesa, e não vejo uma única proposta nesta Agenda que vise resolvê-lo.

Sendo muito concreto, impõe-se, a meu ver, que os prazos de duração máxima do inquérito passem a ser peremptórios, e não “meramente indicativos”, caso em que deveriam também ser alargados. Ou seja, prazos mais longos, mas verdadeiros prazos – uma vez esgotados, o Ministério Público ou acusa ou arquiva (sendo também necessário, para este efeito, temperar ainda mais o princípio da legalidade, permitindo que o Ministério Público deixe cair aquilo que não consegue ou, até, que não tem interesse em investigar). Admito que possa haver consequências graduais para o incumprimento dos prazos (ou diferentes prazos para diferentes consequências): num primeiro momento, o levantamento das apreensões de bens (e outras medidas de garantia patrimonial); num segundo momento, o arquivamento do processo. O atual estado das coisas, em que as investigações penais podem, em teoria, durar para sempre, e, na realidade, duram 10 ou mais anos, é que é intolerável, por diversas razões, todas elas evidentes.

De acordo com um relatório de avaliação da eficiência da justiça penal realizado pela European Commission for the Efficiency of Justice (CEPEJ) em 2022, tendo por base dados de 2020, a fase da primeira instância em Portugal demora em média mais 4,5 meses do que na média dos países da UE; na segunda instância, este gap desce para 21 dias; e na terceira instância somos mais eficientes do a média dos países da EU em cerca de 2 meses.

A conclusão é evidente: a demora dos processos na justiça penal portuguesa está na primeira instância – e, acrescento eu, com base em dados empíricos, está em especial na fase de investigação –, e não na fase de recursos, pelo que a ideia muitas vezes proclamada, e que está também subjacente a esta Agenda, de que a morosidade da justiça se deve a recursos dilatórios está longe de corresponder à realidade.

Duarte Santana Lopes, Senior Associate da Morais Leitão, Galvão Teles, Soares da Silva & Associados, em entrevista ao ECO/Advocatus - 12JAN22

Pontos positivos dessa mesma agenda?

Os propósitos e objetivos são positivos, em especial no que diz respeito ao reforço dos mecanismos de prevenção da corrupção no setor público – ou seja, no próprio Estado – e da promoção de uma cultura de integridade através da educação e da formação. Mais concretamente, e agora no que diz respeito ao terceiro vértice do triângulo que enforma a “Agenda Anticorrupção” – o da “Repressão” –, destaco positivamente: (i) a digitalização da fase de inquérito, esperando que esta inclua a realização das inquirições de testemunhas e interrogatórios de arguidos através de registo áudio e, quando possível, vídeo – creio que esta medida pode mesmo ser revolucionária no processo penal, quer em termos de celeridade, quer para a descoberta da verdade material; (ii) a clarificação de algumas regras processuais sobre os recursos – ainda que, como referi acima, entenda que os recursos não são sequer uma das principais causas da morosidade da justiça penal, concordo que existe uma excessiva litigância sobre questões processuais relacionadas com os recursos (recorribilidade das decisões, momento da subida, efeitos da interposição dos recursos, etc.); (iii) redefinição da fase da instrução, trazendo-a de volta para o seu desenho original.

O que necessita de ser esclarecido?

Praticamente tudo. É preciso conhecer as medidas concretas em que as intenções e objetivos que compõem esta Agenda se vão traduzir.

A fase de instrução deve ser, na minha opinião, uma espécie de saneamento judicial da fase de investigação e do despacho final de inquérito, devendo a produção de prova ser admitida a título muito excecional.

Duarte Santana Lopes

Sócio da Morais Leitão

A fase da instrução pode vir a sofrer alterações. Acha isso um bom sinal?

Concordo genericamente com o que se afirma na Agenda Anticorrupção sobre a fase de instrução, nomeadamente com aquilo que a fase de instrução deve e não deve ser, e também concordo quando se diz que existe uma diferença significativa entre o direito positivado e a praxis no que concerne ao objeto desta fase do processo penal. A fase de instrução deve ser, na minha opinião, uma espécie de saneamento judicial da fase de investigação e do despacho final de inquérito, devendo a produção de prova ser admitida a título muito excecional. Também compreendo a referência à possibilidade de se distinguir o objeto da instrução consoante esta seja requerida pelo arguido ou pelo assistente, mas aqui, como em quase tudo o resto, é essencial conhecer as medidas concretas que vão ser apresentadas.

Volta a estar em cima da mesa a ideia da justiça premial. Estamos a ir por um caminho perigoso?

Não tenho grande apreço por soluções de justiça premial, mais por razões sociais ou sociológicas do que jurídicas. Sou, contudo, um defensor dos meios alternativos de resolução de processos judiciais, neste caso de natureza penal, mas não necessariamente, nem principalmente, como forma de premiar condutas delativas. Há casos em que, por variadas circunstâncias, os fins do processo penal podem ser devidamente – se não mesmo melhor – acautelados através da aplicação desses meios alternativos de resolução de processos, em particular do instituto da suspensão provisória do processo. Espero que as medidas que darão corpo a esta Agenda vão nesse sentido.

