Donald Trump está a dias de sair da Casa Branca, e após o ataque ao Capitólio, a destituição voltou a estar em cima da mesa. O que fará Trump nos próximos quatro anos. Leia o Novo Normal desta semana.
“A todos os meus maravilhosos apoiantes: sei que estão desapontados, mas também quero que saibam que a nossa incrível viagem está apenas a começar” — foi assim que Donald Trump terminou a declaração de 2 minutos e 41 segundos na qual, ao fim de mais de dois meses de negação, mentiras e incitamento à violência, acabou por prometer uma “harmoniosa transição de poder”. O vídeo, divulgado na quinta-feira à noite, foi interpretado como um recuo desesperado do presidente dos EUA para evitar a suprema humilhação de uma destituição a menos de duas semanas do termo do seu mandato. Para além de que, se tal acontecesse, Trump ficaria impedido de voltar a candidatar-se a cargos políticos – e isso, tudo indica, pode estar nos seus planos.
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Após o ataque ao Capitólio por uma turba acicatada por Trump, ao vivo e em direto, nas ruas de Washington, que fez de 6 de janeiro um dia de infâmia nos EUA, tem crescido a pressão para que Trump seja destituído. Primeiro, o Partido Democrata sugeriu que os membros do governo de Trump o declarassem incapaz para as funções – um mecanismo previsto na 25º Emenda da Constituição dos Estados Unidos. Em alternativa, o Partido Democrata poderá desencadear um processo ultra-rápido de impeachment, sob acusação de incentivar uma insurreição contra a ordem estabelecida. Resta pouco tempo, mas chega, como fica muito bem explicado neste artigo do Público.
Abandonado por parte do establishment do seu partido, com uma vaga de demissões na Casa Branca, e com o cerco a apertar-se em relação a uma possível destituição-relâmpago, o vídeo de Trump incluiu vários inéditos:
- pela primeira vez, não mostrou compreensão face aos apoiantes;
- pela primeira vez não repetiu falsidades sobre fraude eleitoral ou eleições roubadas;
- pela primeira vez condenou o ataque ao Capitólio e prometeu ações judiciais contra os seus protagonistas;
- pela primeira vez comprometeu-se com uma transição suave de poder para Joe Biden.
Foi o suficiente para os ultras de Trump o acusarem de cobardia. Talvez por isso o bom comportamento durou poucas horas. Na sexta-feira, Trump voltou à atitude de bad boy, anunciando que não irá à tomada de posse do seu sucessor. Essa ausência será o último ato do Trump-presidente e o primeiro statement do que quer que Trump prepare para o futuro. A frase sobre a viagem que “ainda agora começou” faz temer que Trump queira mesmo continuar a dar cartas no Partido Republicano e, talvez, voltar a ser candidato nas presidenciais de 2024.
Adeus, passarinho
O que quer que Trump planeie fazer, será mais difícil sem Twitter. E será sem Twitter para sempre, segundo o próprio Twitter, que nas últimas horas anunciou que Trump está banido daquela rede social “permanentemente”. A empresa alega o risco de Trump usar aquele meio para incitar à violência – tanto nos últimos 12 dias do seu mandato, como depois de deixar a presidência.
A decisão terá deixado Trump “desesperado”, segundo fontes da Casa Branca citadas em notícias como esta. Começou por tentar contornar a suspensão usando a conta oficial de presidente dos EUA, para atacar o Twitter, acusando-o de promover a “esquerda radical” e atacar a “liberdade de expressão”. Mas esses tweets foram removidos, pois as regras da empresa ditam que quem está suspenso não pode usar outras contas para escapar ao castigo.
Entretanto, Trump começou a procurar alternativas – a mais óbvia é a rede social Parler, uma plataforma muito popular entre os conservadores americanos desde que o Twitter começou a rotular como falsos ou duvidosos alguns tweets do presidente e seus aliados. O Parler não coloca qualquer freio aos conteúdos publicados pelos utilizadores. Tanto que, no dia da invasão do Capitólio, bastava estar nesta rede para saber que isso ia acontecer – já agora, recomendo este podcast com uma entrevista ao CEO do Parler sobre o papel e a responsabilidade desta plataforma nos acontecimentos de quarta-feira (tem a transcrição aqui).
O Parler tem ainda pouca dimensão, mas está a crescer. Ou estava… pode ser a próxima vítima do cerco a Trump: segundo o New York Times, a Apple e a Google já avisaram que se continuar a funcionar como até agora, irão banir essa rede das suas lojas de apps.
