Ana Mendes Godinho diz-se perplexa face à proposta do Governo para reformar a lei do trabalho. No podcast "Trinta e oito vírgula quatro", ex-ministra alerta para potencial agravamento da precariedade.
Perplexidade. É essa a palavra usada por Ana Mendes Godinho para reagir às mais de 100 mudanças à lei do trabalho que o Governo propôs. No podcast “Trinta e oito vírgula quatro“, a ex-ministra do Trabalho atira que essa reforma é feita “sem dados objetivos e sem haver um racional que a justifique“, num momento em que o mercado de trabalho dá sinais de estabilidade, com o desemprego está próximo de mínimos históricos.
Sobre uma das medidas mais polémicas desse pacote — a limitação da dispensa para amamentação –, a antiga governante diz não ter conhecimento de fraudes ou abusos, como referiu a atual ministra do Trabalho, Maria do Rosário Palma Ramalho. “Não tenho outros dados para avaliar que me permitam dizer que são uma realidade“, atira, quando questionada se esses abusos são somente uma perceção.
O “Trinta e oito vírgula quatro” é um podcast quinzenal com entrevistas a decisores, líderes e pensadores sobre os temas mais quentes do mercado de trabalho. A nova temporada arranca com três episódios dedicados à reforma da lei do trabalho em curso.
É um conjunto de propostas que vão além do que a Troika impôs quando esteve em Portugal, com medidas que voltam a promover a precariedade, que voltam a dizer que um jovem, só por ser jovem, deve ser contratado a termo, que atacam o caminho que temos feito na conciliação da vida pessoal, familiar e profissional.
O Governo entregou na Concertação Social um anteprojeto com mais de 100 mudanças à lei do trabalho, várias das quais revertem a Agenda do Trabalho Digno, reforma que foi feita quando era ministra do Trabalho. Que avaliação faz do que está em cima da mesa?
Tenho uma grande perplexidade no momento, na razão e nas próprias justificações desta contrarreforma laboral. É um conjunto de propostas que vão além do que a Troika impôs quando esteve em Portugal, com medidas que voltam a promover a precariedade, que voltam a dizer que um jovem, só por ser jovem, deve ser contratado a termo, que atacam o caminho que temos feito na conciliação da vida pessoal, familiar e profissional, e que voltam atrás numa conquista histórica que tinha sido a criminalização do trabalho totalmente não declarado.
Em entrevista ao ECO na primavera, tinha referido que a precariedade estava a baixar fruto da Agenda do Trabalho Digno. Este anteprojeto alarga, nomeadamente, os limites da contratação a termo.
Não percebo porque é que se volta a alargar o prazo dos contratos a termo. Por outro lado, uma medida que me parece completamente em contraciclo, que é a de voltar a dizer que um jovem, só por ser jovem, deve ser contratado a termo. Lembro um inquérito que foi feito na União Europeia aos jovens, perguntando por que razão tinham um contrato precário. Na Alemanha, cerca de 15% dos jovens disseram que tinham um contrato precário porque não conseguiam encontrar no mercado uma resposta permanente ou alguém que lhes oferecesse um contrato permanente. Em Portugal, foram 85% dos jovens.
A ministra do Trabalho diz que os jovens de hoje não acham que um trabalho é para a vida toda.
Lido com muitos jovens. Aliás, quando construímos a Agenda do Trabalho Digno, ouvimos muitos jovens. Naturalmente, temos diferentes tipos de jovens, mas há um traço comum que é, cada vez mais, a necessidade de criarmos condições para que se sintam valorizados em Portugal. É muito difícil um jovem, por exemplo, ter acesso a um empréstimo para uma casa sem um contrato de trabalho permanente. É evidente que as relações laborais têm mudado muito. Os jovens, cada vez mais, são eles próprios a exigir diferentes formas na relação de trabalho.

Mas, na sua visão, os jovens procuram um modelo mais flexível e não necessariamente um vínculo mais frágil?
A fragilização dos vínculos dá um sinal péssimo aos jovens de que, afinal, as organizações, só porque eles são jovens, não lhes querem dar um voto de confiança e de valorização e de reconhecimento. Os números mostram que a Agenda do Trabalho Digno teve consequências na diminuição da taxa de precariedade. Os efeitos foram positivos, então porque é que estamos a voltar atrás? Não consigo compreender, nem consegui ainda encontrar alguém que consiga justificar, de uma forma racional, porque é que estamos a voltar atrás, quase voltando a regras do século XIX.
