Novas regras da nacionalidade e o futuro do investimento em Portugal. Estará a confiança em risco?

O Governo apresentou três propostas relativas à entrada de cidadãos estrangeiros em Portugal. Uma das principais polémicas recai sobre os vistos gold e advogados alertam para riscos de litígios.

Foi em junho que o Governo entregou na Assembleia da República três propostas relativas à entrada de cidadãos estrangeiros em Portugal. Uma altera a Lei da Nacionalidade, aumentando os prazos de residência mínima. Outra muda a Lei de Estrangeiros, revendo os vistos para procura de trabalho e as regras do reagrupamento familiar. E a terceira prevê a criação de uma polícia de fronteiras.

Mas estas propostas criaram alguma preocupação, principalmente junto dos detentores de Autorização de Residência para Atividade de Investimento (ARI), ou por outras palavras, detentores de vistos gold. Segundo as propostas, por exemplo, os requerentes passam a ter de investir entre 250 a 500 mil euros em atividades de investigação, em fundos de investimento ou na criação de uma entidade comercial.

Mas vamos por partes. A proposta de alteração à Lei da Nacionalidade prevê que o prazo mínimo de residência legal aumente dos atuais cinco anos para sete anos no caso dos cidadãos com origem em países de língua oficial portuguesa, e para dez anos no caso dos demais. Segundo a associada da Paxlegal, Rita Correia Nunes, esta alteração não é compatível com o princípio da proteção da confiança e da segurança jurídica, uma vez que alterar as regras a meio do percurso, “sobretudo sem prever um regime de transição claro”, quebra essa confiança e compromete a previsibilidade e a estabilidade do ordenamento jurídico.

“Muitas pessoas estrangeiras que vivem em Portugal, trabalham, constituem família e planeiam aqui o seu futuro fazem-no com base na legislação em vigor, acreditando legitimamente que, ao completarem cinco anos de residência legal, poderão requerer a nacionalidade portuguesa”, refere a advogada.

Contudo, a managing partner da LVP Advogados, Joana Torres Fernandes, defende que se a alteração em causa só produzir efeitos após a entrada em vigor da lei, não existe qualquer violação direta desses princípios. “Qualquer aplicação retroativa configuraria uma violação grave da proteção da confiança e da segurança jurídica”, admite.

Joana Torres Fernandes considera que existe o risco de estas alterações serem aplicadas a processos já iniciados ou investimentos já feitos, mas destaca uma situação “particularmente delicada”: o caso dos processos de ARI.

“O programa foi concebido para ter um ciclo de cinco anos. O investidor compromete-se, por declaração de honra, a manter o investimento durante esse período. Com a proposta de aumento para dez anos, teria de manter a autorização ativa por quase o dobro do tempo. Mais renovações, mais custos e mais requisitos mínimos de permanência (14 dias a cada dois anos). No caso de fundos de investimento, as taxas da AIMA são elevadas e cobradas de dois em dois anos”, revela.

Caso seja estendido o prazo para 10 anos, Rita Correia Nunes explica que os investidores que já submeteram os pedidos de ARI podem invocar o princípio da boa-fé para se protegerem. Ainda assim, sublinha que essa proteção não é automática. “Exige uma apreciação judicial caso a caso, na qual se demonstre que existia uma confiança fundada na manutenção do quadro legal em vigor e que essa confiança foi frustrada por uma mudança abrupta e prejudicial”, nota.

À Advocatus, Joana Torres Fernandes explica que ter uma ARI significa ter direitos de residência e não um “passaporte garantido”, beneficiando apenas dos direitos diretamente associados à autorização, como viver legalmente em Portugal e circular no Espaço Schengen. O prazo de cinco anos para requerer a nacionalidade não é exclusivo dos investidores, aplicando-se a qualquer residente legal. Criar um regime de exceção apenas para uma categoria de residentes não se justifica juridicamente”, acrescenta.

A managing partner da LVP partilha também um facto que “não pode ser ignorado”: existem investidores à espera do primeiro título de residência desde 2021. “Penalizá-los agora, quando a própria administração está a tentar reduzir pendências, é incompreensível do ponto de vista da boa-fé administrativa”, refere.

Tanto a Constituição da República Portuguesa (CRP) como o Direito da União Europeia oferecem alguns tipos de proteção para estes casos. Por exemplo, a CRP consagra princípios fundamentais como a legalidade, a segurança jurídica e a proteção da confiança, os “quais são essenciais para assegurar que alterações legislativas não prejudiquem injustamente aqueles que basearam as suas decisões em regras anteriormente vigentes”, diz Rita Correia Nunes.

Já no plano europeu, a associada da Paxlegal refere que a Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia protege também direitos essenciais à segurança jurídica e à proteção da confiança legítima. “Adicionalmente, alterações legislativas que comprometam expectativas legítimas criadas por regimes anteriores podem ainda ser contestadas com base na violação do princípio da proporcionalidade (artigo 5.º do Tratado da União Europeia), princípio este também essencial para garantir a estabilidade e previsibilidade do ordenamento jurídico da União Europeia”, acrescenta.

Ainda assim, Joana Torres Fernandes deixa um alerta: “a suposta “promessa” de nacionalidade associada ao ARI tem natureza política, não jurídica. A via judicial será sempre limitada e dependerá da prova de que o Estado criou expectativas legítimas de forma inequívoca”.

Nacionalidade adiada, confiança quebrada?

Um dos riscos das possíveis alterações à lei pode ser a saída dos investidores do país, através da venda das suas participações nos fundos, e para Joana Torres Fernandes uma “saída em massa” pode ter consequências jurídicas e operacionais “muito graves” para os fundos, como pressão sobre a liquidez, suspensão de reembolsos, venda forçada de ativos em más condições ou até liquidação antecipada.