A decisão do Twitter lançou o alvoroço nas redes sociais, tem sido zurzida pelo trumpismo, e questionada por quem se preocupa com o impacto deste precedente em termos de liberdade de expressão. Os apoiantes de Trump dizem que estamos a viver o “1984”, de George Orwell. Esta decisão vai aumentar a raiva contra o “sistema” e a elite não eleita, e coloca sérias questões sobre a legitimidade dessa elite ao decidir quem fala e quem é calado… daí que este texto de opinião de alguém insuspeito de ser trumpista questione: “Twitter, are you sure about this?”
A verdade é que o endurecimento da atitude dos gigantes das redes em relação a Trump só aconteceu a partir do dia em que se soube que os democratas vão controlar o Senado e todo o restante poder político nos próximos dois anos. E, claro, no dia em que Trump e a sua turba fizeram algo inimaginável… com a ajuda dessas redes. As investigações indicam que estas plataformas foram decisivas no ataque ao Capitólio. O cadastro das redes sociais no ataque global à democracia é longo. E era evidente que o poder político em Washington, agora dominado pelos democratas, irá apertar as regras de funcionamento dessas plataformas.
“Isto vai fazer ricochete e atingi-los”, diz um senador democrata sobre o papel das redes sociais no ataque ao Capitólio. De certa forma, as decisões mais recentes de Mark Zuckerberg e Jack Dorsey têm a ver com luta pela sobrevivência, numa altura em que os seus negócios já estão na mira de vários processos na justiça americana. Como escreve Bernardo Pires de Lima no DN deste sábado, “alguém acredita que se Trump tivesse sido reeleito Zuckerberg tomava a decisão de lhe fechar a conta no Facebook?”
O que quer que venha a acontecer, numa semana cheia de notícias importantes para o futuro de Trump, a do Twitter é provavelmente a mais importante. O que valerá o “presidente do Twitter” sem Twitter? Esta é, na análise do Politico, a maior ameaça existencial a Trump: num momento decisivo, perde a sua principal ferramenta de poder.
Era pelo Twitter que Trump chegava diretamente aos seus apoiantes, e era pelo Twitter que mantinha o Partido Republicano sob um regime de terror – ninguém queria ser rotulado de traidor, ou fraco, ou ser despedido através da rede social, quando caía em desgraça junto de Trump. “Conseguirá Trump sobreviver sem Twitter?”, pergunta este comentador do New York Times.
Prioridade: travar mais manobras de última hora
Nos dias que lhe restam de mandato, a prioridade dos democratas e de parte dos republicanos é assegurar que Trump não comande mais nenhuma manobra que possa subverter a democracia ou suspender o Estado de Direito. Chegámos a isto. Há discussão técnica sobre se o que aconteceu na quarta-feira se pode definir como um golpe, mas há poucas dúvidas de que as tentativas de Trump para minar a democracia americana não ficarão por aqui.
Na sexta-feira, a líder do Partido Democrata na Câmara dos Representantes, Nancy Pelosi, revelou que falou com o principal responsável da hierarquia militar dos EUA, o general Mark Milley, advertindo-o de que este “presidente instável” deve ficar longe dos códigos nucleares do país. Nos contactos com as chefias do Pentágono, Pelosi alertou também contra tentações de Trump enviar tropas para as ruas.
Há algum tempo que saem rumores da Casa Branca sobre uma eventual declaração da lei marcial. E no início desta semana, numa atitude inédita, os dez antigos secretários de Estado da Defesa dos EUA ainda vivos (de ambos os partidos) assinaram uma carta aberta, avisando para os riscos de Trump abusar da sua posição sobre as Forças Armadas para dar ordens ilegais.
Mesmo antes do aviso de Pelosi, os media americanos já tinham dado conta da preocupação de muitos na equipa de Trump perante a hipótese de este emitir ordens ilegais. Ao mesmo tempo que muito pessoal político está a abandonar o barco, a decisão dos que ficam, contou o Axios, é de resistir e bloquear essas ordens.
A ideia de Trump ser destituído pelo seu próprio governo é, há bastante tempo, vista como uma fantasia dos democratas. Mas, desta vez, foi apoiada por Adam Kinzinger, um congressista republicano do Illinois, e defendida por várias vozes do (ou próximas do) Partido Republicano, incluíndo John Kelly, general que foi chefe de gabinete de Trump. E, de acordo com vários relatos, as cúpulas republicanas – incluindo, mais uma vez, elementos que ainda permanecem na Casa Branca – têm analisado todos os cenários possíveis, como uma censura formal ao presidente – hipótese menos eficaz, mas politicamente menos dolorosa.
