“Num futuro não muito distante haverá ciência feita sem inteligência humana”

Arlindo Oliveira, presidente do INESC, alerta que se Portugal ficar para trás na inteligência artificial não beneficiará do aumento da produtividade que a tecnologia permite e perderá competitividade.

A inteligência artificial está a mudar a forma como se produz e avalia a ciência. Arlindo Oliveira, presidente do Instituto de Engenharia de Sistemas e Computadores (INESC), afirma que a “esmagadora maioria da ciência” é hoje feita com recurso a esta tecnologia, seja pela análise de dados ou pela maneira como o trabalho foi elaborado.

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A intervenção humana poderá até vir a ser dispensada. “Num futuro, não muito distante, alguma ciência vai ser feita sem envolvimento de inteligência humana”, afirma o professor e antigo presidente do Instituto Superior Técnico, em entrevista ao À Prova de Futuro, um podcast do ECO apoiado pelo MEO Empresas.

A tecnologia vem amplificar a capacidade das equipas de investigação e desenvolvimento das empresas, mas Arlindo Oliveira alerta que “a competição vai ser cada vez mais feroz”, porque todas as outras empresas vão fazer o mesmo. O presidente do INESC teme que “Portugal possa ficar para trás”, devido ao elevado peso das PME que não têm uma gestão sofisticada.

Arlindo Oliveira é muito crítico da burocracia no Estado e defende que “todas as iniciativas legislativas, todas as estratégias das empresas, todo o planeamento individual do trabalho devia ser virado para uma maior produtividade”.

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De que forma é que a inteligência artificial generativa está a contribuir para acelerar a investigação e desenvolvimento?

A inteligência artificial, generativa e não só, e as técnicas de análise de dados já são fundamentais em muitas atividades científicas. Há uma parte significativa de novos resultados científicos que são obtidos exatamente com a análise de grandes volumes de dados, uma coisa que é central à inteligência artificial. A inteligência artificial generativa e a capacidade para manipular, perceber e combinar textos, também já é muito usada no processo de descoberta.

É muito fácil, neste momento, pedir a um sistema destes que faça um sumário do estado da arte numa dada área, ou que sumarize as conclusões fundamentais de um estudo, ou que descreva as ligações entre este estudo e aquele estudo.

E consegue dar exemplos? Quanto tempo é que se poupa?

É muito grande. Uma das grandes animações dos cientistas neste momento é justamente conseguirem acompanhar tudo o que se faz próximo da sua área e para acompanhar devidamente é preciso ler os artigos. Ler um artigo com cuidado demora muitas horas, mas mesmo sem cuidado demora meia hora. É preciso ler, perceber o que é que foi feito.

Estes métodos de sumarização permitem, com perguntas específicas, perceber se o artigo avança alguma coisa relativamente ao estado da arte, que já foi publicado há dois anos, etc. Sempre com algum nível de incerteza, mas quando perguntamos a um aluno de doutoramento também há um nível de incerteza. O estado de arte, neste momento, pode ser gerado de maneira quase automática numa dada área.

Depois há também uma componente de planificação em que estes temas ajudam muito. Faça-me aí um plano do tipo de coisas que eu devo ler, que tipo de experiências é que eu devo fazer para testar esta hipótese. Neste momento há um grande, grande apoio à atividade de investigação e de descoberta de conhecimento.

Há também uma componente mais polémica, que é usar estes temas para avaliar artigos, para avaliar propostas, para avaliar projetos. O argumento fundamental é que estas coisas são coisas sérias, são coisas importantes, são coisas inovadoras, têm de ser avaliadas por humanos, não podemos delegar isso em sistemas de inteligência social.

Esta é a discussão que tem lugar, mas a verdade é que muita gente delega, porque toda a gente tem muito trabalho, toda a gente tem pouco tempo e estes sistemas aceleram muito.

Há riscos como o enviesamento dos sistemas de inteligência artificial.

Há sempre riscos que não são muito diferentes de quando as pessoas fazem o mesmo processo, sendo que as pessoas acabam por ter menos tempo. Um dos grandes desafios da investigação científica é a inexistência de revisores competentes para reverem os artigos e, devidamente, decidirem quais devem ser publicados e quais não devem ser publicados.

Há muitos artigos que são recusados porque são mal revistos e outros que são aceites porque são mal revistos. E está-se a delegar esse trabalho nestas plataformas. É uma coisa muito polémica. Daqui a pouco, temos os sistemas a escrever os artigos e a avaliar os artigos, e as pessoas são só acessórios.

Pode dizer que já não se faz ciência sem inteligência artificial?

