Paulo de Sá e Cunha, sócio da Cuatrecasas, está em processos mediáticos como a Operação Marquês e o caso dos CMEC/EDP. Leia a entrevista.
O sócio da Cuatrecasas e advogado em alguns dos processos mais mediáticos da praça avalia o novo Plano de Combate à Corrupção apresentado pelo Governo. No geral considera que é um documento positivo mas em que falham algumas questões “muito simples”. Considera que princípio da presunção de inocência está completamente esquecido e defende que “todas as comunicações eletrónicas são inseguras.
Que avaliação faz das medidas da Estratégia Nacional de Combate à Corrupção?
Vi as propostas do Governo. As propostas parecem-me equilibradas. É um conjunto de medidas equilibrado que vem, de facto, afinar alguns mecanismos jurídicos que o sistema português tem e que, se essa reforma for bem recebida e bem apreendida pelos operadores judiciários, poderá ser muito importante para aumentar, ainda mais, a eficácia do combate à corrupção, sobretudo na prevenção da corrupção.
Não será uma visão demasiado otimista?
Acho que, se formos objetivos e realistas, teremos que considerar que a eficácia da justiça no combate à corrupção tem sido notável em Portugal nestes últimos anos. Pelo conjunto de pessoas que estão neste momento a responder em processos judiciais, pela gravidade dos factos e pela dimensão de que esses factos se revestem na sociedade portuguesa, nós não podemos dizer que temos sido ineficazes no combate à corrupção. O que se calhar tem sido ineficaz é a prevenção da corrupção. Se desdobrarmos a questão entre repressão penal da corrupção e prevenção da corrupção podemos melhorar a prevenção no domínio da corrupção. Parece-me que as instâncias de controlo…
Já estão a fazer esse trabalho…
Sim, e com eficácia, e com resultados. Há muito a confusão, na opinião pública, de que os resultados equivalem a pôr rapidamente as pessoas na cadeia. E não é. O resultado destes processos há-de ver-se quando as decisões forem proferidas. Agora, que há medidas de combate à corrupção em prática e que há muitas pessoas a serem incomodadas por coisas que fizeram…
E que se calhar há 20 anos não seriam…
De todo. Falar-se em sentimento de impunidade relativamente à corrupção em Portugal, em 2020, é completamente disparatado… Quando temos um ex-primeiro-ministro a responder criminalmente, quando temos um dos maiores banqueiros do país a responder criminalmente por situações que, entre outras coisas, têm a ver com corrupção… Não podemos dizer que o combate à corrupção está morto e ineficaz em Portugal. Longe disso.
Se formos objetivos e realistas, teremos que considerar que a eficácia da justiça no combate à corrupção tem sido notável em Portugal nestes últimos anos.
Em relação ao pacote de medidas do Governo em concreto, o que é que acha que poderá mudar no campo da prevenção?
O que é que se melhorou? Uma parte, que me é muito grato registar, é que, relativamente à prevenção da corrupção, há uma grande aposta na implementação de medidas de prevenção generalizadas, quer na administração pública quer nas empresas. Códigos de conduta e mecanismos de cumprimento normativo, de compliance. É uma prática que não existe ainda em Portugal, não está ainda generalizada e não está ainda interiorizada pelas nossas empresas, tirando alguns setores mais regulados em que, de facto, há exigências até legais a esse respeito. Mas na generalidade das empresas não há. Claro que estas medidas do cumprimento normativo para as empresas têm que ser acompanhadas por estímulos elas próprias, através da criação de um determinado prémio, e as medidas preconizadas pelo Governo também o referem. Ao nível das penalidades em que as organizações incorrem, se tiverem um sistema de cumprimento normativo a funcionar podem vir a beneficiar disso em relação às penas que lhes possam vir a ser aplicadas. O que é um bom sinal.
É uma atenuação, digamos assim.
Uma atenuação… O ideal seria mesmo uma dispensa da pena. Em Espanha, por exemplo, isso já é uma prática generalizada. Não só em Espanha como em outras jurisdições. Há aqui outra medida muito importante que é enunciada, e vamos ver se depois será mais desenvolvida ou não, que é a possibilidade de se aproveitar aquilo que é o resultado de uma investigação interna, que se pode fazer numa empresa. Por exemplo, em matéria de práticas de corrupção, o aproveitamento da prova que se consegue reunir através dessa investigação interna num processo penal. Um dos grandes problemas que nós hoje temos é que o sistema penal português é muito rígido. A prova tem de ser toda obtida através da investigação criminal, pelas polícias normalmente ou pelo Ministério Público (MP).
E depois reproduzida em julgamento.
Exato, mas tem de ser adquirida dessa maneira. Se houver forma de, através de uma investigação interna… imagine que há uma denúncia interna de uma prática de corrupção. A empresa decide pelos próprios meios investigar essa suspeita e produz um relatório para entregar às autoridades. Se isso puder ser usado como prova é ótimo, mas também é indispensável que a empresa que o faz tenha garantias de que fica a coberto, ela própria, de vir a ser responsabilizada. E por isso é que é importante ter estes sistemas de compliance a funcionar, que têm uma vertente preventiva muito grande e podem ajudar no desenvolvimento de investigações e obtenção de prova, que, se for validamente obtida e aproveitada para o processo, é muito útil. Mas isto tem de ser feito com a garantia de que as empresas que decidem fazê-lo não são elas próprias, depois, penalizadas… que não há um efeito de tiro pela culatra.
Até porque isso seria logo um elemento dissuasor a priori.