A AD e o PS devem estar alinhados nas soluções para a Justiça?

A justiça é um dos pilares do Estado de Direito Democrático e, nos dias que correm, tem um relevo social muito significativo, acho que bastante superior ao que deveria ter. A existência de consensos e de estabilidade em matérias estruturantes da nossa democracia e da nossa sociedade é obviamente desejável.

Duarte Santana Lopes, Senior Associate da Morais Leitão, Galvão Teles, Soares da Silva & Associados, em entrevista ao ECO/Advocatus - 12JAN22Que perfil deverá ter o próximo PGR?

Intuindo as razões da pergunta, devo dizer que, num mundo em que a opinião prolifera em manifesto excesso e se tornou a norma, tenho especial respeito por quem resiste aos clamores públicos para tudo comentar e sobre tudo opinar, sobretudo por parte de quem exerce funções que, ao contrário do que tem sido generalizadamente sustentado, aconselham ou exigem mesmo essa abstenção opinativa e de exposição mediática. A recente quebra desse silêncio, ainda que por razões compreensíveis, e as mil e uma opiniões sobre o que foi e não foi dito, só vieram reforçar estas minhas convicções.

Assim, independentemente do perfil, e olhando agora para o conteúdo e não para a forma, o que espero sobretudo é que o próximo PGR foque a intervenção do MP na defesa da legalidade, designadamente da legalidade penal, e não na defesa ou prossecução de valores que, por mais importantes que sejam – como a Ética e a Moral –, não compete à magistratura do MP (nem, já agora, à judicial) defender. E espero, também, que imponha uma cultura de maior rigor e de maior exigência na defesa dessa legalidade e no respeito pelos direitos das pessoas investigadas, não permitindo, por exemplo, o espetáculo mediático na realização de diligências de obtenção de prova, a realização de detenções para interrogatório por razões incompreensíveis e por períodos de tempo intoleráveis, ou a utilização de escutas telefónicas como regra e durante vários anos, o que em nenhum cenário é concebível, contrariamente ao que a Senhora PGR sustentou na sua recente entrevista.

A autonomia do MP é uma ‘desculpa’ da magistratura para não prestarem contas?

Tem-se falado muito desse tema, nos termos em que a pergunta é feita, mas na minha opinião é uma não-questão. Primeiro, importa perceber do que estamos a falar: a autonomia do MP tem duas vertentes – autonomia da magistratura do MP em relação ao poder político, por um lado, e a autonomia dos magistrados do MP na condução dos processos de que são titulares. A primeira é essencial e a segunda é muito importante para o desempenho das atribuições do MP, que devem ser orientadas exclusivamente por critérios de legalidade e objetividade, pelo que não podemos prescindir delas. Segundo: autonomia não é sinónimo de irresponsabilidade. Se por prestar contas se quer significar prestar esclarecimentos públicos sobre a atuação do MP, diria que a “desculpa” é boa e recomenda-se: na minha opinião, o MP não tem de e não deve prestar esses esclarecimentos ou, pelo menos, deve fazê-lo na estrita medida do necessário, como me parece que tem sido a prática. Se, por outro lado, por prestar contas se quer dizer accountability, diria que o MP e os seus magistrados devem ser – e podem sê-lo – disciplinar, civil ou criminalmente responsáveis pela sua atuação nos termos da Lei, desde que verificados os respetivos pressupostos.

Olhando para a realidade dos processos mais mediáticos – o que de certa forma é injusto, porque correspondem a uma pequena parte da atuação do MP –, parece-me evidente que se impõem várias mudanças, algumas delas estruturais.

Duarte Santana Lopes

Sócio da Morais Leitão

São necessárias alterações legislativas para repor o poder hierárquico do MP?

Não sou especialista na matéria, mas, do que conheço, não me parece. A hierarquia do MP está claramente prevista e definida na Lei, tal como o está a possibilidade de responsabilização disciplinar dos seus magistrados.

A ministra disse que será necessária uma nova era para o MP. Concorda?

Percebo o que a senhora ministra quis dizer, ainda que as palavras utilizadas tenham sido algo exageradas, sobretudo se levadas à letra. Olhando para a realidade dos processos mais mediáticos – o que de certa forma é injusto, porque correspondem a uma pequena parte da atuação do MP –, parece-me evidente que se impõem várias mudanças, algumas delas estruturais: primeiro, deve ser atenuado o fascínio pelos megaprocessos ou pelos processos mediáticos; segundo, deve haver um maior apego à legalidade, e uma menor propensão moralista ou justicialista; terceiro, têm de acabar as fugas de informação sobre os processos e sobre as diligências de prova, nomeadamente a realização de buscas; quarto, e repisando o que disse acima, tem de haver uma muito maior celeridade nas investigações, para o que se impõe caminharmos mais no sentido do princípio da oportunidade, por um lado, e da aplicação de meios alternativos de resolução de processos de natureza penal, por outro, além, claro, da natureza peremptória dos prazos de duração máxima do inquérito.

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