O ensaio "Delação premiada: Acabar com um tabu e ganhar uma ferramenta de combate à corrupção" foi distinguido no 1º lugar na iniciativa "Campus da Liberdade", do instituto +Liberdade.
Delação premiada e eutanásia, o que têm em comum? A delação premiada traduz-se na contrapartida de uma substituição ou redução de pena para um arguido, como consequência da colaboração com as autoridades responsáveis pela investigação. Ambos são desafios morais que a sociedade Portuguesa tem até hoje tratado de forma semelhante. Temos coexistido com as diferentes convicções de cada Português, não aprofundando o debate público e permitindo que a resolução de cada caso concreto seja decidida ad-hoc, tendo por base decisões arbitrárias ao invés do espírito criterioso da lei.
A importância de legislar a delação premiada deve-se fundamentalmente a dois fatores. O primeiro é a necessidade de assegurar um princípio de igualdade de todos os cidadãos perante a lei, no âmbito de um Estado de Direito, que tem como dever ser objetivo na definição dos direitos e deveres de cada indivíduo. O segundo a sua importância como mecanismo de luta à corrupção, combatendo o seu principal ativo – o silêncio.
Verificando-se episódios de pseudo-clarividência governativa com a aprovação apressada de diplomas relativamente incompletos e muito vagamente discutidos, num país de “brandos costumes”, e onde quer gostemos de o admitir ou não, de índole eminentemente liberal, esta superficialidade de curto-prazo pode ser mais confortável do que a construção do diálogo e debate, tornando-se, assim, essencial insistir em aprofundar o tema no debate público.
Para sermos rigorosos, no caso português, “colaboração protegida” é o termo mais correto a utilizar, na medida em que o debate em torno da sua introdução se tem afastado da possibilidade de uma contrapartida económica ao denunciante. Ao invés, no caso do Brasil, a pessoa que colabora com a investigação terá a possibilidade de, caso o seu papel seja preponderante, receber uma retribuição monetária, para além da redução ou dispensa de pena.
Os porquês do tabu
Assumir a necessidade e urgência de legislar a “colaboração protegida”, pela sua utilidade concreta no combate à corrupção, mas essencialmente pela garantia de igualdade de tratamento perante a justiça, não implica desconsiderar os consensos necessários à sua concretização.
No decorrer do processo legislativo, será fundamental, por exemplo, definir o que se deve entender por “colaboração protegida”, e delimitá-la face a outras figuras semelhantes (tais como, delação premiada e justiça negociada), mas também tipificar qual o comportamento que o colaborador necessita de ter para ser merecedor do prémio previsto na norma legal, bem como se todas as penas e crimes podem ser alvo de “colaboração protegida”. No entanto, todos estes desafios, que só o debate público e aberto à sociedade civil pode aprofundar, não colocam em causa a necessidade e validade de legislar a “colaboração protegida” e, acima de tudo, não podem ser geradores de apatia ou aceitação de falsos consensos, ou controvérsias.
Uma das principais dificuldades do combate à corrupção é o facto de este ser um crime aparentemente sem vítimas (ou pelos menos sem vítimas diretas e individuais), na medida em que especialmente a corrupção associada ao exercício de cargos públicos, nos lesa a todos. No entanto, para julgar a corrupção continuamos com a mesma exigência de prova que existe para muitos outros tipos de crimes: a prova direta. Deste modo, é essencial ter em conta que a corrupção é uma forma de crime organizado, cujo principal ativo é o silêncio, sendo um crime que não deixa para trás um corpo ou uma arma. Por isso, o seu combate deverá impreterivelmente passar pela atuação voluntária de um arguido, dentro de um enquadramento
legal que garanta os seus direitos fundamentais.
Não podemos ser insensíveis a argumentos desfavoráveis para com a “colaboração protegida”. Dependendo da forma como for legislada, terá menores ou maiores impactos negativos e será concerteza necessário gerir essas externalidades negativas. No entanto, do ponto de vista agregado, e se consideramos efetivamente o silêncio como maior ativo dos agentes corruptos, é legítimo assumir que sem a “colaboração protegida” a maior parte destes crimes passa despercebida à sociedade, e é invisível aos olhos de todos, apesar de prejudicar a generalidade da população. Assim, importa perguntarmo-nos se se perde “justiça” ao perdoarmos total ou parcialmente alguém que levou à deteção e/ou condenação de um crime de outra forma invisível?
