Nesta análise, são vários os estudos que dizem existir uma ligação entre a perda dos serviços da natureza - purificação da água pelas árvores, polinização das abelhas - e as doenças infecciosas.
“Nunca pensei ver isto a acontecer”. “Parece um filme de ficção científica” “Tenho medo”. Estas são algumas das frases que todos nós ouvimos ou dizemos. Mas será que não temos ignorado os sinais?
Existem registos sobre o Produto Interno Bruto (PIB) mundial desde o ano 1000, sendo possível constatar que daí até 1870 o PIB foi essencialmente constante, aumentando um pouco em 1913. No entanto, este padrão mudou totalmente a partir de 1950, tendo existido um aumento do PIB mundial de 1069% entre 1950 e 2015. Este crescimento, num gráfico, apresenta-se como que uma reta a subir. Quem analisa dados sabe que, quando se vê um gráfico com uma subida exponencial, algo de estranho se passou. Ou há um erro ou consequências irão surgir.
Como se tratava do crescimento do PIB, que era, e é, considerado algo de bom para a sociedade, esta subida exponencial não foi devidamente analisada nos impactes que iria ter anos mais tarde. Um século mais tarde. Agora! Chegámos à época em que os impactes do crescimento exponencial se estão a sentir. E porquê? Porque não foi um crescimento equitativo e sustentável. Foi um crescimento desigual, onde as pessoas passaram a ser vistas como meros instrumentos para produzir algo, semelhante aos animais cultivados dentro de um galinheiro.
Os open spaces são um exemplo desta mentalidade instrumental do ser humano que quer maximizar o lucro a todo o custo: usar menos espaço, ter mais pessoas numa mesma área a produzir para se vender mais. Tipo galinheiro. Ora, nem o ser humano nem as galinhas e galos gostam de estar em cima uns dos outros. Tira-nos a privacidade, a identidade e agora constatámos que nos tira a saúde. Depois do Covid 19, os open spaces deverão ser repensados… até porque nunca deveriam ter existido!
Este crescimento exponencial do PIB mundial teve obviamente impactes positivos no mundo. Portugal é um exemplo vivo dessa mudança positiva. Mas o mundo não é como Portugal ou a Europa. O mundo é muito mais duro, primitivo, pobre, desigual e desumano. Tenho visto coisas que não deveriam ser possíveis num mundo onde o PIB mundial cresceu exponencialmente. E apesar dessas situações de pobreza, sujidade, desigualdade não serem na Europa, com a globalização e com a alteração do clima, tudo nos vai chegando também.
A pobreza de África, as más condições de trabalho na China, a forma como a natureza é usada e abusada pelos vários países longínquos da Europa, é também algo que nos está a impactar. E o que “dá o nó no pensamento” é que essa pobreza, más condições de trabalho e ataque à natureza se dá porque nós, os ocidentais, compramos que nem uns malucos! Sem nos preocuparmos com o que teve de acontecer no mundo para que nós pudéssemos comprar umas calças de ganga por 20 euros.
Não acham que, para umas calças de ganga custarem 20 euros, muita coisa errada teve de acontecer no mundo? A água consumida. Os efluentes. O algodão utilizado. O terreno usado. O transporte feito. As emissões de CO2. O preço justo do salário de quem esteve a trabalhar na plantação e de quem fez as calças… Aumentar a nossa consciência sobre o nosso papel nisto tudo é duro, desconfortável, mas fundamental.
Vejamos bem o mundo que temos hoje: entre 1820 e 2008 o gap entre os mais pobres e os mais ricos alargou consideravelmente, sendo o PIB per capita dos países mais ricos, em 2008, dezassete vezes superior ao dos países mais pobres1. Segundo um estudo da Oxfam2, hoje, oito homens no mundo têm tanta riqueza financeira como metade da população mais pobre a nível mundial; desde 2005 os 1% mais ricos têm acumulado mais riqueza que o resto do planeta; e desde 1988 até 2011 o rendimento dos 10% mais pobres aumentou menos de 3 dólares por ano, enquanto que o rendimento dos 1% mais ricos aumentaram 182 vezes. Hoje quase metade da população mundial vive ainda com menos de 5,5 dólares por dia 3. É este o mundo que temos!
Neste mundo a população cresce, a disparidade social, o número de pobres aumenta e o acesso à energia nos países em desenvolvimento pode, na maioria dos casos, apenas atingir os 10% ou 30% da população4. O acesso a energia limpa é ainda muito menor nestes países. Ainda se abatem muitas árvores para se poder queimar a madeira para cozinhar ou aquecer em algumas partes da Ásia. Usualmente também não há um sistema de recolha de resíduos urbanos, e estas cidades e aldeias estão cheias de lixo, cheias de plástico e o mau cheiro das águas que por ali aparecem, pretas e oleosas, lembram-nos que o saneamento básico também ainda não existe.
