O advogado da VdA defende que a formação do CEJ deveria ser revista, que os juízes ganham demasiado mal e sublinha que quem defende Rui Pinto como um 'herói nacional' é por “ignorância” e “modismo".
O advogado associado da Vieira de Almeida, Rui Costa Pereira, que, junto com João Medeiros e Inês Almeida Costa, abraça alguns dos processos mais mediáticos da Justiça portuguesa, defende que a formação do CEJ deveria ser revista, que os juízes ganham demasiado mal e sublinha que quem defende Rui Pinto como um ‘herói nacional’ é por “ignorância” e “modismo”.
Diz que a impunidade é um problema transversal às magistraturas, mas também à advocacia, “defendendo que há demasiada brandura” no exercício da ação disciplinar de todas as profissões forenses, incluindo advogados.
O Ministério Público está bastante mediatizado mas não é uma instituição transparente. A sua atuação e resultados que apresenta está muito dependente do que se pode chamar de uma necessidade de “prova de vida”?
Penso que em 2022 a mediatização da Justiça é uma lapalissada. O Ministério Público, naturalmente, não é imune a essa circunstância. Se essa mediatização fosse utilizada como um mecanismo de transparência da sua atuação, assegurando o conhecimento pleno de como é exercida a ação penal, não viria nenhum mal ao mundo. O problema, parece-me, surge quando a transparência é antes utilizada como um pretexto para a mediatização. Não deixa, aliás, de ser paradoxal, que a mesma instituição que invoca a transparência da sua atuação para não se coibir de comunicar a detenção de A, a acusação de B, o arresto dos bens de C, etc., depois pretenda, por via de uma Diretiva da PGR, criar processos secretos de acompanhamento hierárquico, e dentro do processo penal, que é público por definição legal. Preocupa-me que essa estratégia mediática de algum Ministério Público colha os seus frutos. Adorava poder dizer que todos os juízes são capazes de passar imunes à pressão mediática verificada nos processos que são chamados a julgar.
Existe uma cultura de irresponsabilidade na magistratura portuguesa?
No desejável cumprimento do que é a irresponsabilidade prevista nos Estatutos, com certeza e ainda bem que sim. O problema é quando se confunde a irresponsabilidade com a impunidade e aí temos um problema transversal às magistraturas, mas também à advocacia. Diria que há demasiada brandura no exercício da ação disciplinar de todas as profissões forenses.
Há demasiada brandura no exercício da ação disciplinar de todas as profissões forenses.
O poder disciplinar existe só “para inglês ver”?
Não sei se é só “para inglês ver”; mas a ideia que vai passando é que só quando acontece uma hecatombe é que os órgãos disciplinares – e aqui estou a pensar em todos novamente, juízes, procuradores e advogados – atuam exemplarmente.
Uma reforma de fundo no ingresso e cursos de magistratura do CEJ resolveria a questão?
A perceção de impunidade sobre todas as profissões forenses não me parece que seja a causa principal para uma reforma do ingresso e da formação, tanto ao nível do CEJ, como ao nível da própria Ordem. A esse propósito, penso que há muito deveria ter sido revisto o modelo de ingresso no CEJ, demasiadamente dependente da prestação que num determinado dia ou dois, os candidatos têm nas provas que realizam. Olha-se pouco para a big picture e foca-se muito naquela prova, naquela avaliação feita naquele dia. Aliás, tal modelo permite – e na quase totalidade das situações com inteira injustiça – questionar a competência dos candidatos admitidos: basta pensar nas situações – que as há – de juízes ou procuradores que antes de serem magistrados procuraram ingressar na carreira da Polícia Judiciária e que reprovaram nos exames escritos ou psicológicos; alguns pensarão, “então não é bom para ser PJ, mas já é para ser juiz?”. Um modelo diferente de ingresso, talvez evitasse estas interrogações. Eu não tenho a receita mágica para esse modelo, mas julgo que valeria a pena a discussão.
