Sónia Martins Reis contou como está a ser a sua nova fase profissional na Ana Bruno & Associados. Considerou que o OE para 2023 foi “pouco ambicioso” e que poderia ter apoiado mais as empresas.
Sónia Martins Reis, of counsel da Ana Bruno & Associados, esteve à conversa com a Advocatus e contou como está a ser a sua nova fase profissional, após dez anos ao serviço da PLMJ. Sublinhou que o objetivo é que o departamento de Fiscal possa vir a ser reconhecido como um “importante player no mercado”.
A advogada considerou que o Orçamento de Estado para 2023 foi “pouco ambicioso” e que poderia ter apoiado mais as empresas, nomeadamente por via da redução da taxa geral de IRC e da própria derrama. Segundo Sónia Martins Reis, as contribuições de solidariedade temporárias sobre os setores da energia e da distribuição alimentar em “nada apoiam as empresas”.
Esteve cerca de 10 anos na PLMJ, depois passou em 2022 pela PLEN e agora assumiu um desafio na Ana Bruno & Associados. O que a levou a sair de uma das maiores sociedades de advogados do país para escritórios mais pequenos?
Os anos que trabalhei em PLMJ foram anos muito gratificantes em que aprendi e evoluí imenso como advogada fiscalista, tendo tido o privilégio de poder trabalhar com fiscalistas de excelência, bem como com outras jurisdições que não Portugal, como foi o caso de Angola e de Moçambique, o que me permitiu ter uma perspetiva mais global e uma experiência internacional ao nível do Direito Fiscal. Nas maiores sociedades de advogados do país, como é o caso de PLMJ, há, tendencialmente, dentro de uma área de prática, uma divisão por sub-áreas e por impostos, o que é perfeitamente compreensível e justificado considerando o nível de especialização e o tipo de trabalho que é desenvolvido. A minha saída de PLMJ prendeu-se, pois, com a vontade de ter uma experiência diferente na advocacia e de trabalhar simultaneamente em consultoria e contencioso tributário numa lógica transversal a todos os impostos e não ficar adstrita a um imposto ou jurisdição, além de me permitir um contacto mais próximo com os clientes, no sentido da melhor resolução dos seus problemas, vertente que muito me agrada e que muito valorizo na prática da advocacia.
Sente que em estruturas empresariais de grande dimensão, como a PLMJ, a pressão, competitividade e exigência é maior?
Não, de todo. Essa ideia é um mito que não corresponde de forma alguma à realidade, até porque a exigência tem de começar em cada um de nós e a competitividade tem, acima de tudo, de ser connosco próprios para podermos ser mais e melhores. Não obstante, claro que em estruturas empresariais de grande dimensão é inegável que há pressão, competitividade e exigência, mas o mesmo acontece em estruturas mais pequenas, à sua própria dimensão. Aliás, nos últimos anos na advocacia tem-se vindo a assistir a um movimento de advogados que saíram de grandes sociedades para formar boutiques de advocacia com um grau de excelência e de exigência elevadíssimo no trabalho que desenvolvem e nos serviços jurídicos que prestam aos seus clientes.
Decidiu aceitar o desafio de ser responsável pelo departamento de Fiscal da Ana Bruno & Associados. Como está a ser o início desta nova etapa profissional?
Antes de mais, decidi aceitar este desafio porque me identifiquei de imediato com o ADN da Ana Bruno & Associados, que é um escritório extremamente organizado, funcional e com valores humanos com os quais me identifico, até porque as organizações são feitas de pessoas para pessoas.
Está a ser uma nova etapa profissional muito estimulante e exigente, porque ser responsável de um departamento exige necessariamente organização, planeamento e gestão de pessoas. O nosso departamento de Fiscal é composto por quatro pessoas para além de mim: o David Rodrigues Custódio, que é um excelente profissional e colega, a Leonor Gargaté Oliveira, que é uma profissional dedicada e com um grande potencial e apetência para o contencioso tributário, o António Nunes e o Manuel Mascarenhas de Lemos, que começam a dar os primeiros passos no Direito Fiscal.
O nosso departamento tem um volume de trabalho muito elevado e há uma assessoria e um acompanhamento muito personalizado aos clientes que é algo que me tem tomado muito tempo, mas que considero essencial na relação do cliente com o advogado.
A exigência tem de começar em cada um de nós e a competitividade tem, acima de tudo, de ser connosco próprios para podermos ser mais e melhores.
Qual vai ser o seu papel no desenvolvimento da marca do escritório?
O meu papel será o de contribuir para o desenvolvimento e crescimento do departamento de Fiscal, tendo como objetivo prestar um serviço de excelência junto do cliente numa lógica full-service, podendo assessorar o cliente em todas as questões fiscais que tenha. A nossa ideia é a de conseguir que o nosso departamento de Fiscal possa vir a ser reconhecido como um importante player no mercado nacional e internacional a quem os clientes possam recorrer numa lógica de acompanhamento permanente quer ao nível da consultoria, quer ao nível do contencioso tributário, e em várias jurisdições.
Como encara o Orçamento do Estado para este ano, tendo em conta o contexto de crise que se vive?
