Mecanismo existe já no Brasil, EUA e Reino Unido. Mas juristas são contra "a traição" como meio de prova. Cá já existe a possibilidade de redução de pena mas ministra quer alargar a aplicação.
Brasil, Estados Unidos e Reino Unido. Os três países ‘pioneiros’ que trouxeram para a prática jurídica o mecanismo da delação ou colaboração premiada. E o que é, afinal esse mecanismo, trazido à discussão pública pela ministra da Justiça, Francisca Van Dunem, ao anunciar uma mega plano nacional de combate à corrupção? Possibilidade prevista no processo penal em que alguém que esteja envolvido numa investigação criminal ou que seja pelo menos cúmplice de um crime, ajudando as autoridades judiciárias, possa vir a ter uma redução de pena. Ou mesmo uma não condenação. A ideia é contrariar as condenações irrisórias pelo crime de corrupção, devido à dificuldade da prova. O ECO/Advocatus decidiu perguntar a quem poderá ter de defender os futuros alegados corruptos e a resposta foi unânime: os advogados não concordam com a delação premiada. Mas vamos por partes.
O que é a colaboração premiada?
É um mecanismo jurídico que permite a alguém que esteja envolvido numa investigação criminal ou que seja pelo menos cúmplice de um crime que, ajudando as autoridades judiciárias, possa vir a ter uma redução de pena. Ainda que não tenha este nome, nem as benesses de um regime de colaboração/arrependimento, a lei portuguesa já prevê algumas situações para os chamados arrependidos ou para quem queira colaborar com a justiça. No Brasil, por exemplo, além do testemunho, o “colaborador” tem que apresentar provas do que alega.
Na semana passada, o Ministério da Justiça anunciou que quer avançar com várias medidas para definir uma “estratégia nacional” de combate à corrupção. Na lista destacam-se a separação de megaprocessos, a escolha de juízos especializados em corrupção e a afamada colaboração premiada.
O que é que já está previsto na lei portuguesa?
Na alteração de 2017 à chamada lei da corrupção no fenómeno desportivo, a Assembleia da República aprovou um regime próximo à delação premiada, ao ficar consagrado que as penas podem ser atenuadas “se o agente auxiliar concretamente na recolha das provas decisiva para a identificação ou a captura de outros responsáveis”.
Esta figura está igualmente prevista no Código Penal para o crime de corrupção ativa, prevendo-se também uma “pena especialmente atenuada” ao agente do crime que “até ao encerramento da audiência de julgamento em primeira instância, auxiliar concretamente na obtenção ou produção das provas decisivas para a identificação ou a captura de outros responsáveis”. Também no regime das contraordenacional da Autoridade da Concorrência está previsto um “regime de clemência”.
Ainda enquanto procuradora distrital de Lisboa, cargo que ocupou antes de entrar no Executivo de António Costa, Francisca Van Dunen mostrava-se mais favorável à introdução no sistema português da negociação da pena, algo que aliás tentou implementar, mas que o Supremo Tribunal de Justiça, em 2013, acabou por anular.
A lei atual já prevê a possibilidade de redução ou mesmo de isenção de penas, em casos relacionados com corrupção, troca de influências ou peculato.
Contudo, tal como está concebida, torna-se difícil de aplicar, uma vez que impõe um prazo de 30 dias entre a prática do crime de corrupção e o momento em que a denúncia é feita. Assim, a forma de introduzir uma melhoria passa por retirar da lei a existência desse prazo para a denúncia.
O que quer o Governo alterar?
Medidas “meramente cirúrgicas”, diz a ministra Francisca Van Dunem. O que passa por retirar da lei a existência desse prazo para a denúncia. O que, na prática, fará uma diferença monumental, já que o prazo de 30 dias era pouco, num país em que, em média, uma acusação destas demora quase um ano. Mas há ainda outros entraves, como o facto de a lei não dar as devidas garantias a quem opte por denunciar o crime. Nas mudanças que deverão ser feitas, será mantida a possibilidade de o juiz reduzir a pena ao denunciante. Assim, serão dadas garantias ao denunciante, isto sem que seja posto em causa, nem sacrificado, o princípio da presunção de inocência.