Uma coisa para mim é certa, nessa discussão deveria também entrar a ponderação sobre a (para mim) necessária separação da magistratura judicial e do Ministério Público, no ingresso e na formação inicial ministrada pelo CEJ. São funções absolutamente distintas, que reclamam, com certeza, formações específicas e diferenciadas para cada uma. Se o Estado deve garantir a independência e imparcialidade dos juízes, talvez fosse um bom começo não fomentar essa simbiose constante entre juízes e procuradores logo no início da formação de cada um. Com certeza que é muito útil para a gestão racionada dos recursos financeiros, do mesmo modo que é, com certeza, mais prático para a gestão logística dos Tribunais, mas, de facto, não me parece a solução mais vantajosa para a salvaguarda dessa independência e imparcialidade. Pelo caminho, e já que os símbolos ainda devem ter o seu significado, porque não pensar fazer com que o Ministério Público descesse uns centímetros na bancada que habitualmente ocupa nas salas de audiências desse país fora, deixando de estar no mesmo patamar que o Tribunal?
É uma profissão mal paga para a responsabilidade que têm. Isso cria algum tipo de ressabiamento social por parte dos nossos juízes?
Não é mal paga; é muito mal paga. E aqui, permita-me um aparte: eu sei que na média nacional, o salário de um juiz é alto. Mas temos de nos deixar desta coisa tão portuguesa que é o nivelar por baixo. O problema principal não reside em alguns ganharem muito (tomara que ganhássemos todos muito); o problema reside em alguns ganharem muito pouco.
Mas voltando à questão que me colocou: quero acreditar que não há qualquer tipo de ressabiamento por isso. Vejo antes com preocupação a circunstância do nível salarial das magistraturas não ser atrativo para os melhores juristas. Dou-lhe um exemplo: na minha geração, tive a felicidade de me cruzar com várias mãos cheias de excecionais juristas; sabe quantos é que vi quererem ingressar nas magistraturas? Dois. Mas já só o fizeram depois de passarem alguns (bons) anos na advocacia e depois de sentirem o “chamamento”, digamos assim, para as magistraturas. Ora, não podemos estar à espera de que só queiram ir para as magistraturas aqueles que seguem chamamentos, pois que serão, com certeza, muito poucos, de entre os juristas excecionais, os que terão a coragem e o espírito de sacrifício para abdicar de um salário melhor para atender à sua vocação. E depois voltamos ao problema do modelo de ingresso: um jurista excecional pode ter um mau dia em provas escritas; um jurista medíocre, pode ser fantástico num bom dia de provas escritas.
Adorava poder dizer que todos os juízes são capazes de passar imunes à pressão mediática verificada nos processos que são chamados a julgar.
Os juízes da Relação deviam também ser mais fiscalizados?
Se lhe respondesse que deveriam ser mais fiscalizados, corria o risco de trazer implícita a resposta de que os acho sujeitos a pouca fiscalização e, com toda a franqueza, não tenho dados que me permitam quantificar se são muito ou pouco fiscalizados. Há aliás exemplos muito conhecidos de que essa fiscalização vem sendo feita. Teria, isso sim, bastante curiosidade em saber se essa fiscalização que é feita se debruça, de facto e efetivamente, sobre o exercício de funções dos juízes nos tribunais superiores ou, melhor, sobre o modo como esse exercício se revela no dia-a-dia. Por exemplo: será que a média de recursos confiados aos juízes desembargadores e conselheiros, justifica que, por regra, enquanto relatores, apenas profiram decisões de mérito uma vez por semana? Repare, não estamos a falar de juízes, como os de primeira instância, que além de terem de produzir decisões, se for preciso estão todo o dia, e vários dias seguidos, fechados numa sala de audiências. Na grande maioria das situações, são responsáveis por receber o recurso de alguém, a resposta de outrem e decidir.
As falhas na Justiça/crise na Justiça são da responsabilidade do setor ou do poder político?
Penso que cada um terá a sua quota parte de responsabilidade. Quem está do lado do setor, vai-se queixando das leis que tem e das que não tem, da falta de meios humanos e materiais; do lado da política, vão-se fazendo uns diplomas-folhetins e, genericamente, vai tudo continuando na mesma. Pior que isso é o facto de ver os dois lados, em regra, de costas voltadas e em trocas de acusações constantes. Eu que ainda sou jovem, acabo por me sentir velho, quando me vejo forçado a começar a seguinte ideia com um “ainda sou do tempo”; e, de facto, ainda sou do tempo em que o Estado, quando entendia dever concretizar alguma mudança estrutural na lei penal, procedia à criação de Comissões de Reforma, compostas por agentes do meio político, do meio judiciário, do meio académico, com todos os interessados, portanto; hoje em dia, na grande maioria das situações, temos diplomas estruturantes, na sua génese, desenhados em gabinetes ministeriais ou de assessores parlamentares – com certeza com gente muito competente – mas onde os principais intervenientes já só são convidados a participar no procedimento legislativo numa fase já muito adiantada e quase sempre sem capacidade de influir no que quer que seja.