Ainda se faz alguma ciência sem inteligência artificial. Alguma investigação fundamental em matemática, possivelmente em física. Imagino que noutras áreas que são menos do meu conhecimento, nas ciências sociais, que ainda haja alguma investigação feita sem inteligência artificial.

Neste momento, é razoavelmente fácil argumentar que a esmagadora maioria da ciência é feita com inteligência artificial, de alguma maneira, seja pela análise de dados, seja pela maneira como o trabalho foi elaborado.

Mas e no futuro?

Cada vez menos investigação é feita sem dados. Há algumas áreas muito específicas da matemática de investigação fundamental que podem ser feitas sem dados experimentais, mas a esmagadora maioria é através do processamento de dados e, portanto, essa envolve naturalmente a inteligência artificial.

Neste momento, é razoavelmente fácil argumentar que a esmagadora maioria da ciência é feita com inteligência artificial, de alguma maneira, seja pela análise de dados, seja pela maneira como o trabalho foi elaborado. Ainda há alguma, não atrevo a dizer uma percentagem, que é feita sem inteligência artificial.

Arlindo Oliveira, professor do Instituto Superior Técnico e presidente do INESC, em entrevista ao podcast do ECO “À Prova de Futuro”Hugo Amaral/ECO

Corremos o risco de um dia a ciência poder ser feita sem inteligência humana?

Eu acho que num futuro, não muito distante, alguma ciência vai ser feita sem envolvimento de inteligência humana. Talvez alguma inteligência humana em definir o objetivo, ou definir a grande área, mas acho que alguma vai ser feita sem envolvimento de inteligência humana.

Escrevi há pouco tempo um artigo num jornal económico sobre os novos sistemas com a capacidade de atuarem sobre o mundo, quer sobre o mundo digital, quer mesmo sobre o mundo físico, poderem imaginar experiências e daí tirarem conclusões, o que dá a estes temas [plataformas de IA] a capacidade de gerarem conhecimento verdadeiramente novo, e não apenas aquele que leram.

Há uma pequena história muito interessante de um autor chamado Ted Chiang, que foi escrita já há 20 anos. É um pequeno artigo que saiu na revista Nature, salvo erro, que é Catching Crumbs from the Tail, apanhar as migalhas da mesa, onde ele imagina um futuro onde toda a ciência é feita por inteligência artificial e os seres humanos dedicam-se basicamente apenas a tentar perceber o que é que as inteligências artificiais descobriram e publicaram numa linguagem que não é facilmente compreensível para os seres humanos.

Isto é uma coisa que já estamos mais perto. Todos estes modelos representam conhecimento numa relação interna que não é acessível para nós, é uma relação num espaço vetorial de alta dimensão. Imaginar estes temas a comunicarem nessa linguagem obscura, fechada para nós, e imaginar os seres humanos a tentar perceber o que é que eles descobriram, interpretar, é essa a essência da história do Ted Chiang. Não diria que toda a ciência vai ser assim, com certeza que não, mas se calhar alguma parte da ciência vai ser assim.

Todas estas mudanças, o que é que significam para as empresas que investem em investigação e desenvolvimento in house?

O uso de inteligência artificial amplifica a capacidade das equipas. A ciência é cada vez maior, são precisas cada vez maiores equipas, mais investimentos, maiores projetos. O facto de a inteligência artificial amplificar permite que empresas mais pequenas façam desenvolvimentos maiores do que seria possível de outra maneira.

Acho que isso são essencialmente boas notícias. As más notícias é que todas as outras empresas vão fazer o mesmo, portanto a competição vai ser cada vez mais feroz.

Eu temo, de facto, que Portugal possa ficar atrás, porque, como sabe, no nosso tecido de pequenas e médias empresas muitas delas não têm uma gestão ainda particularmente sofisticada.

A diferenciação pode ser mais difícil?

A diferenciação é mais difícil, a competição é mais feroz e as empresas que não conseguirem adotar estas tecnologias vão ser menos competitivas.

Da mesma maneira que as empresas que não adotaram a internet e o digital se tornaram menos competitivas, agora vamos ter empresas que não adotaram a inteligência artificial no seu processo de investigação e desenvolvimento e vão ser menos competitivas.

Segundo dados Eurostat, só 9,3% das empresas com mais de 10 trabalhadores usavam IA no seu negócio, abaixo da média de 13,5% das empresas na UE, que já de si é uma média baixa. Portugal está a ficar para trás e tem agora de pedalar mais depressa?