Ainda sobre a precariedade, a criminalização do trabalho não declarado resultou na entrada de milhares de trabalhadoras domésticas no sistema. Teme que, com o fim dessa medida, milhares de mulheres passem à informalidade?
As alterações à legislação laboral devem ser feitas sempre com base em factos e em indicadores bastante objetivos para que não estejamos todos sujeitos a leituras pessoais ou subjetivas da realidade. Olhamos para os números e é muito impressivo o que aconteceu com a criminalização do trabalho totalmente não declarado. O objetivo foi dar um sinal claríssimo de afirmação de que é inaceitável que exista alguém que presta trabalho a outro sem ter uma proteção social associada a este trabalho. Foi um avanço histórico. Para que é que se elimina uma medida que teve este efeito positivo do ponto de vista de proteção de dezenas de milhares de trabalhadores, sem ter havido uma avaliação do ponto de vista quantitativo de impacto?

Outra das medidas chave da Agenda do Trabalho Digno que é revertida com o anteprojeto do atual Governo é o travão ao outsourcing após despedimentos coletivos ou por extinção do posto de trabalho. Esta medida nunca foi pacífica, tanto que chegou a ser fiscalizada pelo Tribunal Constitucional. Consegue perceber, de algum modo, a sua reversão?
É extraordinário, depois do Tribunal Constitucional avaliar e considerar que não havia qualquer tipo de inconstitucionalidade, ser o próprio Governo que decide voltar atrás numa medida que procura que não existam mecanismos que levem a que haja despedimentos coletivos ou extinção de postos de trabalho substituídos a seguir por mecanismos de contratação em prestação de serviços. Esta medida não tem nada que ver com uma proibição genérica do outsourcing, nem coisa que se pareça.
Mas entende o argumento que, de alguma forma, restringe a liberdade de iniciativa das empresas?
Não sou só eu que considero que a medida era importante e útil. O próprio Tribunal Constitucional veio considerar que não viola nenhuma norma constitucional, nem está a impor nenhum limite inaceitável do ponto de vista do direito do setor privado ter as suas opções de contratação. Nada contra haver prestações de serviços quando se justificam. O que este mecanismo pretende é evitar situações de abuso.
É fundamental que haja a capacidade de fazer uma avaliação séria das razões objetivas para as quais as medidas legislativas estão a ser assumidas, seja para a legitimidade dessas próprias medidas, seja até para a compreensão dos cidadãos porque é que elas estão a ser tomadas.
Vamos então à parentalidade. Uma das medidas que tem chamado mais à atenção, é a questão da dispensa para a amamentação. Hoje, a lei prevê dispensa enquanto durar a amamentação, sem limite etário da criança. O Governo quer colocar agora um teto nos dois anos. Concordo com este limite?
Não só me parece grave voltar atrás nesta medida – passando a colocar tetos administrativos na relação entre pais e filhos –, mas também na possibilidade de mães e pais que têm filhos até 12 anos poderem estar dispensados, nomeadamente, de horários noturnos ou ao fim de semana, que sabemos que é crucial do ponto de vista do acompanhamento das crianças.
Mas, sobre a dispensa para a amamentação, a ministra do Trabalho fala em abusos, ainda que a tutela diga não ter dados. Enquanto era ministra do Trabalho, também lhe chegaram relatos da mesma natureza? Tem conhecimento de abusos e fraudes nesta dispensa?
Nunca me chegou nenhum caso dessa natureza. Mas também lhe consigo dizer aquilo que foi a minha prática enquanto ministra: qualquer uma das opções legislativas que tomei foi com base em dados e em avaliações. É fundamental que haja a capacidade de fazer uma avaliação séria das razões objetivas para as quais as medidas legislativas estão a ser assumidas, seja para a legitimidade dessas próprias medidas, seja até para a compreensão dos cidadãos porque é que elas estão a ser tomadas.

Mas não devia haver uma recolha destes dados em permanência pela parte do Ministério do Trabalho?
