Evolução das finanças públicas em Portugal, particularmente a descida do rácio da dívida pública, tem sido elogiada pelas instituições e agências. Governo já avisou que cenário é para manter.
- O ECO publicou diariamente, até esta quarta-feira, uma série de seis artigos sobre o Estado da Nação, com uma análise aos desafios na Saúde, Educação, Habitação, Economia, Justiça e Finanças Públicas.
Longe vão os tempos em que o debate sobre as finanças públicas em Portugal se centrava no défice orçamental e no risco de se situar acima dos 3% do Produto Interno Bruto (PIB), fazendo disparar os alarmes em Bruxelas. Atualmente, a discussão é antes qual a dimensão do excedente alcançado. É com as finanças públicas controladas que o Governo liderado por Luís Montenegro chega ao seu primeiro debate do Estado da Nação, esta quarta-feira, tendo herdado um saldo positivo, um rácio da dívida pública abaixo de 100% e um rating no patamar ‘A’ por todas as principais agências de notação financeira.
Depois de um défice orçamental de 2,9% em 2021 e de 0,3% em 2022, Portugal alcançou um excedente histórico de 1,2% em 2023, fixando-se acima das previsões oficiais, com a capacidade de financiamento do Estado a melhorar para 3,19 mil milhões de euros de euros.
Segundo os dados do Instituto Nacional de Estatística (INE), a evolução, em contas nacionais, representa uma melhoria de 3.973 milhões de euros entre 2022 e 2023, resultado de um aumento na receita (9%) – sobretudo devido à receita fiscal e contribuições sociais – mais significativo do que o observado para a despesa (5,25%).
Contudo, o excedente resultou em grande parte do saldo positivo da Segurança Social, uma vez que o subsetor da Administração Central apresentou um défice e o excedente da Administração Regional e Local foi muito ligeiro. Os fundos de Segurança Social aumentaram 33,2% no último ano, passando de 4.258 milhões de euros em 2022 para 5.670 milhões de euros no final do ano passado, alcançado assim o valor mais elevado desde pelo menos 1995 (início da série do Banco de Portugal).
O excedente do ano passado superou o de 2019 (0,1%), ano em que o antigo ministro das Finanças no governo de António Costa e atual governador do Banco de Portugal, Mário Centeno, conquistou o primeiro saldo orçamental positivo (0,1%) desde 1974, e colocou Portugal entre os três países da zona euro que não tiveram défice, a par do Chipre e da Irlanda.
“Desde os tempos da Troika que passou a existir uma maior preocupação em garantir que as finanças públicas caminham no sentido da sustentabilidade. Para termos uma melhor perceção disto, recordo que o saldo orçamental estrutural (exclui os efeitos do ciclo económico e as medidas temporárias) era de -8,4% do PIB em 2010. Já em 2015 havia sido reduzido para os -2,1% do PIB e, em 2023, foi positivo pela primeira vez em 0,9% do PIB“, destaca Ricardo Ferraz, investigador no ISEG e professor na Universidade Lusófona.
Desde os tempos da Troika que passou a existir uma maior preocupação em garantir que as finanças públicas caminham no sentido da sustentabilidade
O economista destaca que se tratou do quarto excedente estrutural mais elevado na União Europeia. “Poucos falam disto, mas a realidade é que as contas públicas estão hoje numa situação muito mais favorável do que estavam no passado. Houve um caminho que foi sendo percorrido e que é transversal a vários governos”, assinala, considerando que “Portugal só não continua nesse caminho se não quiser”.
Paralelamente, o rácio da dívida pública caiu de 112,4% do PIB em 2022 para 99,1% no ano passado, fixando-se, assim, abaixo do marco dos 100%, permitindo ao país deixar o ‘top três’ dos países mais endividados entre os da moeda única. A trajetória de redução do peso da dívida pública no PIB tem sido uma das principais vitórias do país, elogiada pelas principais instituições económicas nacionais e internacionais e por agências de ‘rating’. Iniciada em 2016, foi interrompida durante a pandemia (à semelhança da maioria dos Estados a nível mundial) em 2020, voltando a reduzir-se a partir de 2021.
Contudo, os resultados não ficaram isentos de críticas. O atual Governo apontou o dedo ao antecessor sobre a gestão que permitiram alcançar estes indicadores, particularmente os dividendos extraordinários solicitados a empresas públicas, como a Águas de Portugal, Casa da Moeda e NAV, depois de também a Unidade Técnica de Apoio Orçamental (UTAO) ter considerado que a redução da dívida foi “artificial”.
Paulo Monteiro Rosa, economista sénior do Banco Carregosa, alerta que “é esperada uma desaceleração do ritmo de descida do rácio da dívida pública face ao PIB nominal registado nos últimos dois anos“. Esta evolução resulta de um desaceleramento das receitas do Estado – “não só pelo desagravamento fiscal, sobretudo em sede de IRS” -, mas também pela esperada diminuição da elevada inflação, – “que foi muito favorável nos últimos dois anos para as contas públicas, nomeadamente para a diminuição da dívida pública em relação ao PIB nominal”, a que acresce um acréscimo da despesa ditado pelo programa eleitoral da Aliança Democrática (AD).
É esperada uma desaceleração do ritmo de descida do rácio da dívida pública face ao PIB nominal registado nos últimos dois anos
O economista dá nota que o PIB nominal aumentou acentuadamente em 2022 e 2023, de 214,5 mil milhões de euros no final de 2021 para 266 mil milhões de euros no final de 2023, um aumento de 24%, enquanto a dívida se manteve quase inalterada entre os 265 e os 275 mil milhões de euros, o que permitiu uma descida do rácio de cerca de 24 pontos percentuais entre 2021 e 2023.