Assim ninguém se arrisca a fazê-lo por sua conta, arriscando sofrer depois um efeito de backfire… Há depois outro conjunto de medidas que parece interessante que é o de se visar uma adaptação de institutos que nós temos, e que conhecemos bem, a estas novas realidades. É preferível, em vez de se ir buscar institutos complicados e de contornos que parecem muitas vezes duvidosos, como a chamada colaboração premiada. É preferível aperfeiçoar os mecanismos que a lei já tem, quer quanto à atenuação especial da pena quer quanto à dispensa de pena, quer quanto à suspensão provisória do processo, em determinados casos que não estão contemplados ainda na lei e que, por isso, impedem o MP e os tribunais de instrução de os aplicarem. Não estão previstos na lei em lado nenhum.
Agora é só crimes até cinco anos, não é?
Até cinco anos, sim. Já se aumentou um bocadinho, mas mesmo assim não chega, porque falha em determinadas situações. Tudo isto é preferível à chamada colaboração premiada. A colaboração premiada é uma ideia que me repugna porque, repare, quando se fala muito da corrupção como o mercadejar com o cargo, fazer negociatas com o cargo que se exerce e em função do próprio cargo… Do meu ponto de vista, a delação premiada não é mais do que o mercadejar com o sistema de justiça. Ou seja, um criminoso que se vê a braços com um problema com a justiça trata de negociar a sua posição, mercadejando exatamente aqueles que pode denunciar e as vantagens que pode obter daí. Portanto, parece-me que, do ponto de vista dos princípios, admitir-se de forma mais ou menos incondicional a delação premiada ou a colaboração premiada, como se diz cá em Portugal, no fundo é transpor uma situação muito parecida com a de corrupção para dentro do próprio sistema de justiça.
Do meu ponto de vista, a delação premiada não é mais do que o mercadejar com o sistema de justiça.
De facto nunca o tinha visto dessa perspetiva…
Sim, é um “toma lá, dá cá”.
Mas há uma ideia muito generalizada na opinião pública de que este é um pacote de medidas que prevê a delação premiada…
A atenuação especial ou a dispensa deixam de ser facultativas e passarão a ser, porque isto ainda são propostas do Governo abertas à discussão pública, obrigatórias. Agora, o que é importante ver é que, de facto, este trabalho, ao contrário de outros – tem-se legislado muito a propósito de fenómenos e de pressões da opinião pública nos média – este trabalho foi feito por uma comissão com académicos e, portanto, nota-se que as medidas que aqui são propostas são medidas que se encaixam no nosso sistema legal, no nosso sistema penal e processual penal. Também se fala aqui num nivelamento e numa adaptação das penas, que é outra coisa que gera grande confusão. Nós temos penas mais severas no Código Penal e na legislação extravagante, às vezes, temos penas mais leves que não são articuladas. Por último, eu ainda destacava um fator que parece absolutamente crucial e que também está previsto: é o de as pessoas coletivas, que podem ser responsabilizadas criminalmente na generalidade dos crimes de corrupção, curiosamente não serem responsabilizadas na lei dos titulares de cargos políticos e de altos cargos públicos. Isto significa que uma pessoa coletiva pode corromper um ministro, por exemplo, e não será nunca responsabilizada penalmente. Mas se for corromper o vulgar funcionário, aí sim, já será, o que não faz sentido absolutamente nenhum. É outra das medidas que está aqui proposta e que me parece verdadeiramente fulcral, diria.
E acha que este pacote, no fundo, está um pouco alheado das questões mediáticas e dos processos em concreto?
Não está, porque depois há a vertente política. Isto é apresentado de tal modo que, por exemplo, se discute ou se pensa que vamos consagrar a delação premiada, porque se julga que isso é muito bom. Há uma componente política que perturba sempre a visão técnica das coisas. Acho que é um trabalho bem feito, por pessoas que conhecem bem a lei e que têm a preocupação de não introduzir mecanismos que gerem disfunções e que sejam inadequados à nossa tradição jurídica. Nós não podemos ter a veleidade de importar soluções que no fundo acabam por ser uma espécie de transplantes bizarros e absurdos.
De qualquer das formas, há aqui uma questão que pode ser um problema para a ministra da Justiça, que tem a ver com a magistratura judicial, pelo menos a associação sindical, já ter vindo dizer que o facto de serem obrigados a atenuar ou a dispensar a pena, que isso pode pôr em causa a independência na decisão judicial.
As associações sindicais têm sempre opiniões, que às vezes se justificam só por terem que dizer qualquer coisa. Lembro que há imensos mecanismos no processo penal português que já têm condicionantes desse tipo e até mais graves. Por exemplo, se o MP deduzir uma acusação por um crime que tem uma pena superior a cinco anos, em abstrato, mas em que o MP entenda que a pena concreta não pode ou não deve ser superior a cinco anos. Pode acusar ao abrigo do artigo n.º 16-3 do CPP e o tribunal de julgamento fica limitado, por uma promoção do MP, a aplicar uma pena que não exceda os cinco anos. Na altura discutiu-se muito isso, o Tribunal Constitucional pronunciou-se favoravelmente e é uma medida semelhante e até mais gravosa, se quiser, porque, do meu ponto de vista, aí poderá haver uma violação do princípio da legalidade. Porque se a moldura penal é até 10 anos, por exemplo, porque é que o MP, por uma decisão sua, entende que a pena não pode exceder os cinco? Nestes casos, eu diria que é menos grave, porque a distinção é aquela que é consagradíssima e com que se trabalha há anos, que é a de uma atenuação ou de uma dispensa facultativa ou não facultativa. É só disso que se trata.
Os acordos de sentença não existem em Portugal?
