Filipe Santos Costa assina a newsletter "Novo normal", e esta semana analisa a app de rastreio anti-covid, os resultados já conhecidos nos países que as utilizam e o ponto de situação em Portugal.
A app portuguesa de rastreio de contactos e alerta de infeções Covid-19 estará disponível nos próximos dias, talvez até ao final deste mês. A aplicação portuguesa para smartphones, StayAway COVID, foi desenvolvida pelo INESC TEC (Instituto de Engenharia de Sistemas e Computadores, Tecnologia e Ciência, ligado às universidades do Porto e Minho), a partir do sistema disponibilizado pela Apple e pela Google. A app permite alertar os utilizadores quando estes tenham estado perto de pessoas infetadas, para que tomem medidas de confinamento ou façam um teste.
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O trabalho do INESCT TEC, no essencial, está feito, conforme o ministro da Ciência e Ensino Superior já havia adiantado nesta entrevista que lhe fiz, e a análise da Comissão Nacional de Proteção de Dados também está feita, sem objeções, soube-se esta semana. Agora, a ativação do sistema depende da luz verde da Apple e da Google, que disponibilizam a app nas suas plataformas. O entendimento inédito dos dois gigantes para avançar com esta tecnologia é, só por si, um acontecimento – como o cuidado com que a disponibilizaram, apenas a um operador por cada país, com aval das respetivas autoridades de saúde.
Estas aplicações de rastreio eletrónico de contactos (a expressão inglesa contact tracing acabou por se banalizar) são uma das armas potencialmente mais eficazes para quebrar as cadeias de transmissão do vírus. Enquanto não existe vacina nem cura (a OMS disse esta semana que a vacina pode estar disponível daqui a um ano ou menos), a interrupção das cadeias de transmissão é a forma de contrariar a progressão da Covid-19.
Num momento crítico para a evolução da doença a nível global, quando as novas infeções batem recordes e vários países que iniciaram o desconfinamento assistem a novos surtos, como está a acontecer em Portugal, o rastreio eletrónico, avisando precocemente potenciais infetados, pode ser decisivo. Esta semana a OMS lançou alertas reforçados, tanto em relação ao crescimento de casos no planeta, como em particular na Europa, onde houve um “ressurgimento muito significativo”. Com mais de 20 mil novos casos por dia, o Velho Continente volta a preocupar, com onze países sinalizados pela OMS como tendo uma situação “aguda” (a organização não os nomeou).
Este era o panorama na Europa ontem (sim, lá estão as manchas escuras na região de Lisboa…):
Apesar de tudo, a situação europeia não está nem perto do que se vê nalguns países da América Latina (o Brasil bateu novo recorde diário ontem, 46.870 novos casos) e nos Estados Unidos (também com novo recorde ontem, com 40.870 casos, e só a Florida notificou 8.900 novas infeções; os EUA deverão atingir as 200 mil vítimas em setembro).
Este era o mapa-mundo da Covid atualizado ontem:
O que se passa na região de Lisboa está longe de ser caso isolado. Pelo contrário. Espanha, que ainda agora saiu do estado de emergência, já ameaça repor restrições. O Reino Unido continua a desconfinar e já pensa em voltar a restringir. A França idem – os casos subiram 12% na última semana. Na Alemanha, subiram 37%. Duas regiões alemãs voltaram ao lockdown, e a situação em Berlim é inquietante – tanto mais que a capital estava a safar-se bem. Os contágios em Berlim estão disseminados pela cidade, aparentemente relacionados com festas ilegais de jovens, manifestações anti-racismo e contra-manifestações, e surtos em comunidades imigrantes (Soa familiar? Pois…)
O rastreio das cadeias de transmissão, para tentar atalhar a progressão das infeções, tem sido feito pelas autoridades de saúde desde o início da epidemia, mas de forma tradicional: falando com os infetados, para reconstituir os seus passos e saber onde estiveram e com quem. Este método, para além de lento, é falível, pois depende da memória dos visados. E, com o aumento do número de casos, tornou-se insuficiente. Mas é, por enquanto, o melhor método que existe, e é bom que os governos não o descurem. Na Alemanha, o objetivo das autoridades é ter um rastreador por cada quatro mil habitantes; na Amadora, até 15 de junho a proporção era de um rastreador para 36 mil habitantes, diz o Expresso deste sábado. Um pormenor inquietante: segundo o mesmo jornal, a DGS não revela quantos profissionais estão dedicados ao trabalho de rastreio de contactos no país. Mas essa missão está a falhar, como pode ler abaixo.