A juntar à já existente possibilidade de os arguidos beneficiarem da suspensão provisória do processo, através da aplicação de uma injunção para o pagamento do que é devido ao Estado, poderá ainda ser possível criar um acordo negociado de sentença, isto é, o arguido admite o crime e a culpa, dispõe-se a devolver o produto conseguido através do crime económico e, em contrapartida, o juiz propõe uma pena efetiva reduzida.
Onde e em que moldes existe a colaboração premiada?
Brasil, Estados Unidos, Reino Unido, Itália e Espanha. Sendo o do Brasil o mais acentuado. Tanto que na investigação do processo Lava Jato — que juntou a jurisdição brasileira e portuguesa — muita da informação conseguida na investigação foi através do recurso a este mecanismo do delator/cúmplice de um crime.
No pais de Bolsonaro, esta colaboração pode ser pré-processual, processual e pós-processual e o acordo é celebrado por escrito e assinado por todas as partes envolvidas. O colaborador tem de ser voluntário, tem de ser o primeiro a denunciar e não pode ser o líder da organização criminosa. Qualquer infração penal pode ser alvo de colaboração premiada, desde que se trate de uma infração penal grave. Regra geral, aplica-se em casos de crimes mais graves, como tráfico de droga e terrorismo.
No Reino Unido, a tónica é que este instrumento jurídico serve como instrumento de primeira linha de política criminal, “tanto na vertente preventiva, como na vertente repressiva”.
Em Inglaterra, a delação premiada começou por usar-se entre privados, tendo havido mais tarde a necessidade de intervenção nos “tribunais públicos”.
Já os Estados Unidos aplicam este mecanismo desde os anos 70, apesar de uma forma menos rígida do que a inglesa, e 90% das condenações são conseguidas pelo uso desta delação premiada.
O que dizem os advogados sobre este mecanismo legal?
Francisco Proença de Carvalho, sócio da Uría Menendez – Proença de Carvalho :
“Num Estado de direito democrático os fins não podem justificar os meios. Se, em teoria, a ideia de aumentar a eficácia da justiça penal através deste meio pode parecer boa, temos que nos preocupar mais com a prática. E a prática a que assistimos em alguns países tem demonstrado que a chamada delação premiada é demasiado permeável a abusos e a violações dos direitos fundamentais dos cidadãos, incentivando o populismo judiciário. É altamente questionável a espontaneidade de várias delações que muitas vezes parecem ser obtidas mediante mecanismos de verdadeira tortura psicológica.
Portanto, entendo que a delação premiada traria mais perigos para a saúde do nosso sistema penal do que benefícios. Sem prejuízo disso, sou favorável a que exista um aprofundamento de mecanismos de ‘justiça penal negociada’. Não vejo motivo para se impedir um arguido de resolver a sua própria situação mesmo sem denunciar outras pessoas. Trata-se, por exemplo, de permitir e incentivar a composição por acordo entre vítima e arguido nos casos em que não exista outro interesse público relevante. Há muitos processos que se poderiam resolver por acordo antes da fase de julgamento (obviamente homologado por juízes), libertando recursos do sistema.”
João Medeiros, sócio da VdA:
“Se com esta expressão se pretende significar o desenvolvimento de formas de justiça negociada em sede penal sob supervisão judicial, sou favorável. Acho positivo dotar o aparelho judiciário de meios mais flexíveis que permitam resolver muita da criminalidade sem que a mesma vá parar aos tribunais. Da forma como vejo as coisas, o fundamento e o limite da colaboração premial deve ser, por um lado, o arrependimento do arguido; por outro lado, o prémio por o arguido facilitar a investigação e poupar meios ao Estado.
Já me custa, enquanto jurista mas acima de tudo como ser humano, esta ideia da colaboração orientada à delação, esta institucionalização da traição como meio de obtenção de prova. É um retrocesso civilizacional. Compreendo, naturalmente, as preocupações e a argumentação daqueles que colocam o acento tónico na eficácia da investigação criminal e na dificuldade probatória de certos tipo de crimes. Mas isto pode levar-nos longe demais e os escândalos no Brasil assim o demonstram! Em abstrato — e estou naturalmente a usar um argumento não sério e pelo exagero –– nada como a tortura para assegurar uma maior eficácia da investigação criminal”.