É mais uma ideia, embora uma ideia que em Portugal tem defensores respeitáveis. O Prof. Figueiredo Dias, por exemplo, tem um pequenino trabalho sobre isso e insistiu muito nessa temática. Mas, no fundo, o acordo de sentença não é mais do que o chamado plea bargain que os tribunais norte-americanos utilizam muito. Eu não sou especialmente favorável aos acordos de sentença e acho que aquilo que se pode fazer ou até onde se pode ir – melhor dizendo – é aquilo que está precisamente na proposta. A proposta também aí é equilibrada. Porque acordos de sentença a troco da denúncia ou da colaboração na condenação de outros arguidos não são contemplados. Acordos de sentença que tenham que ver com a eficácia e a celeridade do processo, através da valorização de uma confissão do arguido, uma confissão integral e sem reservas, que possa depois beneficiar de uma atenuante. O que é que interessa aqui estabelecer? A lei previa estas situações, mas não nos dava ou não garantia uma contrapartida segura. Podemos ir um pouco mais longe e admitir que o tribunal, o MP, o assistente e o arguido acordam numa determinada pena em razão do comportamento do arguido no processo ou em razão da reparação dos danos que o arguido faça. Por exemplo, reparar os danos causados à vítima. Isso pode, em vez de ficar entregue ao critério mais ou menos discricionário do tribunal, que deve valorizar estas atitudes do arguido, mas não está balizado ou obrigado a limites objetivos ou pré-fixados. Se puder agora haver isso já não vejo inconveniente nenhum. Porque muitas vezes o que obstava a que essas situações não surtissem na fase de julgamento era precisamente o receio.
Receio de que depois não tivesse uma benesse, uma consequência positiva.
Exatamente. Ora bem, eu acho que, se a lógica desses mecanismos for o da celeridade processual, com o respeito pelos princípios fundamentais a que devemos obedecer, isso é bom. Só vem trazer um desanuviamento dos tribunais, que muitas vezes estão enredados a discutir temas menores, mas em julgamentos que depois levam imenso tempo a resolver de outra maneira, claro, se o tribunal pudesse de facto resolver a questão. Não quer dizer que na prática muitas vezes isso não se faça já. Faz-se, só que não tem uma cobertura legal que vai passar a ter se tudo decorrer como proposto.
E o que é que neste pacote que na sua opinião falta ou faltou contemplar? O que é que é ou será inadiável na justiça para si?
Acho que faltam essencialmente duas coisas.
A primeira é que, ao nível do processo penal, há uma medida de uma simplicidade infantil que, enfim, eu não percebo porque é que não é tomada, que é esta: quando o processo vai para julgamento, o processo tem metade daquilo que vai ser discutido em julgamento. Porquê? Porque tem a acusação ou tem a pronúncia. Não tem a defesa. O prazo para se apresentar a contestação começa a contar-se no dia em que é designada a data do julgamento. Isto significa que quando o tribunal de julgamento recebe o processo e marca a audiência, não tem lá a contestação do arguido ou dos arguidos. Não sabe quais são os requerimentos de prova do arguido. Não sabe que trabalho é que vai ter quando o contraditório for exercido. O que é que isto gera em muitos casos? Que o julgamento tenha de ser reagendado, porque o processo só se completa quando a data do início da audiência já está marcada. Não vejo razão nenhuma para que não se antecipe o momento da contestação. O arguido recebe a acusação e tem duas alternativas: ou vai para julgamento ou requer a abertura de instrução. Se optar por não requerer a abertura de instrução, deveria ter um prazo para contestar. Se optar por ir para instrução, o prazo para contestação devia começar a contar-se desde o despacho de pronúncia, se houver pronúncia. O que é que isto propiciava? Que, quando o processo chegasse à secretária do juiz de julgamento, já lá estaria a informação toda. Estaria lá tudo: a contestação e a acusação. Ou seja, a defesa e a acusação. E o juiz sabe o que é que vai ter de fazer. Coisas tão simples como esta: num acidente de viação pode chamar-se uma seguradora ou uma terceira pessoa, deduzir um incidente no processo …. Se isto aparece com a data de julgamento marcada, tem de voltar tudo para trás, porque é preciso notificar quem não foi notificado para contestar o pedido de uma das partes. Não faz sentido nenhum. Isto é de uma simplicidade infantil e ainda não foi feito, certo? Isto no plano do processo penal.
Noutro plano, acho que estamos muito obcecados com as questões da corrupção e há múltiplas outras questões com relevância penal que nos passam completamente ao lado. Vou dar-lhe o exemplo do crime de infidelidade. Muitas situações que hoje se discutem nos tribunais, por exemplo, de responsabilização de banqueiros ou até de responsabilização de quadros ou dirigentes da banca, poderiam ter cabimento no crime de infidelidade. Mas o crime de infidelidade é uma bagatela penal! É um crime semipúblico. Se a queixa não é apresentada nos seis meses seguintes, não há procedimento criminal. Tem uma moldura penal baixa, até três anos. Portanto, escapa, em termos de prescrição, a muitos processos que, por tardarem muito a chegar ao fim, acabam por ser vencidos por prescrição. E é um crime que hoje tem uma importância enorme, ou seja, situações que não cabem nos quadros tradicionais do crime de burla, que não são abusos de confiança, mas que, em sede penal, poderiam ter cobertura no crime de infidelidade, acabam por ficar à margem, ou porque prescrevem ou porque as pessoas, sabendo dos factos, não sabem que têm que apresentar queixa em devido tempo, e depois perde-se a oportunidade. Portanto, não percebo porque é que não é criado um crime de infidelidade agravado, quando o prejuízo causado for acima de um determinado montante, à semelhança do que acontece na burla e no abuso de confiança. Devia haver um tipo penal de infidelidade que fosse um crime público e que tivesse uma penalidade equiparada à burla ou ao abuso de confiança agravados, uma pena até oito anos ou até dez anos em alguns casos. Acho que há aqui uma obsessão pelo combate à corrupção que faz esquecer outras coisas tão importantes como a própria corrupção.
