A marcar o fim de um ano parlamentar, os deputados debatem na quarta-feira o Estado da Nação. O ECO fez um raio-X às forças e fraquezas do setor da Saúde.
- O ECO vai publicar diariamente uma série de seis artigos sobre o Estado da Nação, até ao debate de quarta-feira no Parlamento, com uma análise aos desafios na Saúde, Educação, Habitação, Economia, Justiça e Finanças Públicas.
Com apenas três meses em funções, os problemas no SNS são os mesmos que o Governo herdou. Ainda assim, com o período mais difícil do verão à porta, não escapará a um balanço no debate do Estado da Nação, que se realiza na próxima quarta-feira. Mesmo com um crescimento do número de profissionais, o aumento da produção nos hospitais e o maior orçamento de sempre da Saúde, acima dos 13 mil milhões de euros, o sentimento de crise persiste.
Com uma população cada vez mais envelhecida, as longas filas de espera e os constrangimentos quer nos hospitais, quer nos centros de saúde têm “empurrado” os portugueses para o setor privado, o que tem levado a um disparo dos seguros de saúde, que no final do ano poderão chegar aos quatro milhões.
Neste contexto, e com o Governo minoritário da Aliança Democrática em funções há pouco mais de três meses, os deputados deverão aproveitar para questionar o Executivo sobre o estado da saúde, com foco nas medidas já anunciadas e que é preciso pôr no terreno. “Vai ser seguramente um balanço”, antecipa Adalberto Campos Fernandes, ao ECO. Para o antigo ministro da saúde “há coisas que parecem estar a correr bem”, como é o caso da recuperação das listas de espera para cirurgias oncológicas, mas há aspetos mais “difíceis” de resolver a longo prazo, designadamente ao nível da “prontidão de recursos”.
O número de utentes sem médico de família atribuído é a pior ferida do SNS e continua por sarar. Atingiu máximos históricos em maio do ano passado, com 1,76 milhões de portugueses a ‘descoberto’. Apesar de ter baixado ligeiramente desde então, continua em níveis elevados. Em junho, havia cerca de 1,6 milhões de portugueses sem médico de família.
“Este é um problema que também não se resolve de forma imediata, e a lógica de médico de família não é compatível com consultas pontuais”, afirma Pedro Pita Barros, sublinhando que é necessário apostar na “capacidade de redefinição de funções, com papel mais alargado de enfermeiros especializados” e apostar numa “estratégia clara sobre maior variedade de tipos de contratos oferecidos”.
Certo é que o número de utentes inscritos no SNS tem vindo a aumentar, pressionando os serviços. No ano passado, o número total de consultas médicas nos cuidados primários diminuiu pelo segundo ano consecutivo. Em 2023, foram feitas cerca de 33,6 milhões de consultas (presenciais e não presenciais), uma quebra de 2,5% face ao ano anterior (menos 868 mil). A diminuição é explicada pelo menor volume de consultas não presenciais (-6,3%), tal como constatou o relatório do Conselho de Finanças Públicas (CFP) sobre o desempenho do Serviço Nacional de Saúde em 2023. Não obstante, é possível verificar que a pandemia travou o ritmo das consultas presenciais e a recuperação continua por fazer.
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Por outro lado, os hospitais conseguiram ganhar balanço e no ano passado já ultrapassaram os níveis pré-Covid com cerca de 13,3 milhões de consultas presenciais realizadas no último ano completo. A situação é semelhante nas cirurgias programadas, que deram continuidade à tendência de crescimento registada desde 2021.
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Mas dentro dos hospitais, são os serviços de urgência que continuam a centrar as maiores preocupações, dado o elevado número de episódios de urgência (que nos últimos dois anos superaram os seis milhões e estão relacionados com a falta de resposta nos cuidados de saúde primários) e o facto de estas estarem dependentes de um elevado número de horas extraordinárias realizadas pelos profissionais de saúde, elevando a despesa, que atingiu os 463,6 milhões de euros em 2023, um valor recorde.
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Ao ECO, o economista Pedro Pita Barros sublinha que não há “soluções “mágicas”, mas perante as “limitações, a existência de previsibilidade de situações e de uma comunicação clara é central para que a população se adapte“, numa alusão ao plano de urgências rotativas em funcionamento. Já Campos Fernandes realça que o ideal seria conseguir assegurar que todos os cidadãos tivessem médico de família atribuído, contudo, perante esta debilidade há que segurar uma resposta e esta “não deve ser a urgência do hospital”.