Depende um bocadinho de como é que a estatística foi obtida, mas há de ter sido obtida de maneira parecida na Europa e em Portugal, e essa diferença é que é um bocadinho mais preocupante, porque ainda é uma diferença grande. Eu temo, de facto, que Portugal possa ficar para trás, porque, como sabe, no nosso tecido de pequenas e médias empresas muitas delas não têm uma gestão ainda particularmente sofisticada.

Eu assumo ou admito que quando nos comparamos com um conjunto de empresas congéneres europeias as nossas estejam a ficar para trás. Arriscamo-nos a perder ainda mais competitividade e a não conseguir ganhar o aumento de produtividade que essas tecnologias permitem.

E, como sabe, a baixa produtividade da economia portuguesa é uma das nossas maiores limitações. Produzimos pouco, pagamos mal às pessoas, muita gente vai trabalhar para fora e ficamos retidos em atividades de baixa produtividade. É um círculo vicioso.

Todas as iniciativas legislativas, todas as estratégias das empresas, todo o planeamento individual do trabalho devia ser virado para uma maior produtividade. (…) Lamentavelmente, esta visão não existe ao nível da Assembleia da República, quando legisla, como é fácil de ver. Não existe ao nível do governo, quando legisla e quando executa.

Como é que se quebra esse círculo?

É fundamental que toda a gente, desde o trabalhador ao gestor, ao governo, à Assembleia da República, tenha em foco que um dos maiores desafios da economia portuguesa é a baixa produtividade. Todas as iniciativas legislativas, todas as estratégias das empresas, todo o planeamento individual do trabalho devia ser virado para uma maior produtividade.

Como é que eu posso produzir mais com o mesmo esforço? Isto ao nível individual, ao nível da empresa, ao nível do governo. Se todos nós tivéssemos esta visão, como é que eu posso produzir mais com o mesmo esforço, isto seguramente que iria melhorar.

Lamentavelmente, esta visão não existe ao nível da Assembleia da República, quando legisla, como é fácil de ver. Não existe ao nível do governo, quando legisla e quando executa.

Arlindo Oliveira, professor do Instituto Superior Técnico e presidente do INESC, em entrevista ao podcast do ECO “À Prova de Futuro”Hugo Amaral/ECO

O Governo ia avançar com uma Agenda Nacional para a Inteligência Artificial, que foi interrompida, entretanto, pelas eleições. Esse tipo de agenda é urgente?

A agenda existia, já estava pronta. Este é um bom exemplo, não é? O governo mudou, a cor política do governo mudou, algum do trabalho que estava feito mantém-se, mas as coisas mudaram bastante. Este é um bom caso. Em vez de haver uma continuidade no processo, o processo foi essencialmente reiniciado. Perdemos produtividade.

Houve outras ideias interessantes, como o Amália [modelo de inteligência artificial português], que está integrada na Agência Nacional. Há falta de continuidade nas políticas, a falta de continuidade gera atrito, gera baixa produtividade.

Falámos das empresas, mas temos também de falar sobre os centros de conhecimento em Portugal, de que o INESC é um ótimo exemplo. Como é que está a correr a incorporação destas novas tecnologias? Há financiamento disponível? A infraestrutura existente é suficiente?

O INESC em si é um sistema de instituições de investigação e desenvolvimento. Temos cinco instituições, três em Lisboa, uma no Porto e uma em Coimbra. É um sistema grande. Uma parte efetiva da nossa investigação é justamente nesta área, mas é investigação e desenvolvimento.

Os nossos investigadores, os nossos alunos de doutoramento, os nossos pós-doutorados, não só estão a usar estas tecnologias, como estão a desenvolver estas tecnologias. Estamos ativos em muitos projetos desta área, somos líderes nesta área, temos feito propostas de grande dimensão para projetos dinamizadores desta área.

No Estado é um inferno. Nós tivemos vários projetos, a meu ver bem conseguidos, para melhorarmos a eficiência de vários processos públicos, que no Ministério da Coesão quer no Ministério do Ambiente. Acho que as provas de conceito foram muito bem conseguidas, mas agora era para escalarmos aquilo para dezenas de processos e está tudo parado, basicamente.

E no Instituto Superior Técnico?

Também tenho o chapéu universitário, também sou professor no Técnico. No Técnico é um bocadinho mais difícil. É preciso não só ter a tecnologia, mas alterar os processos.

Alterar os processos obriga a gestão da mudança, que é sempre uma coisa complicada, obriga a ter recursos, obriga, por vezes, a fazer aquisições de equipamento ou de serviços, que são sempre coisas muito complicadas de fazer no seio do Estado. Mas acho que nós até estamos a trabalhar no sentido certo. Se estamos a ir à velocidade certa ou não, o futuro dirá.