Podemos dizer que, aí sim, houve alguma pressão mediática que o Governo sentiu para ceder.
Teve de ceder também, mas, sobretudo, porque não comunica bem. A corrupção pode combater-se através de um ataque central ou de um ataque de flanco, se quiser, pelos lados. Há um conjunto de medidas que têm sido tomadas na prevenção do branqueamento de capitais, na transparência dos fluxos financeiros, na transparência dos veículos, das sociedades. Hoje em dia não há sociedades absolutamente anónimas. Há sociedades anónimas, mas não há ações ao portador. Há uma transparência quase total e não há praticamente segredo nenhum que tenha resistido. É praticamente impossível movimentar dinheiro sem que isso seja detetado ou detetável. E todas essas medidas são tão ou mais eficazes no combate à corrupção do que medidas que visam atacar o fenómeno de corrupção de frente, porque, no fundo, impedem a circulação em circuitos lícitos, da economia lícita, de vantagens ilicitamente obtidas. Se bem que a corrupção hoje seja multifacetada. Quando se discute se obter um emprego para o filho, fazer um contrato com o pai, ter o lugar numa academia de clube de futebol… se isto são vantagens que podem corresponder ao preenchimento do crime de corrupção, e hoje aceita-se que sim, estamos perante casos que nada têm que ver com a corrupção clássica. Mas também é bom dizer que, em termos de legislação, nós temos das leis mais avançadas do mundo no combate à corrupção, porque os nossos crimes da família da corrupção abrangem praticamente tudo o que é concebível. Exceto naquele caso das pessoas coletivas … Por exemplo, quando um político sai de um cargo governamental para a administração de uma grande empresa, isso pode corresponder a um fenómeno de “porta giratória”, que é uma realidade que poderá hoje enquadrar-se num conceito ampliado de corrupção. É evidente que a pessoa coletiva que o contrata não tem nenhum problema com isso, porque não incorre em responsabilidade penal. É nesses domínios que se pode aperfeiçoar um bocadinho.
E parece que vamos por esse caminho. Falou-me dos megaprocessos. A ideia é agora haver a opção de poderem serem fragmentados…
É que aqui fala em razão da economia processual, é mais em razão da celeridade processual. E porquê? A ideia dos megaprocessos é, em si, uma ideia benevolente, porque se há um conjunto de arguidos que respondem por vários factos que estão em si interligados, é bom que só exista um processo para conhecer esses factos todos. Porque, se não, qual é a alternativa? Por hipótese, tenho 10 situações suspeitas e 10 processos. E então, em vez de os suspeitos defrontarem um único processo, teriam que defrontar um e outro e outro ao longo do tempo. A ideia é uma ideia positiva. O que é que acontece? É que, com a complexidade das investigações e às vezes também com uma certa estratégia do MP, de justificação de atraso, os processos começaram a ter uma dimensão absolutamente monstruosa. Muitas vezes até se percebe que há uma evolução errática, se quisermos, nos processos.
Quando se lê os processos, sim.
É tudo a explicar a mesma coisa e depois dali passa-se para o outro lado e, entretanto, o suspeito em 2017 já não é o mesmo em 2019. Eles estão lá no processo e continuam arguidos, mas, entretanto, virou-se [a investigação] para outro lado, para outro arguido, a partir desse outro arguido vem outro, e assim sucessivamente. Estão lá os iniciais, mas aparecem entretanto arguidos novos e também novos factos, que às vezes já não têm nada que ver com os iniciais. A Operação Marquês é um exemplo óbvio…
Era isso que eu dizer.
Mas como a Operação Marquês há tantos outros. O processo da EDP é paradigmático também a esse respeito. Começa-se numa ponta e vai-se saltitando de um lado para o outro. Como o MP só está limitado pelo prazo de prescrição dos crimes, os prazos de duração do inquérito são indicativos. Muitas vezes, os megaprocessos servem de justificação para que as investigações não sejam concluídas a tempo, porque se descobre sempre mais qualquer coisinha. Vai-se andando de um lado para o outro, às vezes sem um rumo definido e muito certo. O que é que me parecia indispensável fazer? É que a conexão de processos se limite a objetivos mais estritos e nós tivéssemos que, a dado momento, facilitar a separação de processos. Esse é um caminho que também não deixa de ser referido na proposta do Governo. E, muitas vezes, outro aspeto a que o MP é insensível – o MP e a opinião pública em geral – é sobre o facto de alguém hoje em dia ser arguido num processo mediático. Isso é uma marca tremenda sobre a idoneidade e a reputação do visado. Pessoas que têm uma atividade empresarial conhecida, se são arguidos num processo qualquer e se é um processo no qual se discute corrupção e branqueamento, falamos de crimes infamantes.
E a nível do futuro profissional fica logo marcado.
A presunção de inocência é, hoje em dia, um princípio que está completamente esquecido. Não é aplicado por ninguém. Está na Constituição, mas, enfim, é mais um princípio simbólico. Basta alguém ser constituído arguido que fica com uma marca infame que o impede, à partida, de fazer uma data de coisas. Há pessoas que são arguidas durante anos a fio sem sequer serem interrogados no processo. Eu tenho arguidos da Operação Monte Branco – e já ninguém se lembra deste processo – que continuam arguidos e que ainda não foram interrogados. Eles não sabem sequer por que razão são arguidos. Quando o arguido é interrogado é que sabe quais são os factos que fundamentam a suspeita…
Mas até lá não…
Até lá não. Tenho um [cliente] constituído arguido no processo da EDP em que é assim. Está constituído como tal desde 2017 e não sabe porquê. Já requeri o interrogatório dele três ou quatro vezes e o MP responde “nós interrogamos quando acharmos que o devemos fazer”.