Numa doença com um período de incubação longo, e muitas vezes assintomática, o fator tempo é determinante. As apps de contact tracing permitem ter de imediato o histórico de quem esteve perto de quem. O problema é que estas apps… levantam demasiados problemas.
App portuguesa envolve médico e código anónimo
O princípio destas apps é simples: o telemóvel regista por tecnologia bluetooth os outros telemóveis que estiveram por perto. Não há georeferenciação – ou seja, não é identificado o lugar onde acontece o “encontro”, apenas que essa proximidade aconteceu. Como explica o Flávio Nunes neste texto cuja leitura recomendo, a aplicação vai gerando códigos aleatórios a nível local e emite-os para os dispositivos próximos, ao mesmo tempo que recolhe os códigos gerados pelos outros utilizadores nas proximidades.
Um desenho ajuda.
Os sistemas podem ser centralizados ou descentralizados. Alguns países optaram por modelos centralizados – a informação recolhida pela app fica guardada num servidor central, das autoridades de saúde, que cruza todos os dados de todos os dispositivos; outros, como Portugal, optaram pela descentralização – a informação de cada aparelho fica só nesse aparelho. O sistema criado pela Google e a Apple só admite o modelo descentralizado.
Como evitar que alguém decida assustar os amigos, ou tente boicotar o sistema, lançando falsos alertas? Com a intervenção de um médico. “Quando um doente é diagnosticado com Covid-19, os médicos podem aceder a um backoffice onde introduzem apenas a data possível do contágio. Não é pedido qualquer dado pessoal do doente. A plataforma gera um código de 12 dígitos que é dado ao paciente e este, querendo, pode introduzi-lo na aplicação”.
Note-se: a adesão à app é voluntária, assim como é individual a decisão de cada um se marcar na aplicação como estando positivo. Só depois disso é que o telemóvel envia para uma base de dados a lista com os códigos de bluetooth que o aparelho gravou nos últimos 14 dias – e, a partir daí, o alerta é partilhado com esses números.
É preciso que 60% da população adira? Não
O sistema funciona nos dois sentidos: quem descarrega a aplicação pode avisar os outros caso fique doente, e pode ser avisado de que esteve perto de alguém que testou positivo. Problema: isto só funciona entre quem tenha a aplicação, ou seja, a eficácia deste método depende de quantas pessoas adiram.
A maioria dos governos e entidades de saúde pública aponta para um nível ideal de utilização da app impensável nos dias que correm – 60% é o valor mágico, fixado a partir de um estudo da Universidade de Oxford. Esse trabalho, divulgado a meio de abril, concluía que “podemos parar a epidemia se cerca de 60% da população usar uma app”.
A adesão à app é voluntária, assim como é individual a decisão de cada um se marcar na aplicação como estando positivo. Só depois disso é que o telemóvel envia para uma base de dados a lista com os códigos de bluetooth que o aparelho gravou nos últimos 14 dias – e, a partir daí, o alerta é partilhado com esses números
Essas eram as letras gordas, e ofuscaram o resto da frase: “Mesmo com números mais baixos de utilizadores da app, estimamos uma redução no número de infeções e mortes por coronavirus”. Os 60% ficaram como referência, embora seja evidente que a app é eficaz com taxas mais baixas. Neste texto da Technology Review do MIT, fica claro que as apps têm um “efeito de proteção”, e evitam mortes e infeções, mesmo com “níveis muito mais baixos” de utilizadores.
Num cenário ideal, se 80% dos utilizadores de smartphones descarregarem a app (o que equivale a cerca de 56% da população), isso será suficiente para travar a epidemia. Por essa razão, países como a Turquia e o Qatar tornaram o seu uso obrigatório por quem tem smartphone. Mas a Islândia é um caso de sucesso com uma taxa de penetração de 40%.
O boom na Alemanha, o fiasco em França
O caminho das apps de contact tracing na Europa tem sido, no mínimo, aos soluços. Antes de mais, pelas questões de privacidade, tendo em conta que a UE tem o regime que mais garante a sua proteção, RGPD, e a adesão dos cidadãos é voluntária. A Comissão Europeia acompanhou de perto o processo e garantiu o acordo técnico para que as apps sejam compatíveis dentro do espaço comunitário.
Alguns países desenvolveram projetos autónomos, como França e Reino Unido, que optaram por sistemas centralizados. Os britânicos, depois de perderem três meses e torrarem 12 milhões de libras, acabaram por desistir da sua iniciativa, fazendo o mesmo que a maioria dos governos europeus – alinharam com a plataforma descentralizada da Apple e da Google. Aqui pode ver a lista completa e atualizada dos países com apps já disponíveis ou quase lá – são 43, dos quais 12 da União Europeia (ainda não inclui Portugal).
