O sócio da VFA garante que o principal desafio é criar uma firma “financeiramente sustentável”. Paulo Valério acredita que “as sociedades falam umas para as outras e os clientes do PSI-20”.
Paulo Valério, sócio da Valério, Figueiredo & Associados (VFA), não é o típico advogado que “dorme com o Código Civil”, segundo o próprio. Com uma vasta experiência na área de reestruturações e insolvência, acredita que esta última é uma espécie de “patinho feio” da advocacia, mas que quando a “economia se está afundar, é ao patinho que se agarra”.
O fundador e diretor executivo da Associação Portuguesa de Insolvência e Recuperação de empresas, não acredita em “super juízes, nem em super advogados” e afirma que um “advogado que só sabe direito é uma espécie de técnico de leis”.
Passados três anos desde a fundação da VFA, que balanço faz destes primeiros anos de atividade?
O nosso principal desafio, desde o primeiro dia, era criar uma sociedade de advogados financeiramente sustentável, mas muito assente na ideia de equilíbrio entre a vida profissional e a vida pessoal. E isto pode hoje medir-se na VFA de forma muito concreta.
Do ponto de vista financeiro, estamos no terceiro ano consecutivo a crescer em clientes, faturação, resultado e equipa; começámos dois e agora somos oito, repartidos por dois escritórios próprios, em Lisboa e em Coimbra.
Em termos de equilíbrio com a vida pessoal, a regra na VFA é ter toda a gente fora do escritório às 18h e não existir trabalho ao fim de semana. Isso implica um cuidado grande com a organização e uma escolha criteriosa dos clientes e processos que aceitamos. Implica estabelecer algumas regras, coletivas e individuais, também. Eu, por exemplo, não tenho email no telemóvel há quase um ano e encorajo todos dentro da VFA a fazê-lo. Nenhum cliente se queixou – acho que a maior parte nem reparou. De uma certa forma, posso dizer que o nosso crescimento estará sempre limitado (para o bem e para o mal) pelo nosso bem-estar e pelo das pessoas que trabalham connosco.
A VFA é atípica no que concerne à forma como comunica com o exterior, principalmente através das redes sociais como o LinkedIn. Chegou a referir numa publicação que “há um longo caminho a fazer na comunicação das sociedades de advogados”. Em que consiste esse caminho?
A maior parte das pessoas que leia os conteúdos de comunicação da maioria das sociedades não percebe o que está ali escrito. Todas essas pessoas são potenciais clientes e, normalmente, não se reveem numa linguagem em que a advocacia se fecha sobre si própria, cheia de estrangeirismos e daquilo a que por vezes se chama “juridiquês”, uma coisa quase críptica. Julgo que, na maior parte dos casos, as sociedades falam umas para as outras e para os clientes do PSI-20.
Por outro lado, a advocacia tende a levar-se demasiado a sério e as sociedades apresentam os seus advogados como máquinas de trabalho jurídico. Pelo caminho, perde-se a humanidade que foi o timbre da advocacia desde sempre. É por isso que nós procuramos, o mais possível, criar conteúdos que possam ser lidos pelo cidadão comum – ainda que nem sempre seja fácil – e tentamos apresentar-nos como pessoas de carne e osso, mesmo quando exercem advocacia de forma competente e empenhada.
A advocacia tende a levar-se demasiado a sério e as sociedades apresentam os seus advogados como máquinas de trabalho jurídico.
Continuo a acreditar que o valor mais importante na relação entre um advogado e um cliente é a confiança, e ela só nasce entre pessoas, humanas, que se reconhecem entre si, nas suas forças e nas suas fraquezas.
Quais são as perspetivas para a VFA nos próximos anos?
Acho que resulta do que disse antes que não queremos ser uma fábrica de advocacia. E temos bem consciência de que, a partir de uma determinada dimensão, é difícil não ceder nos limites que traçámos para nós próprios – advocacia competente; crescimento sustentável; e um verdadeiro compromisso com a individualidade e humanidade dos advogados que trabalham connosco. Por isso, acho que ainda temos muita margem para crescer, mas também acho que no ecossistema VFA não cabem mais de 20 a 30 pessoas. Quer em Coimbra, quer em Lisboa, estamos a fixar os nossos escritórios em zonas históricas, com algum condicionamento de acesso – o Quebra-Costas e o Chiado. No fundo, é como se estivéssemos a dizer que só queremos connosco quem se dá ao trabalho de chegar até nós, porque se identifica com os nossos valores. Isso é válido para advogados e para clientes. Confesso que nunca tinha pensado nisso, mas, agora que penso, faz muito sentido.
Tem uma prática consolidada na área de reestruturações e insolvência. O processo de insolvência deve ser visto como último recurso ou como um processo de recuperação?
A insolvência é uma espécie de patinho feio da advocacia, mas quando a economia se está a afundar, é ao patinho feio que se agarra. Não devia ser assim e acho que, aos poucos, está a deixar de ser.
A insolvência é uma espécie de patinho feio da advocacia, mas quando a economia se está a afundar, é ao patinho feio que se agarra.
Nós atravessámos uma crise muito severa há bem pouco tempo e foi uma época em que todos tiveram que olhar para o tema da insolvência e recuperação com olhos de ver. Isso fez aumentar a massa crítica dos profissionais que trabalham nesta área (e aqui não me refiro apenas a advogados, mas também a juízes e administradores de insolvência, por exemplo).