E para fazer o seu trabalho é complicado porque assim nem sequer sabe o que tem de fazer.
Enquanto não me derem factos não tenho muito que fazer. Agora, como é que explica a uma pessoa que é arguida num processo-crime que só saberá porque é que é arguido quando o MP o chamar para o interrogar, e que não se sabe quando o chamam, será quando bem entenderem. Podem passar anos e anos e anos com os processos a evoluir e, dois anos volvidos, já são outros os factos que interessam. O que é que estão aquelas pessoas da fase inicial a fazer lá então? E porque é que têm de ficar anos a fio com estatuto do arguido?
Depois diz-se, de uma maneira ingénua ou se calhar hipócrita, que o estatuto de arguido é um estatuto de proteção que se concede às pessoas, para elas se poderem defender e que, além disso, beneficiam da presunção de inocência constitucionalmente garantida. Portanto, ninguém tem que se queixar de ser arguido a vida inteira. Não faz mal nenhum… Mas claro que faz, como é óbvio. Se for alguém com ligações à banca ou ligado ao mundo empresarial, que precisa de ter uma certa idoneidade, fica logo com a reputação manchada. E a vida dos seus negócios prejudicada. Os bancos têm sistemas de alerta, de compliance, que detetam essas coisas. Eu conheço pessoas que têm movimentos bancários perfeitamente normais que são bloqueados porque o compliance do banco sabe que fulano tal é arguido no processo tal e bloqueiam até a questão estar esclarecida, o que pode demorar anos. Hoje, ao nível da opinião pública, continua a ouvir dizer-se que os criminosos nunca mais vão parar à prisão. É outro exemplo do ataque à presunção de inocência, esta ideia peregrina, que começa a despontar, de que com duas decisões condenatórias se pode pôr as pessoas a cumprir pena, independentemente de se interpor mais um recurso. Para o Tribunal Constitucional ou até para o Supremo. Se há duas decisões conformes, vamos dar cumprimento à pena de prisão e depois logo se vê. A pessoa cumpre a pena que tiver a cumprir e depois logo se vê…
Depois quando a decisão do recurso também não é rápida…
Haverá quem pense: “bom, vou pedir uma indemnização ao Estado”, que também é uma coisa que é muito rápida… Fica normalmente para os netos.
(risos) E não é por aí, não é o dinheiro que vai pagar a pessoa inocente na prisão.
Mas, com tantos megaprocessos, eu diria, só para rematar, que acho fundamental existirem critérios objetivos de separação dos processos, que permitam, pelo menos relativamente a arguidos que estão lá por questões menores, no processo maior por questões menores, que lhes permitam divergir, portanto serem julgados em processo separado.
De forma a não ficarem presos.
Exatamente. E a ficarem livres do assunto mais depressa, de outra maneira.
E no caso do caso EDP é um desses exemplos, não é? Mas isso agora já não pode dizer (risos).
Exatamente. Pode usar o exemplo do Monte Branco, de que já ninguém se lembra e que não teve acusação ainda.
Vamos falar agora do processo de Rui Pinto, que também tem resultado em discussões bastante acaloradas. O desfecho deste caso vai ser importante para a Justiça portuguesa pelas razões óbvias… Que é: Até que ponto é que nós devemos considerar a prova adquirida de forma ilegal?
Vai. Vai ser para a justiça portuguesa e não só. Não só porque há um importantíssimo movimento de opinião. Outro dia estive num debate interessante, com o ex-ministro Poiares Maduro. Não o conhecia pessoalmente, e achei que era uma pessoa muito agradável, julgando que eu iria usar os argumentos terríficos do meu lado, tentou esmagar-me com uma série de pessoas e de instituições que defendem este tipo de situações, que as valorizam muito considerando-as muito eficazes. Eu não digo que não sejam eficazes em situações como as de Rui Pinto… São eficazes no combate a certo tipo de criminalidade, que é uma criminalidade mais subterrânea, mais difícil de descobrir. Ou que às vezes, por razões e também por uma certa hipocrisia de Estado até, se quiser chamar assim, são toleradas e depois de repente há ali um…
Está a falar de Isabel dos Santos?
Não estou a falar de ninguém em particular. Não é só Isabel dos Santos. Há muitos arguidos notáveis a quem toda a gente antes estendia a passadeira vermelha…
E de repente passa-se de bestial a besta.
E com muita facilidade. Mas uma hipocrisia de Estado podia ser mais para esses lados.
O próprio Ricardo Salgado…
Mas há de facto alguma eficácia neste tipo de atuações. E eu até suspeito que isto seja alimentado por algumas organizações internacionais, designadamente organizações de colegas seus jornalistas. Aquele consórcio de jornalistas… Agora, acho que não devemos admitir estes desvios e devemos esclarecer muito bem as coisas. Aquilo que é a proteção dos denunciantes e o que é o enquadramento legal, do que se designa vulgarmente por whistleblowing. É uma coisa completamente diferente daquilo que é a obtenção de informação através da prática de crimes informáticos. Não tem nada que ver uma coisa com outra. E a linha de fronteira está precisamente na licitude do conhecimento dos factos. Na licitude ou na ilicitude do acesso à informação.
Que no caso do whistleblower é estar numa organização…
Não tem necessariamente que estar. Pode ser um prestador de serviços. Tem que ser uma pessoa que teve contacto lícito com a informação relevante que denuncia, que não obteve essa informação através de meios ilícitos. Imagine um prestador de serviços, que é chamado a uma organização para montar um sistema informático, por exemplo. Não é da organização, mas vai lá prestar um serviço. Apercebe-se ou pedem-lhe que o sistema permita determinados desvios, que só podem ter uma intenção criminosa qualquer. Se as pessoas que estão lá a fazer esse serviço denunciarem a suspeita da prática do crime são denunciantes protegidos, são whistleblowers. Porquê? Porque o acesso que eles têm às informações que fazem suspeitar da prática de um crime é um acesso lícito.