Invocar a 25ª Emenda parece um caminho posto de lado por Mike Pence, que deixou pendurado o líder dos democratas do Senado, quando este lhe telefonou para saber a posição do vice-presidente sobre a possibilidade de ser o próprio Executivo a destituir o Presidente (tem um bom relato aqui).
Agora, Pelosi diz que se Trump não sair pelo seu pé, a maioria democrata avançará para um segundo impeachment na câmara baixa do Congresso. O texto já está escrito e acusa Trump de incitar à insurreição. Também deverá referir o facto de ter pressionado o responsável pelas eleições na Geórgia para que este manipulasse os resultados das presidenciais nesse estado.
Porém, como a destituição precisa de dois terços dos senadores para ser efetivo, deverá acabar por ser chumbada no Senado, onde os republicanos têm metade dos lugares. A senadora republicana Lisa Murkowski já se declarou disponível para apoiar a destituição, e parece haver mais republicanos disponíveis para apoiar a destituição, só que não deverão chegar.
Qual a vantagem para o Partido Republicano em apoiar a queda de um presidente que elegeu? Livrar-se de um ativo tóxico e impedi-lo de voltar ao ativo. Segundo a Fox News, nos bastidores republicanos do Congresso há conversas sobre aproveitar o impeachment para impedir Trump de voltar em 2024. Isso é algo que une os democratas e parte do establishment republicano.
Trump mantém grande apoio entre os republicanos
A questão da ligação e apoio dos republicanos a Trump é complexa. Ainda há dias o Washington Post tinha um longo texto sobre a rutura de muitos republicanos da estrutura partidária com Trump, assegurando que o poder do presidente sobre o partido já não é o que era até quarta-feira passada.
Mas uma sondagem do jornal online Axios, divulgada na noite de quinta-feira, dá conta de que 85% dos eleitores republicanos discorda da destituição do presidente, apesar do seu protagonismo nos acontecimentos que levaram à invasão do Capitólio.
- 83% dos inquiridos condenam o ataque ao Capitólio;
- essa percentagem sobe para 97% entre os que se dizem apoiantes do Partido Democrata
- mas cai para 70% entre os republicanos.
Quando questionados sobre se isso justificaria a destituição do ainda presidente:
- só 15% dos republicanos acham que sim;
- entre os eleitores democratas, 86% apoiam a destituição;
- no total, metade dos inquiridos apoiaria a queda imediata de Trump.
Outra sondagem feita após os eventos de quarta-feira confirma a divisão do eleitorado quando questionado se Trump deve ser afastado. Metade diz que Trump deve ser destituído, mas 42% discordam. Impressionante é o alinhamento partidário:
- 85% dos republicanos é contra a destituição;
- 83% dos democratas é a favor.
Na mesma sondagem, feita pela YouGov para a revista The Economist, 45% dos inquiridos que se assumem como republicanos concordam com o ataque ao Capitólio – sim, concordam com uma ação de vandalismo que resultou em destruição, interrupção do regular funcionamento da instituição e morte de cinco pessoas, incluindo um polícia. A ideia é que quando os políticos traem o povo, este deve tomar o poder nas próprias mãos. Só 43% dos republicanos disse estar contra esse ataque. Do lado dos democratas, a oposição é quase total.
Mais: questionados sobre quem tinha responsabilidades na invasão do Capitólio, há mais republicanos a apontar o dedo a Joe Biden do que a Donald Trump:
- 28% dos republicanos acham que Trump tem muita ou alguma culpa no ataque de quarta-feira.
- 52% dos republicanos (ou seja, quase o dobro) dizem que é Biden quem tem muita ou alguma culpa pelos incidentes.
- no eleitorado em geral (incluíndo republicanos, democratas e independentes), não há dúvidas de que foi Trump o grande responsável pelo ataque às instituições a que se assistiu no dia 6 (66% apontam o dedo ao ainda presidente).