O tempo que essas aquisições de equipamentos demoram já não se compagina com o tempo das mudanças rápidas que vivemos.

No Estado é um inferno. Nós tivemos vários projetos, a meu ver bem conseguidos, para melhorarmos a eficiência de vários processos públicos, que no Ministério da Coesão quer no Ministério do Ambiente. Acho que as provas de conceito foram muito bem conseguidas, mas agora era para escalarmos aquilo para dezenas de processos e está tudo parado, basicamente. Tem a ver com os concursos, com Código de Contratação Pública, com restrições legais…

Há também aqui uma grande preocupação, que além do processo de adjudicação ser honesto, ele tem de ser explicitamente honesto. O caso do Amália foi um caso interessante. Foram selecionados claramente dois institutos em Portugal, e eu não estou relacionado com nenhum deles, que tinham as maiores competências nesta área.

Levantou-se uma enorme confusão à volta do processo de decisão, aquilo depois foi alargado, envolveu mais institutos. É um processo no qual eu não tenho dúvida nenhuma que foi feito com base em critérios objetivos de competência, mas apareceram logo os jornais todos a levantar objeções, a levantar desconfianças, como é que não houve um concurso público.

O concurso público está a decorrer, daqui a pouco faz um ano, e há coisas que ainda não foram adjudicadas.

E num ano a tecnologia mudou muito.

Felizmente a tecnologia tem continuado a ser desenvolvida, porque as pessoas estavam a trabalhar naquela área de qualquer maneira e, portanto, foram andando mesmo sem financiamento. Não sei se já está resolvida, mas, quer dizer, é de uma lentidão exasperante. Uma coisa que se fazia em 15 dias com uma decisão executiva devidamente substanciada e justificada. Isto é um pequeno exemplo de uma coisa muito grande.

Quer dizer, o Estado está parado. O comboio de alta velocidade está parado por razões parecidas. O aeroporto, não tenho os detalhes, mas imagino que está parado por razões parecidas. Se nessas áreas já afeta a nossa competitividade, imagine na área da inteligência artificial, onde todas as semanas há um resultado novo.

Não devemos esperar que o Amália vá ser um modelo com o nível de desempenho e de complexidade dos grandes modelos internacionais. Não há nem fundos, nem grande razão para isso. Mas vai ter competências específicas, vai ser sensível às questões culturais do português, vai falar em português continental e vai ser útil em muitas aplicações que, se nós fôssemos a outros modelos, teríamos de pagar por cada chamada que fazemos aos modelos.

Está confiante que o Amália, no fim, vai ser um instrumento importante?

O Amália está a correr bem. Temos tido reuniões de acompanhamento. O modelo em si está a ser desenvolvido. A equipa é extremamente competente. Não devemos esperar que o Amália vá ser um modelo com o nível de desempenho e de complexidade dos grandes modelos internacionais. Não há nem fundos, nem grande razão para isso.

Mas vai ter competências específicas, vai ser sensível às questões culturais do português, vai falar em português continental e vai ser útil em muitas aplicações que, se nós fôssemos a outros modelos, teríamos de pagar por cada chamada que fazemos aos modelos. Vamos poder usar um modelo feito aqui que não terá custos adicionais.

Tem uma outra enorme vantagem que é termos em Portugal pessoas com as competências técnicas desta área que depois poderão ir criar empresas e melhorar processos e gerir instituições públicas de uma maneira muito mais eficiente do que se não tivessem este conhecimento profundo da tecnologia.

O INESC faz este ano 45 anos. Por onde é que vai passar o futuro? Quais são os planos para médio prazo?

O INESC nos últimos 45 anos mudou muito. Neste momento é um sistema de instituições em que cada uma tem a sua autonomia e a sua estratégia própria. Como sistema, pensamos que temos que ter mais impacto e influência internacional, nomeadamente em Bruxelas, ao nível de influência das políticas públicas.

Gostaríamos também de reforçar discussões a nível nacional sobre estratégias de investigação de desenvolvimento na área do digital, da energia e das comunicações.

E a abertura de novos polos? Isso está em análise?

Não há nada em particular pensado. Temos crescido muito. Neste momento, o volume de negócio total é superior a 50 milhões de euros. Vai ser um desafio mantermos esse volume, quando reduzirem os apoios do Plano de Recuperação e Resiliência, mas é o maior sistema de unidades de investigação em Portugal e queremos mantermo-nos assim.

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