Se comparar, por exemplo, com o caso de Edward Snowden, nos Estados Unidos. O Edward Snowden é muito mais próximo de um whistleblower do que Rui Pinto. Porquê? Porque o Edward Snowden era uma pessoa, se não me engano, da organização. Aí levantam-se problemas de segredo de Estado. No fundo há um conjunto de leis dos serviços de informações que obrigam as pessoas a um sigilo mais qualificado, digamos assim. E aquelas próprias atividades denunciadas seriam atividades lícitas. Algumas. Outras seriam mais duvidosas. E, portanto, o que se discute é se não há ali mais uma denúncia ética ou moral do que propriamente a denúncia de crimes. Agora, é alguém, nesse caso, no caso de Snowden, que teve acesso legítimo à informação que utiliza.
No caso de Rui Pinto não é assim. Rui Pinto é um pirata informático que entra em sistemas informáticos, não estando autorizado a fazê-lo. E que o faz com um critério pessoal. E, aparentemente, eu não sei e nem me vou pronunciar… porque respeito a presunção de inocência do senhor, tem que beneficiar dela. Mas, com o o Ministério Público entende, fê-lo com o propósito de extorquir dinheiro a quem andou a piratear. Não sei se andou, se é assim, se não é… Veremos.
Ele assume que andou a piratear. Mas diz é que não é por questões financeiras.
Mas esse é que é o problema. É que seja qual for a razão, a investigação de crimes – e não é por acaso que é das funções do Estado -, tem que fazer-se de acordo com critérios de legalidade e de objetividade. Não é o particular que se vai pôr a investigar ao seu critério e usando os meios que entende que deve utilizar. E depois o Estado assobia para o lado como se nada tivesse acontecido: “Mas que magnífica a informação que este senhor me vem pôr aqui à disposição. Eu, Estado, não podia através destes meios chegar a esta informação, mas já que ela aqui está vou aproveitar”. Isto é, obviamente, a negação dos princípios fundamentais [do Estado de Direito].
Mas há uma série de nuances que partem das relações com a comunicação social que me parecem igualmente perigosas. Eu, quando digo que estamos a violar princípios fundamentais que para mim são muito caros, eu não… enfim…eu sou assumidamente conservador e retrógrado numa data de coisas. Acho que estamos com sinais claros de que há uma mudança de era, há uma mudança da mentalidade das pessoas. Há uma opinião generalizada que vai num determinado sentido que não é aquele por onde eu vou. Portanto, quando digo que estes princípios não devem ser alterados, assumo-me como conservador. Se as coisas tiverem que ser alteradas, que sejam, mas para já os princípios são os que são.
E porque é que me parece que isso é muito perigoso e é muito mau, sobretudo com as utilizações que são feitas? Porque há uma coisa em que toda a gente está de acordo, mesmo os maiores defensores da utilidade deste tipo de informação: é que esta informação, em si mesma, não vale como prova num processo crime. A prova proibida não vale num processo-crime. Portanto, eu não posso agarrar em material probatório que vem dos discos do Rui Pinto e utilizá-lo como prova no processo. Isso não se pode fazer. Depois, o que é que se diz para além disso? Isso será assim, mas se há a informação tornada pública de um crime, o Ministério Público oficiosamente tem de abrir um inquérito. O que é verdade.
E aí é por isso que está a falar da comunicação social, já percebi.
Há uma espécie de branqueamento do ato. E isto é verdade. O Ministério Público tem o dever de abrir uma investigação criminal. Mas vamos lá ver, de repente aparece no jornal que o senhor A ou o senhor B ou o senhor C praticou um conjunto de fraudes fiscais e branqueamento, o Ministério Público tem que investigar. Mas isto são informações obtidas a partir de um ato ilícito. Não interessa, quer dizer, o que o ato ilícito alcançou fica lá arredado. Agora, o Ministério Público que abra uma investigação autónoma e, com os seus meios de obtenção de prova, vá atrás disso. Já há aqui uma relativa deslealdade porque, repare, se não fosse o crime original, a informação não era obtida. Quer dizer, pelos próprios meios da investigação criminal não se chegava lá. Mas enfim, com isto ainda se poderá conviver. Agora, o que eu não posso tolerar e acho absolutamente reprovável é que, a partir de notícias que são publicadas, que referem informações obtidas ilicitamente, e que toda a gente sabe que são obtidas ilicitamente, informações que deram lugar a um processo-crime autónomo em que estão a ser julgadas pessoas…. que essas informações sejam inseridas em peças processuais de outros processos e sejam utilizadas contra as vítimas do pirata informático?! E que isso seja feito pelo próprio Ministério Público. Parece-me que chegamos aí ao grau zero do respeito pelos princípios. Portanto, o que temos é que ter cuidado com o que fazemos ou com o que vamos fazer com essas informações, de facto, para que elas não percam o efeito útil que podem ter, mas que ao mesmo tempo não sirvam para pôr de parte todos os princípios fundamentais do Estado de Direito. E o princípio fundamental do Estado de Direito é o de que a investigação criminal é pública, não é privada, tem critérios de legalidade e de objetividade. Portanto, não é para satisfazer o interesse A ou o interesse B ou porque se acha isto ou aquilo, é porque objetivamente há suspeitas de crime e respeita-se a legalidade. E há determinados crimes que não admitem esse tipo de provas. Por isso não as vamos usar se forem esses crimes…
Não percebo como é que é possível, não podendo as autoridades judiciárias e os órgãos de polícia criminal usar certos meios de obtenção de prova, se for um particular ilicitamente a fazer isso já se torna aproveitável mais adiante? Não faz sentido nenhum, é deixar entrar pela janela aquilo que não entra pela porta e, portanto, isso é uma violação aberrante dos princípios do Estado de Direito.