Uma das principais dificuldades do combate à corrupção é o facto de este ser um crime aparentemente sem vítimas (ou pelos menos sem vítimas diretas e individuais), na medida em que especialmente a corrupção associada ao exercício de cargos públicos, nos lesa a todos. No entanto, para julgar a corrupção continuamos com a mesma exigência de prova que existe para muitos outros tipos de crimes: a prova direta.
Do ponto de vista moral, importa também questionarmo-nos se será aceitável o Estado perdoar total ou parcialmente alguém pelos seus crimes. Mas não fazendo esta reflexão de forma isolada e excluindo uma questão subjacente fundamental: está o Estado a falhar na sua função judicial ao não conseguir identificar e penalizar os agentes corruptos de forma célere e eficaz? É, ou não, esse o pecado moral superior com impactos corrosivos na confiança da população nas
instituições.
A problemática da “colaboração protegida” não deixa de nos trazer duas questões no mínimo curiosas. Por um lado, a afirmação do sistema judicial como meio de penalização e (maioritariamente) reabilitação do indivíduo, mas a nossa aparente indisponibilidade coletiva para que o início dessa reabilitação passe pelo apoio ao Estado na deteção destes crimes. Por outro lado, a nossa aparente maior abertura coletiva em relação ao conceito de clemência para com empresas do que para com pessoas. Evidência disso mesmo tem sido a prática da Autoridade da Concorrência que procura atenuar condenações e multas mediante colaboração.
Faria Costa, antigo provedor de Justiça, afirmou em 2019 em declarações à Rádio Renascença que a delação premiada “não é mais do que uma forma de corrupção ética”. No decorrer desta entrevista, o mesmo não quis pronunciar-se sobre casos em concreto, mas quando questionado acerca do caso do hacker Rui Pinto referiu que esse instrumento não pode ser aceite numa “sociedade democrática verdadeiramente viva, real e interventiva”.
Enquanto declarações como esta passam relativamente despercebidas em Portugal, procuradores da Bélgica, França, Holanda e também do Eurojust, esperam a colaboração de Rui Pinto, na qualidade de denunciante, para levar a julgamento agentes ligados a negócios do futebol, por evasão fiscal, branqueamento e corrupção. Paralelamente a este enredo, a juíza Margarida Alves decidiu em 2020 conceder a Rui Pinto a possibilidade de aguardar julgamento em liberdade no seguimento da sua colaboração com a polícia judiciária. Ainda não conhecendo o desfecho do processo com data de retoma no mês de setembro, não podemos dizer que vá ou não haver lugar a “colaboração protegida” com impacto na pena aplicada, mas podemos perguntar-nos se já não houve lugar a “colaboração protegida” com impacto na medida de coação – algo que não está previsto na lei e que não altera fundamentalmente os motivos de aplicação da prisão preventiva.
Foi ou não justa esta aplicação? Foi a sua aplicação fruto do mediatismo do caso e o que é que isso implica para outros cidadãos nas mesmas circunstâncias?
Adiar é perpetuar a injustiça implícita
O sistema judicial é um pilar fundamental do Estado de Direito. A corrupção, como ato praticado por criminalidade organizada e sofisticada, veio alterar a forma como este pilar precisa de se equipar e atuar. Contudo, a necessidade de agir não é só premente como é urgente, dada a contribuição que a corrupção tem na corrosão da confiança das pessoas nas instituições. Assim, medidas como a legislação da “colaboração protegida”, podem, simultaneamente, criar uma maior justiça na sua aplicação, como também dar uma maior capacidade ao sistema judicial para o combate à corrupção.
Referências
https://transparencia.pt/protecao-de-denunciantes-e-delacao-premiada-mitos-e-prioridades/
https://sol.sapo.pt/artigo/686426/ha-muito-mais-eutanasia-escondida-do-que-se-imagina
Autores:
Pedro Vara
Rafael Pimentel
Ricardo Dias Ferreira
Ricardo Filipe
Rodrigo Oliveira
Samuel Moura
Teresa Tavares de Abreu
Guilherme Alexandre Jorge (mentor)
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