Mesmo com as garantias de anonimato e proteção de dados das duas gigantes tecnológicas, alguns países não ficaram convencidos. A Noruega (com tecnologia própria) acabou por suspender a utilização da app, depois de a lançar. A adesão em Itália foi promissora, com um milhão de downloads na primeira semana, e já mais de três milhões de italianos têm a app – ainda assim, apenas cerca de 5% da população. Na Dinamarca, a taxa de adesão é semelhante, com cerca de 300 mil utilizadores, enquanto na Letónia os valores estão quase nos 5%, com 80 mil downloads.
A Alemanha é o caso de maior sucesso: a aplicação, desenvolvida pela SAP e pela Deutsche Telekom, foi lançada no dia 15 e já tem mais de 12 milhões de utilizadores (14% da população), a taxa de adesão mais alta entre os grandes países europeus. Mas ainda não há dados sobre a sua utilização efetiva.
Depois, há o caso da França, um dos primeiros países europeus a apostar seriamente na app. O StopCovid foi lançado a 2 de junho, mais ou menos quando o país começou a aligeirar as medidas restritivas. O arranque foi promissor, mas até agora menos de dois milhões de pessoas descarregaram a aplicação para os seus telemóveis (menos de 3% da população). Esta semana foi conhecido o primeiro balanço: nas três primeiras semanas, só 68 pessoas reportaram que estavam infetadas; daí resultaram apenas 14 notificações para outros utilizadores.
Pior: nos últimos dias, não só diminuiu o ritmo de downloads da app, como aumentou o número dos que a apagaram dos seus telemóveis. Sendo França, o sistema é, claro, centralizado – o facto de a informação ser concentrada num servidor do Estado levantou polémica, e pode ter alimentado a desconfiança dos utilizadores. Ao Financial Times, Olivier Blazy, professor de ciência de computação, considerou “irrisório” o número dos que descarregaram a aplicação, e “ridículos” os resultados. “Há mais gente envolvida no desenvolvimento da app do que pessoas beneficiadas por ela.” Dito assim…
É certo que cada vida salva é inestimável. Mas com estes níveis de adesão, não se salvarão muitas. Por isso, vários governos estão a planear para o outono campanhas para a utilização destas apps. É o caso do governo inglês. Mas Boris Johnson, confrontado esta semana com o fracasso da app made in UK (entre outros probleminhas, não funcionava nos Iphones… pode ler aqui essa pequena saga), fez por desvalorizar o impacto deste instrumento, dizendo que é apenas “uma cereja no topo do bolo”. A app anti-Covid tornou-se tema de luta política no Reino Unido e, encostado às cordas, Johnson argumentou que “não há um único país no mundo” que tenha “uma app de contact tracing funcional”. Não é bem assim.
Em Portugal, o Governo apoiou desde o início a iniciativa, mas esta não tem selo oficial. A título pessoal, António Costa já disse que tenciona usar a app assim que esteja disponível. O ministro Manuel Heitor disse o mesmo, e Marta Temido já reconheceu a importância que esta ferramenta pode ter na quebra das cadeias de transmissão. Já o secretário de Estado Duarte Cordeiro, que coordena o combate à COVID na região crítica de Lisboa e Vale do Tejo, disse esta semana ao Observador que a app não é um instrumento decisivo para o Governo, lembrando que as autoridades de saúde têm “ferramentas de geo-referenciação dos casos” que permitem saber, rua a rua, porta a porta, onde estão os doentes – mas uma coisa não substitui a outra.
A título pessoal, António Costa já disse que tenciona usar a app assim que esteja disponível. O ministro Manuel Heitor disse o mesmo, e Marta Temido já reconheceu a importância que esta ferramenta pode ter na quebra das cadeias de transmissão. Já o secretário de Estado Duarte Cordeiro, que coordena o combate à COVID na região crítica de Lisboa e Vale do Tejo, disse esta semana ao Observador que a app não é um instrumento decisivo para o Governo.
Não há planos para que o Governo faça uma campanha a favor da utilização do StayAway COVID, mas os portugueses parecem disponíveis para aderir a esta tecnologia.
O empurrão… e as grandes dúvidas
Para tentar reverter um arranque ainda pouco auspicioso, a Google e Apple querem dar um empurrão institucional ao contact tracing, incorporando esta funcionalidade nos seus sistemas operativos, como conteúdo nativo, e facilitando-lhe o acesso por via das atualizações tanto do IOS como do Android. Nesse momento, não será necessário descarregar uma app – mas ainda não chegámos a esse ponto. Em abril, ambas as companhias diziam-se empenhadas em que a tecnologia de contact tracing esteja disponível em todos os seus dispositivos ativos no mundo. Uma ambição e peras!