“Para o investidor, vender implica perder um requisito essencial para manter o ARI, inviabilizando a renovação e o acesso à nacionalidade. Estas situações podem também originar litígios com as sociedades gestoras, sobretudo se houver alegações de violação do regulamento, tratamento desigual entre investidores ou quebra de expectativas legítimas”, aponta a managing partner da LVP.

Ainda assim, Rita Correia Nunes recorda que o impacto “concreto” de uma eventual saída de investidores dependerá da estrutura jurídica e financeira de cada fundo, do número de investidores envolvidos e da capacidade do fundo para dar resposta a eventuais pedidos de cessão ou resgate, nomeadamente em função da liquidez dos ativos que integram a sua carteira.

Entre os principais riscos para os fundos envolvidos as advogadas apontam o incumprimento de prazos de liquidez, a desvalorização de ativos, colapsos operacionais e a eventual responsabilidade civil perante investidores.

“Para mitigar, os fundos podem rever regulamentos de gestão, introduzir cláusulas de salvaguarda de capital, criar períodos de lock-up mais longos, negociar soluções consensuais e reforçar a comunicação com autoridades e clientes para gerir expectativas e evitar litígios”, aponta como soluções a managing partner da LVP.

Já a associada da Paxlegal aponta os mecanismos previstos no Regime da Gestão de Ativos e segundo orientações da CMVM, como períodos de pré-aviso para resgates (notice periods), limites ao volume de resgates por período (gates), comissões de saída ajustadas ao impacto na carteira (swing pricing ou exit fees), constituição de reservas de liquidez em instrumentos de elevada rotatividade (liquidity buffer) e a suspensão temporária de resgates em situações excecionais. “Estas ferramentas contribuem para uma gestão mais previsível e estável da carteira, protegendo todos os investidores, especialmente em momentos de instabilidade normativa ou de mercado”, acrescenta.

E caso os fundos, enquanto entidades gestoras, pretendam tomar medidas contra o Estado ou obter compensações às opiniões dividem-se. Para Joana Torres Fernandes a margem é “curta”, mas existem mecanismos. Caso seja possível provar um dano concreto, direto e grave, causado por alterações legislativas imprevisíveis e lesivas, os fundos podem intentar ações de responsabilidade civil contra o Estado, invocando a violação dos princípios da legalidade, proteção da confiança e segurança jurídica.

“Em casos com investidores estrangeiros, a arbitragem internacional ao abrigo de tratados bilaterais de proteção de investimentos pode ser uma via a considerar, sobretudo quando estejam em causa prejuízos relevantes e expectativas legítimas criadas pelo próprio Estado”, acrescenta.

Por outro lado, Rita Correia Nunes acredita que não é possível, uma vez que os fundos podem ter sido estruturados de forma a serem compatíveis com o regime dos Vistos Gold, mas não foram criados “exclusivamente” para esse fim. “Não existindo uma relação contratual direta com o Estado ou uma garantia expressa de manutenção do regime, é difícil invocar responsabilidade civil do Estado ou direito a compensação”, assume.

Uma coisa é certa, caso as alterações à Lei da Nacionalidade sejam aprovadas nos termos anunciados, os investidores que se considerem “lesados” podem intentar uma ação administrativa junto dos Tribunais Administrativos.

Esta ação administrativa visa impugnar decisões da Administração Pública que recusem ou prejudiquem o exercício do direito à nacionalidade, com fundamento na aplicação das novas normas. O fundamento central dessa ação será a invocação da violação do princípio da proteção da confiança e da legítima expectativa, ambos consagrados no ordenamento jurídico português”, explica a associada da Paxlegal.

Reputação de Portugal pode ficar afetada

A incerteza já está a levar alguns investidores, e potenciais investidores, a repensar planos de investimento e a reputação jurídica de Portugal como destino seguro para o investimento estrangeiro pode ser afetada significativamente.

A sucessiva alteração de regimes jurídicos nos últimos anos, com impacto imprevisível em decisões já tomadas por investidores, contribui para uma perceção de instabilidade legislativa. Essa incerteza compromete a confiança dos investidores no ordenamento jurídico português e pode levar à deslocação de capital para jurisdições com maior previsibilidade e consistência normativa”, assume Rita Correia Nunes.

Segundo a advogada, a reputação jurídica de um país é um “ativo intangível crucial” na atração de investimento estrangeiro. “Quando essa reputação é colocada em causa, os efeitos não se limitam ao regime em questão, mas estendem-se à credibilidade global do país enquanto destino seguro e confiável para aplicar capital a médio e longo prazo”, acrescenta.

Lisboa, turismoLusa

Também Joana Torres Fernandes defende que a reputação pode ficar “ainda” mais afetada, uma vez que considera que a perda de competitividade começou antes desta proposta. “A exclusão do imobiliário da ARI e os atrasos de mais de três anos na emissão do primeiro título de residência já tinham retirado ao programa grande parte das suas vantagens”, sublinha.

“Hoje, há investidores à espera entre três e cinco anos pelo primeiro cartão, mantendo investimentos substanciais sem poder beneficiar plenamente da mobilidade internacional. Alterações retroativas e instabilidade legislativa transmitem uma clara mensagem de insegurança. Não se pode promover um programa e mudar as regras a meio do jogo. Curiosamente, tanto se tentou mexer e até acabar com o Golden Visa que ainda hoje temos clientes surpreendidos quando lhes dizemos que o programa continua a existir. Portugal precisa de previsibilidade legislativa se quer recuperar a confiança dos mercados e voltar a atrair investimento qualificado”, refere.

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