Por outro lado, talvez nos tenha despertado para a necessidade de ter uma abordagem preventiva destes temas, pelo que, respondendo à sua pergunta, é importante que se chegue cedo ao processo de insolvência (ou a outros instrumentos concursais – lá estou eu a falar “juridiquês”!) para tentar uma recuperação, antes de liquidar a empresa, que é sempre o pior cenário para economia.
Qual é a sua opinião sobre o atual Código de Insolvência e Recuperação de Empresas?
Acho que o Código de Insolvência – que remonta a 2004 – ainda não tinha sido suficientemente desafiado pela realidade, conforme foi entre 2008 e, diria, 2014. Este processo de confronto entre a lei e a realidade pôs a nu algumas contradições e a criação de outros instrumentos – uns enxertados no código e outros em legislação avulsa – criou um sistema cheio de contradições. Por exemplo, até há bem pouco tempo, uma empresa insolvente – que não pode recorrer ao PER – podia recorrer a um instrumento extrajudicial – o RERE – que, na lógica do sistema, deveria destinar-se, apenas, a empresas num estado inicial de fragilidade financeira. Também ninguém percebe como é que o administrador de uma empresa que vê um plano de recuperação aprovado pelos seus credores, pode, na esfera individual, ser perseguido pelos mesmos credores, ainda que a empresa esteja a pagar a dívida de acordo com o plano e graças ao esforço de gestão desse administrador. É um daqueles casos em que o direito parece estar de costas voltadas para a realidade.
Recentemente fundei, com alguns colegas, a Associação Portuguesa de Direito de Insolvência e Recuperação, porque acho que não basta criticar, é preciso dar um passo em frente e colaborar, numa perspetiva cidadã, com os demais profissionais e com o legislador.
Enquanto vogal suplente eleito o Conselho Superior de Magistratura, qual é o pior defeito do sistema judicial português?
Quem fala em nome do Conselho Superior da Magistratura é o seu presidente, que, na verdade, também é presidente do Supremo Tribunal de Justiça. Mas eu, na modesta condição de vogal suplente daquele órgão, posso bem acompanhar as palavras que o senhor juiz conselheiro António Joaquim Piçarra proferiu na última abertura do ano judicial. O sistema é equilibrado e funcional. Mas o tratamento de processos complexos, sobretudo no âmbito da criminalidade económico-financeira, em moldes que os transformam em edifícios faraónicos – a expressão é dele – pode ser um problema. Não é apenas uma questão de morosidade, é também uma questão de qualidade. Não acredito em super juízes, nem em super advogados. O tratamento destes processos será, por muito empenho que tenham os profissionais envolvidos, sempre insuficiente e marca, negativamente, a perceção que as pessoas têm da justiça.
Não acredito em super juízes, nem em super advogados.
Numa era demarcada pela inteligência artificial e por um desenvolvimento acentuado das novas tecnologias e das estratégias de marketing, qual deve ser a posição dos advogados e das próprias sociedades a este fenómeno?
Eu não sou muito de heróis, mas quando penso nisso, vem-me sempre à memória o Dr. António Arnaut, com quem tive o privilégio de privar muitas vezes, na maior parte dos casos para me sentir um anão ao lado dele, ainda que ele nunca colocasse as coisas nesses moldes – antes pelo contrário. Foi com ele que aprendi a deontologia profissional. E ele foi, até ao último dos dias, um defensor do advogado humanista e da advocacia que não é um negócio.
Acho que o grande desafio que temos é o de compatibilizar os tempos que vivemos, com uma fidelidade a esse paradigma do Advogado com maiúscula. É muito difícil, porque os advogados, hoje, não sobrevivem esperando no seu escritório que os clientes lhes batam à porta. O mundo está a mudar muito depressa. Mas uma coisa que a tecnologia poderá trazer é um recentramento da atividade dos advogados no essencial da profissão – o direito e as pessoas –, deixando para as máquinas a burocracia que os esmaga, diariamente.
“Não sou um daqueles advogados que dorme com o Código Civil à cabeceira e, se o que faço profissionalmente ocupa parte importante dos meus dias, gosto de acreditar que sou muito mais do que isso”, referiu numa publicação. O que quer dizer com esta afirmação?
Gosto muito de trazer para a advocacia uma máxima que, salvo erro, vem da medicina: um advogado que só sabe de direito, nem de direito sabe. Um advogado que só sabe de direito é uma espécie de técnico de leis. Na maior parte dos casos, esses são os que têm o Código Civil à cabeceira. Eu gosto de ter à cabeceira – cabeceira, digamos, em sentido amplo – outros livros, mas também jornais, as minhas guitarras ou brinquedos do meu filho. Nunca serei bom advogado se não for pessoa, em primeiro lugar. E é isso que me faz verdadeiramente feliz.
Assine o ECO Premium
No momento em que a informação é mais importante do que nunca, apoie o jornalismo independente e rigoroso.
De que forma? Assine o ECO Premium e tenha acesso a notícias exclusivas, à opinião que conta, às reportagens e especiais que mostram o outro lado da história.
Esta assinatura é uma forma de apoiar o ECO e os seus jornalistas. A nossa contrapartida é o jornalismo independente, rigoroso e credível.
Comentários ({{ total }})
Paulo Valério: “Um advogado que só sabe de direito, nem de direito sabe”
{{ noCommentsLabel }}