Tudo isto implica que vários ecossistemas naturais estão em desequilíbrio. Não é só o ser humano que está em desequilíbrio, conseguiu também colocar os ecossistemas da Natureza em desequilíbrio. Mas enquanto nós, humanos ocidentais, podemos fazer psicoterapia, a Natureza não alinha nesta abordagem e defende-se da maneira que sabe: eliminando a ameaça!
Em simultâneo, vários são os estudos que dizem existir uma ligação entre a perda dos serviços que a natureza nos dá – como a purificação da água pelas árvores, a polinização das abelhas que faz com que exista comida, e muitos outros – e as doenças infecciosas.
Já em 2005 a publicação “Millennium Ecosystem Assessment”, era explícita quanto ao facto de muitas doenças infecciosas poderem provir de mudanças decorrentes nos ecossistemas naturais. Lê-se que “a magnitude e a direção da incidência de doenças devido a mudanças nos ecossistemas dependem dos ecossistemas específicos, do tipo de mudança no uso da terra, da dinâmica de transmissão específica da doença e da suscetibilidade das populações humanas”.
A publicação reconhece também que “existem trade-offs inerentes a muitos tipos de mudanças no ecossistema associadas ao desenvolvimento económico, onde os custos do surgimento ou ressurgimento da doença devem ser ponderados em relação aos benefícios de saúde e bem-estar de um projeto. Esses trade-offs existem particularmente em projetos ligados à produção de alimentos, energia e rendimentos económicos. Uma vez que muitos destes riscos são hoje já compreendidos, é possível realizar uma prevenção ou redução de riscos através de planos de gestão ambiental estratégica ou medidas de proteção individual e em grupo.” Ou seja, podemos evitar tudo isto, se quisermos.
Recentemente as Nações Unidas também publicaram um texto em que reconhecem a crescente ideia de que habitats degradados podem incentivar processos evolutivos mais rápidos e diversificação de doenças, à medida que os agentes patogénicos se espalham facilmente para o gado e os seres humanos. Mais um motivo para comermos menos carne.
Um outro artigo recentemente publicado no The New York Times, também explica muito bem esta ligação entre natureza e doenças. Vale a pena ler.
Não me parece existir dúvidas de que o Covid-19 é a evidencia de que a Natureza está em desequilíbrio provocado pelos humanos. Os temas ambientais devem assim ser integrados em toda a gestão empresarial e pública. Se não protegermos os nossos ecossistemas, iremos sofrer com isso: doenças, mortes, menos vendas, mais despesa pública. Os mercados financeiros são os primeiros a colapsar quando a coisa corre mal, e os primeiros a especular e a ignorar “a cor do dinheiro” quando a coisa corre bem.
Devido ao crescimento exponencial do PIB mundial, que levou ao consumo exacerbado de recursos naturais (terra, pescado, minerais, etc.), à degradação dos serviços dos ecossistemas e ao aumento de gases com efeitos de estufa, se nada fizermos a temperatura média do planeta pode aumentar 4,8 graus Celsius até 2100.
O Acordo de Paris que aposta na neutralidade carbónica dos países, conseguirá, no seu melhor, que a temperatura não aumente mais do que 1,5 grau Celsius. Sendo que, até agora, já aumentámos 1 grau. Ou seja, para que os ecossistemas não fiquem “com uma loucura tal” que não conseguimos antecipar, o mundo tem de se unir e fazer com que a temperatura mundial não aumente mais 0,5 graus até ao final deste século. Se aumentar mais, a destruição dos ecossistemas será maior… e como tal também mais doenças infecciosas poderão surgir pelo mundo inteiro.
Seremos capazes de atingir a neutralidade carbónica em 2050, como Portugal e a Comissão Europeia ambicionam? Será possível o mundo todo, parar, mudar, para que consigamos manter a vida no planeta neste século? O Covid-19 vem dizer-nos que sim. Quando o ser humano quer, consegue ultrapassar tudo, e unir-se em prol de um fim comum. Chegou a hora de pensar que é possível mudar o sistema económico que temos, e colocar a natureza como peça central da proteção das pessoas e dos países.
É a resposta da Natureza: cuidem de mim, que cuidarei de todos vós.
1 Weil, D.N. (2013) Economic Growth. 3rd edition. Harlow Pearson Education Limited.
2 Oxfam (2017). An economy for the 99%
3 Piecing Together the Poverty Puzzle 2018, Banco Mundial.
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Covid-19, biodiversidade e clima. É a resposta da Natureza: cuidem de mim
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