Por isso, vê com bons olhos o anúncio da criação de centros de atendimentos clínicos para doentes não urgentes que vão vigorar no Porto e em Lisboa. “É uma porta intermédia para dar resposta a necessidades que não são necessariamente complexas, dado que não requerem um atendimento hospitalar, e e dão vazão a uma procura que não está satisfeita“, resume.
Para fazer face aos constrangimentos, o Governo aprovou um suplemento remuneratório para as horas extraordinárias dos médicos, de caráter excecional e que vai vigorar até ao final do ano. “O montante do suplemento vai aumentando progressivamente, com incentivos de mais 40% a 70% da remuneração base de cada médico, por cada bloco de 40 horas de trabalho realizado, a acrescer ao pagamento das horas de trabalho efetivamente prestadas”, de acordo com o comunicado do Conselho de Ministros.
“Este diploma deve ser visto como uma solução de recurso no momento atual”, avisa Pita Barros, sublinhando que “necessidades permanentes não devem ser satisfeitas com horas extraordinárias”. “E se para alguns casos, para manter o treino dos profissionais de saúde é necessário fazer mais horas, ou mais concentradas, do que no horário normal, então os contratos deveriam especificar o que será ‘normal’ nesses casos”, acrescenta o professor da Nova SBE.
Além disso, e como prometido durante a campanha eleitoral, o Governo avançou com um programa de emergência para a saúde, que se foca em cinco eixos considerados prioritários, como as urgências, as grávidas e os médicos de família. O economista Pedro Pita Barros defende que algumas das medidas neste plano “deveriam produzir resultados durante este verão”, contudo, sinaliza que “um plano de desenvolvimento do SNS tem que ser mais do que resolver emergências”, pelo que espera que o Governo reveja o documento e que haja mais “informação” sobre as decisões tomadas.
“Em particular, a nível macro da gestão do SNS interessa conhecer como se vai estabelecer a divisão de competências entre ACSS e direção executiva do SNS, como vai ser terminada a extinção das Administrações Regionais de Saúde (sobretudo no que se refere a como serão distribuídas o que eram as competências das ARS e a distribuição dos trabalhadores de tarefas especializadas), e que caminho será definido para as ULS (se é que alguma alteração é possível nesta altura sem levar a rotura do SNS)”, aponta o economista.
Certo é que, apesar dos sucessivos alertas de que a falta de condições e os baixos salários estão a afastar os médicos do SNS para o privado ou para a emigração, o número de médicos no público tem vindo a aumentar. Se no final de dezembro de 2018, havia 29.235 médicos no Estado, em março deste ano este número era de 34.375, segundo os dados da Direção-Geral da Administração e do Emprego Público (DGAEP). Ou seja, no espaço de quatro anos e três meses há mais 5.140 médicos a trabalharem para o SNS.
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A par dos médicos também o número de enfermeiros tem aumentado. Se em dezembro de 2018 havia 46.130 enfermeiros no Estado (incluindo todos os vínculos contratuais), em março deste ano esse número já era de 54.835, segundo os dados da DGAE. Trata-se de um aumento de mais de 8 mil enfermeiros.
Este é, aliás, um dos temas que Campos Fernandes gostaria de ver abordado “nos próximos tempos e até no debate do Estado da Nação”, que vai decorrer na quarta-feira e marca a interrupção dos trabalhos parlamentares, considerando que haver uma “concertação estratégica” entre Governo e profissionais de saúde “é meio caminho andando para que as dificuldades do setor possam ser melhoradas”.
Por outro lado, o ex-ministro realça que “era fundamental fazer com que os jovens médicos que acabam a especialidade tivessem vontade e gosto em enveredar pela carreira médica no SNS” e isso passa por rever a grelha salarial, mas também as condições de trabalho. “É um desafio bastante difícil (…), mas há modelos inovadores e há que aproveitá-los e experimentá-los”, remata. De recordar que o Ministério da Saúde chegou a acordo com o Sindicato Independente dos Médicos (SIM), bem como com uma plataforma que que integra quatro sindicatos dos enfermeiros quanto ao protocolo negocial, que inclui a intenção de rever as grelhas salariais.
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Estado da Nação. SNS tem mais médicos e enfermeiros, mas as dores continuam
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