Ao fim de dois meses a queixar-se de uma gigantesca fraude eleitoral que nunca foi capaz de demonstrar, ao fim de 60 queixas judiciais recusadas por tribunais de diversas instâncias, apesar de todos os responsáveis pelo processo eleitoral – tanto no Governo central como nos governos estaduais – terem garantido a segurança das eleições e a validade dos seus resultados, incluindo republicanos tão insuspeitos como William Barr, o ministro da Justiça que fazia todos os serviços a Trump… hoje a maioria dos eleitores republicanos acredita que houve fraude eleitoral massiva e que a vitória foi mesmo roubada ao seu presidente.
Uma outra sondagem diz que apenas um quarto dos apoiantes do Partido Republicano aceita o resultado das eleições. Ao nível do total nacional, 61% dos eleitores americanos confia no resultado eleitoral – uma maioria confortável, mas, ainda assim, há 34% que desconfia destes resultados.
Foram estes resultados, e não a existência de provas de fraude, que justificaram que tantos congressistas e senadores republicanos tenham apoiado na quarta-feira a última tentativa de Trump para virar o resultado eleitoral, contestando uma parte dos votos do Colégio Eleitoral em Joe Biden. O argumentário encabeçado por Ted Cruz, senador do Texas, cita expressamente as sondagens como razão para por em causa a vitória de Biden.
Olhando para a taxa de aprovação do presidente, Trump, sendo um presidente impopular, não está nos abismos que alguns poderiam imaginar. O milionário nunca foi um presidente popular ao longo destes 4 anos – só conseguiu um saldo favorável entre opiniões positivas e negativas nos primeiros dias do mandato. Hoje, com 42% de opiniões favoráveis, e 53% que lhe chumbam o desempenho, Trump consegue ter mais popularidade do que noutros momentos do seu mandato (chegou a ter só 36% de opiniões favoráveis).
A guerra civil republicana
Para além das sondagens, o indicador mais eloquente sobre o poder de Trump no seu partido é provavelmente este: mais de dois terços dos republicanos na Câmara dos Representantes e um quarto dos republicanos no Senado apoiaram uma tentativa de virar os resultados eleitorais que não só não tinha qualquer hipótese de ser bem sucedida, como não tinha pés nem cabeça, a não ser na cabeça de Trump.
Na quarta-feira, o dia decisivo, nem o vice-presidente Mike Pence nem o líder dos republicanos no Senado, Mitch McConnell, alinharam nessa fantasia. Mas isso não impediu que os requerimentos para rejeitar umas dezenas de votos do Colégio Eleitoral fossem votados e apoiados por mais de uma centena de republicanos. Mesmo depois da invasão do Capitólio, esses congressistas continuaram a atravessar-se pelas mentiras de Trump. Porquê? Porque 64% do eleitorado republicano defende que o Senado devia reverter o resultado das eleições a favor de Trump.
Esse é o poder que Trump consolidou nestes quatro anos, e está por demonstrar que o tenha perdido depois dos acontecimentos desta semana. O alinhamento com Trump que as sondagens continuam a indicar não demonstra qualquer viragem. O Partido Republicano tem um problema, e terá enquanto Trump tiver apoio do eleitorado.
Apesar de alguns ultras pró-Trump no ataque ao Capitólio usarem camisolas com a inscrição “Guerra Civil”, e o símbolo do movimento MAGA (Make America Great Again) – o que desmente as teorias de que esse episódio teria resultado de uma escalada não intencional -, os receios de um conflito armado generalizado nas ruas dos EUA não se confirmaram. O professor universitário Carlos Gaspar usa, neste artigo do Expresso, uma expressão curiosa para classificar o que pode vir aí na política e na sociedade americana: uma “guerra civil fria”.
Mas há uma guerra civil no Partido Republicano. Ainda antes do fatal dia 6, o Wall Street Journal escrevia sobre os “alinhamentos em curso para a guerra civil republicana”. A divulgação, no fim de semana, da gravação de um telefonema em que Trump pressionava o republicano responsável pelas eleições na Geórgia para que “encontrasse” o número de votos que lhe permitisse ultrapassar Biden naquele estado fez, mais uma vez, estalar o verniz. Era uma ilegalidade evidente, mas ainda assim a maioria dos republicanos não se demarcou do líder do partido. E mesmo depois do ataque ao Capitólio continuam a ser minoritários os que o estão a fazer.
É certo que o vice-presidente Mike Pence foi muito claro na condenação dos acontecimentos de quarta-feira, e e rutura já antes tinha ficado à vista na forma como Pence recusou ser o obreiro da batota eleitoral. A ministra da Educação Betsy DeVos, uma patusca figura que só seria possível num governo de Trump, bateu com a porta depois do dia da vergonha, e o mesmo fez a ministra dos Transportes, Elaine Chao, que é também mulher de Mitch McConnell, o líder republicano no Senado que repudiou as tentativas de subverter a eleição de Biden.