O empenho tem sido notório também na questão das garantias de privacidade e de prevenção da utilização abusiva dos dados. Neste texto, para além de uma descrição detalhada do sistema Apple/Google, também é analisada uma série de hipóteses de utilização abusiva:
Hackers podem usar este sistema para fazer uma grande lista de todas as pessoas que tiveram a doença?
- A Google, a Apple ou um hacker podem usá-lo para saber onde eu estive?
- Alguém pode usar este sistema para saber com quem é que eu estive?
- Isto será só mais um sistema de vigilância disfarçado?
Se for um tech geek, a leitura será ainda mais fascinante. Mas se não se quer meter nisso, digo-lhe que a quarta pergunta não tem uma resposta simples, e resumo a resposta às três primeiras: é improvável, é muito difícil, mas não é impossível. Porém, “os esquemas [necessários para o fazer] são em geral tão elaborados, que é difícil conceber que mesmo um Estado-Nação o faça; mas é algo a que importa estar atento”, diz o autor deste outro texto da The Verge. Ficou com a sensação de que esta frase remete, em letras pequenas, para Rússia, China e até EUA? Eu também.
Uma das questões mais complicadas nesta fase tem a ver com a precisão da tecnologia bluetooth para medir distâncias. A 1 metro ou menos pode haver contágio, a 5 ou 6 metros, não. Usar o bluetooth dos smartphones para detetar contactos físicos é uma novidade, e a tecnologia não foi concebida para um nível tão refinado de medição de distâncias. Por outro lado, vários fatores podem interferir na exatidão, desde a orientação dos aparelhos uns em relação aos outros, até o pormenor de estarem no bolso das calças ou dentro de uma mala ou mochila. Se a fiabilidade da tecnologia for baixa, a confiança no sistema também será. Este ainda é um work in progress.
O espetacular caso de contact tracing sem app
Deixei para o fim o caso da Coreia do Sul, que foi declarado como um sucesso no combate à primeira vaga de Covid-19. Depois da China, a Coreia do Sul foi um dos países mais atingidos no início da epidemia (ainda não era pandemia). No final de fevereiro, estava quase nas mil novas infeções diárias, mas foi capaz de achatar a curva, e há dois meses era considerada um caso exemplar. Como? Com uma política super-agressiva de quarentena e testagem – foi dos primeiros países a testar assintomáticos -, e também de contact tracing. Mas, neste caso, sem app.
Não, não havia milhares de funcionários ao telefone a tentar reconstituir com os pacientes os seus passos e contactos antes e depois da infeção – o governo de Seul optou por utilizar todo o arsenal de rasto eletrónico dos seus cidadãos, sem perder tempo com questões de privacidade ou abuso do Estado. Ser o país mais conectado do mundo ajudou. Uma forte cultura de obediência também.
As autoridades sul-coreanas reconstituíam ao minuto o dia-a-dia de milhões de cidadãos, utilizando:
- A informação de GPS dos telemóveis;
- Os dados de cartão de crédito e pagamentos eletrónicos em lojas e outros locais de consumo (os pagamentos eletrónicos são a regra no país);
- O rasto de utilização de transportes públicos (também com cartões eletrónicos);
- A cobertura quase total, na via pública, nos transportes públicos, em lojas, restaurantes e locais de trabalho, de câmaras de videovigilância.
Um cidadão infetado via a sua vida vasculhada, para que pudessem ser contactados todos os que se tinham cruzado com ele; e tinha ordem de rigoroso confinamento. Em Singapura, o método adotado foi semelhante. Eis um exemplo no nível de informação reunida para um sul-coreano identificado com o número de processo nº10932:
Assustador? Sim. Resultou? Sim. A primeira vaga foi declarada controlada em abril, com dias seguidos sem novas infeções. O país reabriu. Em maio houve um fim-de-semana prolongado de festividades nacionais. E os novos casos voltaram.
Esta semana, as autoridades de Seul admitiram que o país está a enfrentar a segunda onda da Covid-19. Algumas restrições voltaram a ser impostas. Para combater a nova vaga, é provável que a app de contact tracing já seja utilizada pelos sul-coreanos. Não em alternativa, mas em acumulação com o rastreio dos cartões de pagamento, mais o GPS dos telemóveis, mais as câmaras de video-vigilância…
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