Se fosse ministro da Justiça ou estivesse perante o futuro ministro da Justiça, o que elegeria/diria que era prioritário?
Vou-lhe responder à questão apenas sob a perspetiva que me é mais próxima, da justiça penal e pensando nas principais fases do processo penal (inquérito, instrução, julgamento e recursos): ao nível do inquérito, é imperioso dotar os órgãos de polícia criminal com mais meios materiais e humanos para a investigação criminal, quando os atuais, há demasiado tempo de atualidade, são insuficientes; ao nível da instrução, recordando uma ideia já há algum tempo defendida pela Presidente Emérito do Supremo Tribunal de Justiça, o Conselheiro Henriques Gaspar, procederia à extinção do Tribunal Central de Instrução Criminal – que, aliás, nunca fez sentido algum, à luz daquela que me parece a leitura mais adequada da proibição constitucional de criação de tribunais dedicados a certas categorias de crimes; ao nível do julgamento, promoveria a revisão das normas respeitantes ao saneamento do processo antes do julgamento, atribuindo poderes ao Tribunal de julgamento para, antes do seu início, procurar uma melhor agilização e celeridade na produção de prova, por exemplo promovendo um rigor maior na indicação das testemunhas realmente necessárias à prova a fazer; ao nível dos recursos, sustentaria a ampliação dos casos de recurso para o Supremo Tribunal de Justiça – procurando que o direito ao recurso não seja apenas, esse sim, para inglês ver – e procuraria uma alteração radical dos pressupostos de admissibilidade do recurso para o Tribunal Constitucional – impedindo o surgimento de situações de quase-denegação de justiça, não obstante a evidente necessidade de intervenção desse Tribunal.
Preocupa-me que essa estratégia mediática de algum Ministério Público colha os seus frutos.
Considera que Portugal está obcecado com a corrupção?
Considero que muita gente está obcecada com a corrupção. Por regra, aqueles que ou não têm a mínima noção de quais são os reais problemas no âmbito do combate à criminalidade; alguma classe política, pelo valor eleitoralista do tema; alguns por puro preconceito ideológico quanto a determinados setores da atividade económica; e também aqueles que apenas não sabem fazer mais do que seguir as modas.
Fui uma das ‘vítimas’ do hacker Rui Pinto, atualmente a ser julgado. Como encara a opinião de muitos que o veem como uma espécie de ‘herói nacional?
Com a mesma naturalidade com que encaro a obsessão sobre a corrupção e com a mesma perspetiva: ignorância, enviesamento ideológico e modismo parecem-me explicações razoáveis. Duvido que sejam muitos, como refere.
Sente que o escritório onde está, pela estrutura que tem, dá menos valor ao contencioso e mais a uma advocacia de negócios?
Com toda a certeza que não. Basta olhar para a equipa que integro – Contraordenacional e Penal – composta por 18 pessoas e a crescer de ano para ano. E mais importante que o tamanho da equipa é a forma como esta trabalha em constante sinergia com todas as áreas do escritório, mostrando que a máxima da VdA none of us is better than all of us nunca fez tanto sentido.
Quais as diferenças entre a PLMJ e a VdA?
Sou um privilegiado por fazer parte – ou ter feito – de duas das maiores casas da advocacia nacional, onde tenho e tive o prazer de me cruzar com pessoas pelas quais tenho a mais profunda admiração e onde fiz amigos para a vida. Não me ficaria bem estar a destacar diferenças e a colocar-me numa posição que pudesse ser injustamente mal interpretada. Prefiro, por isso, dizer que tenho muito orgulho no meu passado na PLMJ e um enorme entusiasmo em fazer parte da VdA, um escritório há muito na vanguarda da inovação da prestação de serviços jurídicos, de que tenho a felicidade de um dia ter olhado para mim como alguém que quis receber – o que espero retribuir todos os dias.
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Rui Costa Pereira: “Considero que muita gente está obcecada com a corrupção”
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