Ao darem esse passo, todos sabem que cairá sobre si o fogo e fúria de Trump. E isso pode ser decisivo para quem ainda tenha aspirações políticas no Partido Republicano.
“Os representantes republicanos – com algumas notáveis excepções, como o senador Mitt Romney ou a representante Liz Cheney – vivem tão aterrorizados com a hipótese de um tweet cruel do Presidente, ou, pior, de serem abandonados pelos fervorosos apoiantes de Trump, que não se atrevem a denunciar casos óbvios de negligência ou de violação da lei até ser tarde demais”, escreveu o Los Angeles Times nesta quinta-feira. Mesmo os protestos contra a violência de quarta-feira no Congresso “são uma bagatela, como advertir um pirómano depois de lhe entregar uma caixa de fósforos”, acrescentou o jornal californiano, concluindo que “este é o Partido Republicano que temos hoje, no final da presidência Trump”.
A Economist escrevia que “a opinião firme da maioria dos responsáveis republicanos” é que Trump continuará a dominar o partido. “Um caso de Síndrome de Estocolmo, talvez”, comentava a revista britânica. “As bases acham que Trump é um mártir”, dizia um republicano não identificado, convicto de que “nos próximos dois ou quatro anos” Trump conseguirá “f****” qualquer candidato numas primárias, “sem mexer um dedo”.
Com uma legião de fiéis que acreditam que a vitória do seu líder foi roubada, e que parte do establishment do partido foi conivente nesse “golpe”, Trump poderá promover candidatos nas primárias democráticas contra qualquer político de quem se queira vingar. Foi assim, com grande mobilização e uma agenda radical de ressentimento anti-sistema, que o movimento Tea Party conseguiu afastar figuras de proa do Partido Republicano, provocando uma radical viragem à direita.
Trump tem sido claro sobre a sua vontade de influenciar as primárias do seu partido, já nas eleições para o Congresso daqui a dois anos, e foi muito explícito ao prometer vingar-se de muitos republicanos que o contrariaram ao longo destes meses. Na quarta-feira, ao discursar perante a multidão que, pouco depois, invadiu o Capitólio, Trump afirmou que “daqui a um ano vamos começar a trabalhar no Congresso”, para escolher os candidatos de 2022. “Vamos livrar-nos desses congressistas fracos, que não prestam para nada, as Liz Cheneys deste mundo”, garantiu, referindo uma das congressistas que mais lhe tem feito frente (filha do ex-vice-presidente Dick Cheney).
A promessa de limpar os “traidores”, conta uma reportagem da Atlantic, foi saudada com grandes aplausos da multidão. Não se tratava apenas de adesão política ou programática, escreve o repórter, num texto que recomendo. Para muitos dos que se manifestavam a favor de Trump, e levaram à letra o seu incentivo para pressionarem os congressistas, Trump não é só um líder – é um salvador. Um deles disse ao jornalista da Atlantic que os EUA se estão a desagregar e que isso é um sinal do “Fim dos Tempos”. “Está tudo na Bíblia. Está tudo previsto. Donald Trump está na Bíblia.”
A análise da Economist constata que “os eleitores republicanos podem manter-se estranhamente leais ao seu líder derrotado”, e que mesmo que não o façam, “será difícil trazê-los de volta para a moderação”. “São uma nova base, dominada por homens brancos pouco qualificados, para quem a fúria do presidente contra o establishment liberal e conservador é uma expressão as suas próprias frustrações num país em mudança. Fazem com que o Tea Party pareça construtivo.”
Noutra análise, também escrita após os eventos de quarta-feira, o Financial Times aposta que “a saída de Trump no dia 20 não vai mudar as dinâmicas profundas do Partido Republicano. Ele e o seu gang de descontentes vão continuar a dominar o processo de nomeação de candidatos republicanos para todas as eleições.”
Os dois protagonistas mais visíveis nas manobras a favor de Trump na sessão do Senado na quarta-feira – os senadores Ted Cruz e Josh Hawley – têm pretensões presidenciais em 2024, e a sua atitude de cheerleaders do ainda presidente foi lida como uma forma de garantirem as boas graças tanto de Trump como dos seus apoiantes.