Relativamente ao ataque informático sofrido pela PLMJ e, aparentemente, agora percebe-se que não foi caso único e que também envolveu outros escritórios de advogados concorrentes, vossos concorrentes. Tem tido mais cuidado na forma como comunica com os seus clientes por e-mail?
Eu vou fazer uma afirmação drástica: todas as comunicações eletrónicas são inseguras. Não há nenhuma que seja absolutamente segura. Por mais que se faça, nunca podemos garantir em absoluto a confidencialidade de uma comunicação eletrónica. Portanto, se há qualquer coisa muito importante para comunicar, o ideal é não o fazer através de um meio eletrónico. Ponto final.
Portanto, presencialmente…
Presencialmente, até por escrito…O problema das informações eletrónicas, das mensagens eletrónicas é que elas não levam só uma mensagem, levam um conjunto de dados, de metadados – dados que não são visíveis, mas que estão lá –, que elucidam muitíssimo mais e são virtualmente indestrutíveis.
Enquanto se for por carta só vincula a pessoa que escreve e a pessoa que recebe, à partida.
A carta tem o problema da materialidade, é papel. É uma prova que está ali, mas também tem a vantagem de ser destrutível. A comunicação eletrónica não é. Agora, tirando isto, o que é que está a ser feito e o que é que se tem feito? A Cuatrecasas tem um departamento de tecnologia de informação muitíssimo bom, exemplar mesmo, e que é reconhecido até internacionalmente como tal. E nós temos, quer ao nível da formação que é dada às pessoas quer a nível da segurança dos sistemas, temos o chamado state of the art nesta matéria. Temos todos a consciência de que é preciso ser muito cuidadoso na maneira como se trata a informação digital. Tirando isto, aquilo que eu digo, e digo da perspetiva de um penalista, é que não há informação eletrónica que seja absolutamente segura ou destrutível.
Portanto o seu cuidado é sempre…
Mas o cuidado, na minha área, tem que existir.
Agora falando só um bocadinho, já não temos muito tempo para não ficar muito comprida esta entrevista, relativamente à questão da denúncia obrigatória, de denunciar por suspeitas de lavagem de dinheiro. Qual é que é a sua posição relativamente a isso?
Para mim não é nada difícil. Não é difícil porque na minha área de prática eu tenho a certeza absoluta de que não tenho que denunciar ninguém, e não tenho a mínima dúvida. E isso está enunciado na lei e ficou mais claro com o regulamento que a Ordem publicou. Porquê? Aquilo que é o núcleo duro da atividade dos advogados, que é a consulta jurídica ou assessoria jurídica e o patrocínio forense, não está no âmbito de aplicação da lei. Se eu estou a exercer o mandato forense, ou seja, a representar um cliente no litígio, ou se estou a dar mera consulta jurídica… Mera consulta jurídica, o que é? A avaliação de uma situação de facto e a aplicação do Direito ao caso. O cliente vem consultar-me. “Eu tenho este problema, o que é que posso fazer?”. Pode fazer isto assim e assim. Isto (esta avaliação) está fora da aplicação do âmbito de aplicação da Lei de Prevenção do Branqueamento e do Financiamento do Terrorismo. Tal como está o patrocínio forense. Se um cliente me vem pedir para patrocinar um caso, mesmo que eu recuse o patrocínio ou que ele depois não aceite a proposta de honorários ou seja por que for não se concretizar esse patrocínio, a informação que eu recebo, tendo em vista preparar o patrocínio, está coberta por rigoroso segredo profissional e, portanto, eu, no meu caso, na minha atividade, não tenho que denunciar ninguém.
Mas nem toda a gente faz essa interpretação..
Qual é o problema? É que hoje, e isso era outra questão interessante a propósito da multidisciplinaridade, o que eu acho que se deveria fazer é uma distinção clara entre aquilo que é advocacia, em termos rigorosos, e o que é a assessoria jurídica ou consultadoria jurídica, que já não está circunscrita aos quadros estritos da advocacia. Quando o advogado é, ao mesmo tempo, representante do cliente, quando o advogado é administrador de sociedades, quando o advogado é mediador de negócios, quando o advogado concebe soluções fiscais – não estou a dizer analisar uma situação fiscal, é dar uma solução de otimização fiscal – portanto, quando o advogado faz um trabalho que está para além daquilo que é o núcleo duro dos atos próprios da profissão, na maior parte dos casos… Se for ler os casos em que há o dever de comunicar…a maior parte desses atos podiam ser praticados na atividade de um advogado como na atividade de outra pessoa qualquer. Eu, para ser representante de um futebolista da alta competição e para fazer negócios em nome dele, não preciso de ser advogado. Posso ser, mas também posso não ser. Para ser administrador de uma sociedade não preciso de ser advogado. Eu, como advogado, não vou ceder as minhas contas para alocar lá fundos de clientes. Quando se faz isso entra-se numa zona cinzenta, já não se está no núcleo duro do que é a tradicional atividade do advogado e está a entrar-se numa área de advocacia de negócios, que é mais propícia a ter operações de risco. É nessas operações, é nessa área de atividade – que é perfeitamente lícita, não estou a dizer mal de quem se dedica a essa atividade – o que estou a dizer é que isso não se pode…
Não se pode é confundir com a atividade de advogado, não é?
Não, o núcleo duro da atividade do advogado, aquele ao qual se aplicam as regras deontológicas estritas, em que está o segredo profissional e tem que estar. Aliás, outra coisa hoje muito esquecida… é o artigo 208.º da Constituição – que respeita ao mandato e patrocínio forenses – e que dispõe que a lei garante aos advogados as imunidades necessárias ao exercício do mandato. E entre essas imunidades está, acima de tudo, o segredo profissional.