Acho que é um Orçamento pouco ambicioso e em que poderia ter existido um maior apoio às empresas, nomeadamente por via da redução da taxa geral de IRC e da própria derrama. Também se poderia ter prosseguido uma redução da carga fiscal para as pessoas singulares. Não me parece que seja um incentivo especialmente relevante a possibilidade de diminuição da taxa de retenção na fonte para quem tenha um crédito à habitação em caso de habitação própria e permanente e aufira um rendimento mensal bruto que não seja superior a 2.700 euros, na medida em que, consequentemente, vai sempre ter um reembolso inferior, assumindo que haverá reembolso, em sede de IRS.
Poderia ainda ter sido equacionada a possibilidade de estabelecer uma dedução aplicável às despesas com o crédito à habitação, mais ampla do que a prevista no artigo 78.º – E do Código do IRS, considerando que, devido à inflação, as taxas de juro no crédito à habitação têm subido de forma praticamente incomportável.
Em termos fiscais, o Governo poderia apoiar mais as empresas face à inflação ou considera que é o apoio possível?
Penso que poderia e deveria ter existido um maior apoio por parte do Governo às empresas, nomeadamente considerando que em 2022 o Estado arrecadou uma receita fiscal elevadíssima. Não obstante as medidas previstas no Orçamento de Estado trazerem algum apoio às empresas, penso que uma das medidas que poderia ter sido implementada seria uma redução considerável da taxa do IRC, nomeadamente num momento em que se pretende a fixação de um IRC mínimo de 15% a nível global, não se ter aproveitado esta oportunidade para reduzir o IRC de 21% para 17% é claramente não contribuir para o aumento da competitividade das empresas.
Por outro lado, as contribuições de solidariedade temporárias sobre os setores da energia e da distribuição alimentar em nada apoiam as empresas. Ao tributar ainda mais os lucros só se vai desincentivar o investimento e crescimento das empresas. Em Portugal as empresas já são tributadas pelos seus lucros e a própria derrama estadual é também um adicional sobre lucros significativos. Acresce que estas contribuições podem estar feridas de uma retroatividade fraca, sendo que considero que a questão que se coloca é essencialmente ao nível da proteção da confiança para efeitos de aferir de uma potencial inconstitucionalidade deste tributo.
Como caracteriza o atual contexto fiscal português?
Considero que é um contexto francamente penalizador para a generalidade dos contribuintes, começando a ser sufocante no contexto de atual inflação em que vivemos. Ao nível dos impostos sobre o rendimento, continua a existir uma tributação excessiva sobre os rendimentos do trabalho e a taxa de IRC continua elevada, atentas às características do tecido empresarial português e as taxas aplicadas na Europa. Por outro lado, a manutenção de determinados impostos, como é o caso do Imposto do Selo, suscita-me as maiores dúvidas, pois é um imposto residual que incide sobre realidades absolutamente díspares, sendo a sua grande valência, na verdade, a arrecadação de mais receita para o Estado. É difícil descortinar o racional deste imposto. Basta pensarmos no caso da aquisição de uma habitação em que já se paga IMT, qual é o sentido de ainda se pagar Imposto do Selo? É também de ter em conta que, como as taxas não estão sujeitas a reserva de lei, o controlo na sua aprovação é por natureza mais reduzido, o que implica que sejam aprovadas inúmeras taxas cuja razão de ser é no mínimo discutível, mas que novamente oneram muitíssimo o contribuinte. O próprio regime das contribuições parece-me excessivo, sendo que, na realidade, muitas contribuições são verdadeiros impostos. Posto isto, diria que o enquadramento fiscal português carece de uma (boa) reforma para se tornar mais justo e não adquirir um cunho confiscatório, como temos vindo a assistir em múltiplas situações.
Penso que poderia e deveria ter existido um maior apoio por parte do Governo às empresas, nomeadamente considerando que em 2022 o Estado arrecadou uma receita fiscal elevadíssima.
Quais são os principais desafios da área de direito fiscal?
Em termos globais, os principais desafios que se apresentam, atualmente, ao Direito Fiscal estão diretamente conexos com as transformações que têm vindo a ocorrer a nível mundial, nomeadamente na forma como os serviços são prestados, bem como no facto dos trabalhadores exercerem a sua atividade profissional em diferentes locais de forma remota. Estas alterações têm vindo a colocar em causa os conceitos da residência e da fonte como critérios tradicionais de determinação da tributação aplicável, o que é aliás visível ao nível da tributação digital, pois estando as atividades desmaterializadas torna-se cada vez mais difícil determinar onde são prestados e, consequentemente, onde são obtidos os rendimentos. E o mesmo se dirá relativamente à tributação dos chamados “nómadas digitais” que prestam o seu trabalho remotamente em diferentes jurisdições por períodos de tempo, em muitos casos, de difícil quantificação.
É ainda de ter em conta que a substituição do homem pela máquina, neste caso pelos robôs, está a tornar-se uma realidade em vários setores de atividade. Como tal, diria que outro grande desafio com que o Direito Fiscal se vai deparar é, claramente, se e em que medida deve ou não haver lugar à tributação dos robôs.