Cruz, que já foi o maior inimigo, e agora quer ser o maior defensor de Trump, é uma figura bem conhecida do universo republicano. Quanto a Hawley, aproveitou agora para fazer por isso – é um novato do Missouri, e foi o primeiro senador a contestar a validação de resultados. Foi, portanto, quem soltou o génio da lâmpada. Conseguiu ficar bem conhecido, mas talvez não como esperava. Um jornal do Kansas, a sua cidade, acusou-o de “ter sangue nas mãos”, por causa dos acontecimentos de dia 6. E o contrato que Hawley tinha com uma grande editora para a publicação de um livro foi revogado na quinta-feira. O senador já acusou a editora Simon & Schuster de censura e de seguir a agenda de “cancel culture” da esquerda. É provável que se torne no próximo herói do trumpismo.
Trump 2024, ou um sucedâneo?
Apesar destes contorcionismos para agradar ao trumpismo, nada garante a Cruz, a Hawley e a outros pretendentes à Casa Branca que o próprio Trump não tencione voltar a candidatar-se em 2024. Ou, pelo menos, fazer suspense suficiente para deixar o Partido Republicano em apneia e à mercê dos seus humores. A frase com que concluiu o vídeo da noite de quinta-feira, sobre o “caminho que ainda está a começar” indicia essa tentação.
Trump, que de História nada sabe, tornou-se um súbito especialista em Grover Cleveland, o único presidente que perdeu a reeleição mas, depois, conseguiu voltar a ser eleito para a Casa Branca. “Vamos voltar daqui a quatro anos, quero encontrar tudo como está”, disse a Senhora Cleveland ao pessoal da Casa Branca quando o marido perdeu a reeleição. E assim foi, conta o Washington Post. “Estamos a tentar fazer mais quatro anos”, disse Trump na festa de Natal na residência oficial. “Se não, vemo-nos daqui a quatro anos”…
E há mais Trumps à espreita – desde logo, Don Jr., o filho mais velho, que na manifestação desta semana proclamou à multidão: “Este já não é o Partido Republicano deles. Este é o Partido Republicano de Donald Trump”. E há Ivanka, a filha preferida – ou “Ivanka, a Inevitável”, como lhe chamam neste artigo.
Certo é que os eleitores republicanos continuam a gostar do molde Trump. No final do ano passado, uma sondagem do instituto Rasmussen indicava que 72% dos republicanos vêem Trump como o modelo a seguir pelo partido no futuro. A identificação com Trump é muito mais forte do que com qualquer outra figura do partido, embora cerca de metade dos inquiridos prefira alguém que não seja “o Donald”, mas siga o seu estilo.
O estudo foi feito antes da debacle do Capitólio – mas quer esse acontecimento reforce ou enfraqueça a identificação dos republicanos com Trump, o seu poder continuará. Isto, apesar de esta semana ter dado outra machadada no mito do Trump vencedor. A derrota dos republicanos na Geórgia, onde estavam em disputa dois lugares decisivos para o controlo do Senado, foi a cereja no topo do bolo para a celebração dos democratas e humilhação do trumpismo. A análise dos votos na Geórgia indicia o esgotamento do template Trump.
O balanço é implacável: quando Trump tomou posse, em janeiro de 2017, o Partido Republicano controlava a Casa Branca, o Senado e a Câmara dos Representantes. Quatro anos passados, perdeu as três frentes.
Em janeiro de 2017, no discurso de tomada de posse, Trump prometeu acabar com uma suposta “carnificina americana” que só ele e Steve Bannon pareciam ver. Hillary Clinton e George Bush ouviram o discurso sentados lado a lado no palco montado na escadaria do Capitólio. “Well, that was some weird shit!”, comentou Bush. Quatro anos depois, Trump garante que não irá à tomada de posse de Joe Biden. Mas a carnificina de que falava tornou-se realidade naquela mesma escadaria.
Como escreveu o US Today: “Parabéns, Sr. Trump. A nossa Brilhante Cidade na Colina é agora um aviltado símbolo da desgraça nacional. A carnificina americana que no início do seu mandato prometeu erradicar, no fim do seu mandato tornou-se uma realidade. O que fazer com o homem que trouxe tal ignomínia sobre o nosso país? Censura pelo Congresso? Certamente. Acusação criminal por incitar à violência e pressionar o secretário de Estado da Geórgia para virar os resultados das eleições no Estado? Talvez. Mas será que algum castigo estará realmente à altura do crime?”
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O fim estrondoso de uma viagem que “está só a começar”
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