Existe uma recolha em permanência de tudo o que são queixas feitas à ACT. A ACT tem um sistema de registo das reclamações que são feitas.
As reclamações que chegam à ACT não são, tendencialmente, dos trabalhadores?
A ACT é um organismo que tem como grande função essa capacidade de ser equidistante e de ter o mesmo nível de prestação de esclarecimentos e de intervenção, seja a pedido de uma empresa ou seja a pedido de um trabalhador ou seja a pedido de representantes de empresas ou de representantes de trabalhadores.
Mas, na dispensa para a amamentação, a ACT diz ter dados relativamente às queixas dos trabalhadores, e não dos empregadores.
A leitura que faço é que só terá recebido reclamações por parte de trabalhadores. A ACT tem um registo de reclamações, independentemente da origem dessas reclamações.
Os dados com que todos fomos confrontados é que não existe uma realidade que justifique que este sistema seja alterado, sendo um sinal péssimo que se está a dar aos cidadãos e à sociedade em geral do ponto de vista de retrocesso relativamente aos direitos parentais e à conciliação da vida pessoal e familiar.
Portanto, estas fraudes de que a ministra do Trabalho fala acha que são mais perceção do que realidade?
Não tenho outros dados para avaliar que me permitam dizer que são uma realidade.
Uma das confederações empresariais sugeriu que os dois primeiros anos de dispensa continuem a ser pagos pelos empregadores, mas a partir daí que seja a Segurança Social a assumir este custo. Seria uma boa solução?
Não vejo razão nenhuma para alterar o sistema existente. Os dados com que todos fomos confrontados é que não existe uma realidade que justifique que este sistema seja alterado, sendo um sinal péssimo que se está a dar aos cidadãos e à sociedade em geral do ponto de vista de retrocesso relativamente aos direitos parentais e à conciliação da vida pessoal e familiar. Trabalhadores valorizados e com capacidade de conciliar a sua vida pessoal, familiar e profissional são trabalhadores mais competitivos, inovadores e produtivos.

A Agenda do Trabalho Digno foi pioneira na regulação do trabalho nas plataformas digitais. Isso também é alterado no anteprojeto do Governo. A reformulação que está proposta afina o que já tinha sido feito ou segue pelo caminho errado?
Portugal foi dos primeiros países europeus a regular o trabalho em plataformas, criando uma presunção de laboralidade. Esta proposta que está em cima da mesa vai ao arrepio daquilo que ficou seja na nossa primeira legislação feita em Portugal, seja nos próprios princípios aprovados a nível europeu. Inverte toda a lógica da presunção de laboralidade e consagra, ao contrário, uma presunção de não-laboralidade. Perverte toda a lógica da proteção de um trabalhador de uma plataforma.
Mas, como está, entendo que a norma merecia ser afinada de alguma forma, até porque os tribunais não têm tido consenso entre si?
Tem havido várias decisões judiciais e há sentenças em sentido diverso. Dito isto, sempre dissemos isso que achávamos que devíamos ter um período de implementação da legislação, até para teste e para perceber se a devíamos afinar. Acho que sim, que devia ser afinada, até para esclarecer algumas das situações.
Mas não desta forma?
Não indo exatamente ao contrário de todo o princípio.
Este anteprojeto está na Concertação Social, e depois seguirá para o Parlamento. O PS já deixou duras críticas ao anteprojeto. Não receia que isto seja, de alguma forma, empurrar o Governo para uma negociação com o Chega?
Não há empurrão nenhum. O motor deste retrocesso civilizacional foi mesmo do Governo. Sem dados objetivos, sem haver um racional que o justifique, o Governo decidiu colocar em cima da mesa esta proposta que representa um retrocesso civilizacional. Diria mesmo que é um voltar ao século XIX, do ponto de vista do direito de trabalho, sem se perceber o porquê. A minha pergunta é: porquê? Esta contrarreforma feita pelo Governo é para servir quem? E por que razão aparece neste momento? A responsabilidade por termos, neste momento, uma agenda anti-trabalhadores, que promove a precariedade e anti-parentalidade é da exclusiva responsabilidade de um Governo que apresentou esta proposta sem diálogo com ninguém, de uma forma marcadamente ideológica, baseada em perceções que acho que ninguém na sociedade compreende.
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