É também árbitra do Centro de Arbitragem Administrativa. Quais são as vantagens de recorrer a este meio de resolução de litígios na área de fiscal?
As vantagens de recorrer a um meio de resolução de litígios na área do Direito Fiscal como o CAAD são inúmeras e já reconhecidas pelo mercado. Desde logo, porque os árbitros do CAAD são pessoas às quais é exigido um conhecimento e experiência em Direito Fiscal de pelo menos dez anos, o que assegura que os litígios são resolvidos de forma francamente especializada e com um know-how muito específico acerca das matérias em causa. Os árbitros têm áreas específicas do Direito Fiscal nas quais estão mais habilitados para exercer esta função. Por outro lado, os processos são resolvidos de forma bem mais simples, sendo a tramitação do processo bastante simplificada face ao que tem vindo a ser a prática nos tribunais administrativos e fiscais. Contudo, considero que a grande vantagem do CAAD reside na celeridade com que os litígios são resolvidos, existindo a previsão de que haverá previsivelmente uma decisão no prazo de seis meses, havendo ainda a possibilidade de recurso para os Tribunais Superiores, mas apenas em determinadas circunstâncias muito específicas, o que permite que as decisões adquiram, regra geral, um cunho definitivo para o contribuinte, o que é uma garantia de que não precisará de esperar anos a fio para ver um litígio resolvido em Tribunal.
Sei que é uma apaixonada pelo ensino, sendo assistente convidada na Faculdade de Direito de Lisboa. Qual a razão desta sua paixão?
Sim, é verdade, uma das minhas grandes paixões é o ensino. Vejo o ensino como um sacerdócio. É algo que me realiza profundamente, não apenas pela transmissão de conhecimento, mas também pelo lado humano que é indissociável a quem se propõe a ensinar. O meu avô Salvador era professor e a minha avó Maria Fernanda também, apesar de não exercer, e desde pequena que vivi muito rodeada de livros e assistia à partilha de conhecimento que o ensino possibilita. Isso foi algo que me fascinou desde sempre. A ideia da partilha de conhecimento, da investigação, do ir mais além. Penso que o gosto pelo ensino terá nascido logo aí.
Para mim, ensinar não é só partilhar conhecimento. É simultaneamente aprender com as pessoas a quem estamos a transmitir conhecimento, porque surgem sempre questões que às vezes não estamos imediatamente despertos para responder e que nos levam a pensar e a investigar mais.
Quando entrei na Faculdade de Direito, lembro-me de no início das aulas ter pensado que um dia quereria estar ali a ensinar e a contribuir, de alguma forma, para algo melhor e é isso que me esforço, todos os dias, por fazer na minha vida académica.
Talvez o que falte no ensino, e neste caso não especificamente em Direito, é um maior apoio financeiro a quem pretende exercer atividades de investigação. Penso que essa seria uma área em que claramente se deveria investir mais, pois caso contrário há o risco de perder quadros muito válidos.
Enquanto professora universitária, o que acha que falta no ensino do direito?
Considero que o ensino do direito tem vindo a evoluir muito positivamente, procurando ir ao encontro das exigências do mercado de trabalho para as novas gerações, no sentido de preparar cada vez melhor os alunos para o futuro. Na Faculdade de Direito, onde leciono Direito Fiscal sob a regência da professora Ana Paula Dourado e da professora Paula Rosado Pereira, há uma preocupação cada vez maior e mais premente em que os alunos saiam bem preparados para o mercado de trabalho, o que implica que as aulas adquiram também um cunho prático muito relevante. É uma lógica não só de law in the books, mas também de law in action. Acresce que os Institutos e Centros de Investigação nas Faculdades, como é o caso, respetivamente, do IDEFF e do CIDEFF, neste último do qual sou investigadora associada, têm permitido um contacto cada vez maior com universidades estrangeiras e a oferta aos alunos de um ensino com um cunho não só nacional, mas também internacional, muito forte.
Talvez o que falte no ensino, e neste caso não especificamente em Direito, é um maior apoio financeiro a quem pretende exercer atividades de investigação. Penso que essa seria uma área em que claramente se deveria investir mais, pois caso contrário há o risco de perder quadros muito válidos.
Com cerca de 20 anos de experiência, como descreve o seu percurso profissional?
Tem sido acima de tudo um percurso dual e complementar, marcado pela dificuldade óbvia que existe entre conjugar uma carreira académica na Faculdade de Direito de Lisboa e uma carreira na advocacia, sempre na área do Direito Fiscal.
Não obstante, esta dificuldade é simultaneamente muito gratificante, porque considero que poder conciliar estas duas vertentes é também um privilégio que me permite ser uma profissional mais completa e indubitavelmente mais feliz e realizada.
Apesar de já ter cerca de 20 anos de experiência, estou certa de que ainda tenho, felizmente, muitos objetivos académicos e profissionais na universidade e na advocacia que quero e vou concretizar, pois afinal é justo que muito custe o que muito vale.
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“O enquadramento fiscal português carece de uma (boa) reforma para se tornar mais justo”, diz Sónia Martins Reis
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