Portanto, para si, isso não é uma questão.
Não é uma questão… então repare, aparece-me aqui como potencial cliente alguém que faz branqueamento. Eu sou advogado da área criminal. Se me aparecer aqui um potencial cliente que me relata factos que são uma tentativa de branqueamento ou um branqueamento consumado. Se eu tiver o dever de o denunciar, não há advocacia nesta área. Não tenho dever nenhum e a lei não prevê esse dever. O regulamento esclarece – e o regulamento é mais claro do que a lei, a lei faz ali uma pequena confusão entre o que é a exclusão do dever de comunicação e o que é a exclusão da aplicação da própria lei. A minha opinião é de que nestes casos a lei não se aplica. Não é aplicável… Não é uma questão de se aplicar a lei, mas não o dever de comunicar… é a própria lei que não é aplicável nestas situações. Agora diz o seguinte: “bom, mas então os advogados não têm nenhuns deveres”. Têm todos os deveres, que são os deveres fundamentais da lei da prevenção do branqueamento. E são também deveres estatutários, estão no nosso estatuto. Eu tenho que identificar um cliente. O meu estatuto profissional obriga-me a fazer isso. Pode não me obrigar a fazer com o detalhe com que sou obrigado através da Lei da prevenção do branqueamento. Mas tenho sempre de identificar o cliente.
Identificar quer dizer o quê?
Saber quem é o cliente. Ter que conhecer o cliente. Não posso aceitar trabalhar em situações obscuras. Se me aparecer aqui alguém a pedir para o patrocinar, mas depois disser “os honorários são pagos não por mim, mas por uma sociedade qualquer não sei onde”, eu, ao abrigo do meu estatuto, já tenho que esclarecer quem é a sociedade, porque é que a sociedade está a pagar os honorários daquele cliente e o que é que o justifica. E se achar que não estou confortável com essa situação e que as explicações não me são dadas, tenho o dever de recusar o patrocínio.
Foi o que já lhe aconteceu, aliás…
E nesses casos eu não preciso da Lei da prevenção do branqueamento para nada. O estatuto impõe-me estes deveres todos. Da mesma maneira que já está no estatuto a proibição de advogar contra o Direito. Quer dizer, o advogado não pode facultar aos clientes esquemas de branqueamento de capitais, esquemas de evasão fiscal. Não quer dizer que não o faça de vez em quando. Há sempre quem o faz e não o deve fazer. Mas o estatuto proíbe. E isso é uma violação da nossa deontologia profissional, portanto é uma infração disciplinar, e, mais do que isso, pode ser crime. Agora, quando é crime é crime. Fazer dos advogados uma espécie de denunciantes de tudo e mais alguma coisa… Porque agora há outra vez essa fobia. Agora eu vivo absolutamente tranquilo com isso, porque sei que na minha área de atividade profissional esse problema não se coloca com a acuidade com que se coloca na advocacia de negócios…
Mas acho muito curioso. Que é: muitas vezes, nas grandes sociedades, a área penal é vista como uma área problemática. Mas habitualmente os problemas não entram nas grandes sociedades pela área penal, entram pelas outras áreas. Eu não conheço uma sociedade que tenha tido problemas…
Vá dizer isso à PLMJ… (risos)
A PLMJ está a fazer as suas opções. Uma perspetiva que eu tenho da evolução das grandes sociedades é que elas se vão focar no núcleo de advocacia de negócios, e em que as áreas da advocacia tradicional, entre as quais o contencioso e o contencioso penal, vão ter um lugar perfeitamente residual. Portanto, a tendência vai ser essa. A nível muito especializado, vai novamente haver boutiques e vão desaparecer determinadas áreas…
Essa é a tendência?
É, mas por várias razões, por razões de prevenção de riscos reputacionais, mas também de conflitos de interesses, sobretudo. Conflitos de interesses que são muitas vezes mais conflitos comerciais do que propriamente deontológicos.
Faz ainda sentido falar das diferenças entre a advocacia que é praticada no Norte e a de Lisboa?
Faz algum sentido. É uma experiência interessante. A minha experiência no Porto é interessante a esse respeito, porque faz sentido falar em algumas diferenças. O Porto tem ainda uma advocacia muito tradicional, assente numa relação de confiança e de proximidade entre o advogado e o cliente, mesmo em meios empresariais. Não se esqueça de que há no Porto grandes empresas e grupos de raiz familiar, em que o contacto com o advogado é muito personalizado e muito assente numa relação estreita de confiança. Em Lisboa essa relação estreita entre advogado e cliente, sobretudo com grandes clientes e clientes institucionais, tem-se vindo a perder. Portanto, eu não sei se esta tendência no Porto vai durar muito tempo, se ela própria tenderá a desaparecer com a evolução da empresarialização da advocacia e com essa diluição dos laços muito personalizados na relação advogado-cliente. Mas noto que no Porto isso ainda existe de forma vincada. Aqui em Lisboa é muito mais atenuado, seja em que área de prática for.
E nota isso também no estilo de advocacia da Cuatrecasas? Entre o vosso escritório lá e aqui…
O nosso estilo de advocacia não é ilustrativo, porque nós temos muito Trabalho que é levado para o escritório do Porto a partir daqui ou de Espanha, onde, de facto, não existe essa relação. Mas inegavelmente o peso dos advogados locais, dos advogados que são conhecidos e reputados no meio local, é indispensável para se chegar a um certo tipo de clientela local no Porto. Eu diria que, apesar de não ser o caso mais ilustrativo, também na Cuatrecasas se verifica isso.
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