Incerteza política e contexto internacional entre os riscos
Não demorou muito para que a polémica se instalasse entre o atual ministro das Finanças, Joaquim Miranda Sarmento, e o ex-titular da pasta Fernando Medina (PS) sobre a execução orçamental relativa a 2004. Miranda Sarmento acusou o antigo governante de deixar as contas públicas num estado “bastante pior” do que o anunciado, ao que Medina ripostou, afirmando que as afirmações revelavam “inaptidão técnica” ou, em alternativa, “falsidade política”.
De acordo com a documentação remetida pelo Governo à Comissão de Orçamento Finanças e Administração Pública (COFAP), a despesa extraordinária aprovada no primeiro trimestre de 2024 totaliza 1.081 milhões de euros, com a fatia de leão dos pedidos de reforço autorizados a centrarem-se nos 566 milhões de euros destinados à redução da tarifa de acesso às redes e nos 100 milhões de euros destinados ao programa de aquisição de munições para a Ucrânia.
Certo é que, no primeiro trimestre, o Estado registou um défice de 0,2% do PIB, em contabilidade nacional, correspondente a 118,9 milhões de euros. Um resultado que compara com o excedente de 1,1% do PIB no arranque do ano passado, que superou o melhor resultado até então (saldo neutro em 2019).
Estado registou um défice de 0,2% do PIB, em contabilidade nacional, no primeiro trimestre, correspondente a 118,9 milhões de euros. Um resultado que compara com o excedente de 1,1% do PIB no arranque do ano passado.
Ainda assim, o ministro das Finanças acredita que o Estado (num cenário que não contabiliza as medidas aprovadas da oposição) deverá registar um excedente orçamental entre 0,3% a 0,4% do PIB. A convicção de um saldo positivo é partilhada entre as principais instituições nacionais e internacionais. O Fundo Monetário Internacional prevê um excedente de 0,2%, a Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Económico de 0,3%, o Conselho das Finanças Públicas de 0,5% e o Banco de Portugal de 1,1%.
É a partir deste cenário (e da expetativa de um saldo positivo ou neutro ao longo da legislatura) e enquadrado nas novas regras orçamentais da Comissão Europeia – que incluem a entrega de um plano orçamental estrutural nacional de médio prazo, na qual a despesa primária tem um lugar central – que o Governo terá de negociar o Orçamento do Estado para 2025 (OE2025), levando na bagagem os encargos das suas propostas, tendo já avisado que medidas dos outros partidos não podem pôr em causa o excedente projetado.
Para Pedro Braz Teixeira, diretor do gabinete de estudos do Fórum para a Competitividade, se o cenário económico internacional e nacional se mantiver, “não deverá haver grandes dificuldades económicas” para que o país consiga manter o equilíbrio das contas públicas ou excedentes orçamentais a curto e médio prazo. No entanto, admite que “em termos políticos é que as condições parecem mais difíceis”.
Se o cenário económico internacional e nacional se mantiver, não deverá haver grandes dificuldades económicas para o conseguir [manter o equilíbrio das contas públicas]. Em termos políticos é que as condições parecem mais difíceis
O programa eleitoral da Aliança Democrática previa que suas principais medidas (incluindo redução do IRC, isenção de prémios de desempenho, IRS Jovem ou eliminação do imposto de selo e IMT na compra da primeira habitação por jovens, esta última com um impacto de 50 milhões de euros no próximo ano), com efeito a partir de 2025 e algumas prolongando-se até 2027, tivessem um impacto global na receita de cinco mil milhões de euros.
Ademais, estimava que do lado da despesa, as principais medidas previstas, que incluem a reposição gradual do tempo de serviço dos professores ou a introdução do suplemento remunerativo solidário, tivessem um impacto de 2,24 mil milhões de euros. No entanto, os compromissos assumidos pelo Governo com outros setores, como os polícias (cerca de 150 milhões de euros) terão também impacto nas finanças públicas.
As negociações do Orçamento partem assim de um quadro de medidas de política já pesado, deixando uma margem curta para incorporar propostas dos restantes partidos. Ainda assim, Paulo Monteiro Rosa realça que “o atual executivo governa com um apoio parlamentar minoritário, assim a agenda eleitoral de todos os partidos políticos está sempre em cima da mesa, podendo condicionar o rigor orçamental”.
Também Ricardo Ferraz destaca que “há o risco de Governo e oposição, mas principalmente esta última, caírem em tentações eleitoralistas“. “Isto é, o Governo querer dar um, mas a oposição querer dois. E se o Governo der dois, então a oposição vai querer quatro. Se algo deste género suceder na discussão da especialidade do próximo Orçamento do Estado, há o risco de as contas públicas poderem ser fortemente prejudicadas”, prevê.
Os dois economistas identificam ainda entre os riscos para as finanças públicas a situação geopolítica internacional, com Paulo Monteiro Rosa a assinalar que uma “inesperada forte desaceleração económica” pode aumentar “ainda mais a despesa pela ativação dos estabilizadores automáticos, tais como subsídios de desemprego, e diminuir as receitas”.
Por sua vez, Pedro Braz Teixeira elenca “o cenário internacional, relativamente benigno até agora, mas que se poderá deteriorar; problemas políticos em França, que afetem as taxas de juro francesas e se contagiem a Portugal; a instabilidade política, que leve à demissão do governo; e a aprovação de medidas expansionistas pela oposição parlamentar”.
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Estado da Nação. “Contas certas” ameaçadas por entendimentos políticos incertos
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