Paulo de Sá e Cunha, sócio da Cuatrecasas:
“Sou contra a consagração, no nosso processo penal, de um regime de ‘delação premiada’ de contornos semelhantes aos que vigoram, por exemplo, no direito brasileiro. Isto não significa que não seja favorável à introdução, nos quadros do direito penal e processual penal vigentes, de mecanismos de direito premial (isenção ou dispensa de pena, atenuação especial e suspensão provisória do processo, entre outros) destinados a favorecer a colaboração processual de arguidos. As alterações a introduzir deverão — a meu ver — restringir-se a determinadas categorias de crimes (como, p. ex., os de terrorismo, tráfico de estupefacientes, de corrupção e de tráfico de influência) e ter o alcance de uma intervenção mínima (a que se referia a Ministra da Justiça a propósito das anunciadas novas medidas de combate à corrupção).
Os defensores da ‘delação premiada’ socorrem-se de argumentos de ordem pragmática, apontando-lhe vantagens para as investigações criminais que levam a uma maior eficácia da ação penal, em especial no domínio da criminalidade complexa e altamente organizada, como é o caso da corrupção.
O argumento é sugestivo, mas também é falacioso. Os passos que têm sido dados nos últimos anos, no sentido da transparência dos circuitos financeiros, do combate a estruturas opacas de titularidade de ativos e, sobretudo, o recurso a meios intrusivos de obtenção de prova, têm vindo a relativizar (ainda mais) a prova por declarações incriminatórias de co-arguido, que é aquilo em que se traduz a colaboração premiada.
Mas a maior objeção que encontro é natureza ético-jurídica. Não consigo afastar a ideia de que subjacente à ‘delação premiada’ está um mercadejar com o sistema de justiça, que é tão censurável como a própria corrupção, que os defensores deste instituto tanto proclamam querer combater. Na verdade, o corrupto que mercadejou com o cargo ou o corruptor que o subornou, uma vez apanhados nas teias da justiça, passam a poder ‘negociar’ benesses criminais a troco da entrega de uns quantos comparsas, num círculo que poderá nada ter de virtuoso”.
Paulo Saragoça da Matta, sócio da Saragoça da Matta & Silveiro de Barros:
“Cabe desmistificar totalmente o argumento de que o plea bargain dos sistemas anglo-saxónicos equivalem, nesse sistema, quer ao instituto da confissão, quer ao instituto da delação premiada. Tal afirmação não corresponde à verdade, nem nunca correspondeu. Bem ao invés, a jurisprudência norte-americana tem sido constante, ao longo dos anos, no sentido de que a aceitação de um plea bargain não implica qualquer confissão de culpa: bem ao invés, é perfeitamente compatível com a manutenção da afirmação da inocência. Isso, e apenas isso, é o suficiente e o bastante para aquilatar da insustentabilidade dogmática e constitucional do regime vigente no Brasil mesmo num quadro normativo como o dos EUA, bem como da total incongruência de utilizar tal instituto do common law para defender a introdução da delação premiada em sistemas de matriz de civil law, e muito menos para interpretar o já existente instituto da confissão em processo penal português.
E se do que se fala é de delação premiada (e não de premiar colaborações), terá de dizer-se que é um instrumento que em caso algum poderá ser introduzido no sistema processual penal português tal como conhecido ultramar, sob pena de produzir um terremoto de proporções inimagináveis nos princípios e institutos cardeais do sistema. E tudo para tentar atingir uma miragem de descoberta da verdade material, que corresponderá seguramente e na esmagadora maioria dos casos, por força da natureza da própria psique humana, a uma simples ilusão ótica que não saciará a sede da comunidade pela verdade”.
Rui Patrício, sócio da Morais Leitão:
“Depende do que se entende por delação premiada. Se é uma solução à brasileira ou similar, contratualizada e com as demais ou principais características legais e sobretudo práticas do que sucede no Brasil, a minha posição pessoal é de rejeição, e bem podíamos aprender alguma coisa com o que vem acontecendo nesse país, entre outros exemplos históricos ou comparados, e com as dúvidas e problemas que se vão ali reconhecendo.
Se se trata de ponderar e aprofundar mais as implicações no processo (que já temos algumas), nomeadamente na pena, da colaboração do arguido e contribuição para a descoberta da verdade processual, aperfeiçoando e clarificando o regime geral ou mesmo estendendo porventura regimes particulares, nada contra.
Desde que sem precipitações, sem modismos fáceis e populares, e sem tentações de colocar em causa princípios essenciais do processo penal, que são também princípios constitucionais e de civilização”.
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Colaboração premiada é um caminho legítimo? Advogados dizem que não
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