Estes oito anos podem acabar por saber a pouco(chinho). Definitivamente, vai ser preciso fazer mais nos próximos oito. O economista Ricardo Santos analisa os resultados dos oito anos de António Costa.
Margaret Thatcher dizia ironicamente que o seu maior legado político foi Tony Blair e o seu New Labour (a conversão do Partido Trabalhista ao liberalismo económico). Será que um dia, António Costa poderá também dizer que o seu maior legado não foi derrubar o “muro” e a criação da geringonça, mas sim a conversão do PS (incluindo Pedro Nuno Santos) a algum rigor orçamental?
Pode-lhe deixar um brilhozinho nos olhos. Mas não sabe a pouco? De que servem as ditas contas certas quando os serviços públicos não correspondem a uma carga fiscal cada vez mais elevada? E não terá levado a sua alergia a reformas estruturais longe demais? De onde virá o crescimento no longo prazo, agora que a conjuntura parece estar a virar?
Tentarei responder a estas perguntas neste artigo, começando por colocar o legado económico de António Costa em perspetiva, comparando-o com o de outros governos.
Como ficarão os governos de António Costa na história?
Ainda nos anos 80, o governo do Bloco Central, deixou como legado, o ajustamento financeiro graças ao último programa com o FMI depois da transição para a democracia. Os governos de Cavaco Silva que o seguiram durante 10 anos continuaram o processo de reformas económicas, nomeadamente da abertura da economia a iniciativa privada e a famosa “política do betão” (com o que isso tinha de bom e de mau). Em 1995, seguiram-se os dois governos de António Guterres que nos deixaram a sua paixão pela educação. Durão Barroso e Santana Lopes não tiveram tempo para deixar grande marca a não ser alguma tentativa de ajustamento orçamental, seguida de instabilidade.
José Sócrates, apesar dos infelizes casos que conhecemos, começou o seu primeiro mandato por apostar nas energias renováveis (com um custo não negligenciável mas cujos retornos são agora visíveis) e no “choque tecnológico”. Passos Coelho geriu o resgate e garantiu a saída limpa, iniciou a recuperação das finanças publicas e do setor financeiro e implementou algumas reformas estruturais. Não implementou devidamente todas as inicialmente previstas mas deixou marcas principalmente no mercado de habitação, mercado de trabalho, e talvez a reforma mais importante dos últimos 30 anos: disse que não a Ricardo Salgado.
E dos três governos de António Costa, que apenas esteve menos tempo no Palácio de São Bento do que Cavaco Silva, o que fica? As “contas certas”, ou algo mais?
Sendo justo, os governos António Costa e as suas contas certas trouxeram algo bastante importante: credibilidade externa. Esta credibilidade foi muito centrada na melhoria das finanças públicas e parece pouco, mas olhando para trás não era algo óbvio à partida, e não foi óbvio nos primeiros meses de governo da geringonça, como é bastante visível na evolução das taxas de juro e dos spreads face a outros países da área do euro (Gráfico 1).
Gráfico 1 – Taxas de juro das obrigações do tesouro a 10 anos e diferencial face a outros países do euro (%)
Fonte: BCE e cálculos próprios
No primeiro ano de governo, e depois da primeira tentativa de apresentar um orçamento para 2016 com um défice acima do acordado com a troika, as taxas de juro subiram. Mas depois da apresentação de medidas compensatórias, e assim que ficou patente para os mercados e instituições internacionais que uma coisa era o orçamento apresentado aos parceiros de governo e outro era o executado (e que incluía cativações e sub execução do investimento público), as taxas de juro foram caindo, estando agora o diferencial face à Alemanha perto dos níveis mais baixos de sempre (mesmo antes da crise financeira de 2008), praticamente no mesmo nível da França e até abaixo das taxas de juro cobradas a Espanha.
E esta redução de custos tem não só um impacto direto nas finanças públicas mas também no custo de financiamento dos bancos, empresas e na própria atratividade de Portugal para o investimento externo. Resumidamente, passar de tentar deixar de ser comparado com a Grécia para ter uma perspectiva de risco semelhante à Franca não pode deixar de ser considerado positivo e uma mudança estrutural.
Ironicamente, mas algo infelizmente cada vez mais habitual nestes tempos de trincheiras, muitos dos que há 15 ou 10 anos no PS demonizavam os mercados ou os “banqueiros” são agora os primeiros a usar estes argumentos, e os que na altura os usavam para criticar o PS, relativizam a mensagem do mercado.
As contas estão certas, ou mais ou menos?
Esta melhoria de percepção de risco teve de facto por trás uma melhoria das finanças públicas. António Costa reduziu o défice e a dívida e, mais importante, tornou essas reduções prioridades para o PS pela primeira vez desde os governos de Mário Soares e do Bloco Central. A conjuntura, principalmente a política monetária ajudou. Mas sendo também justo, não estragar e gerir bem a conjuntura também requer qualidades, bastante raras e úteis nos tempos que correm, como se tem visto aliás, na maioria dos outros países).
Gráfico 2 – Dívida Pública (% do PIB)
Fonte: Ameco e cálculos próprios
No entanto, é importante notar que não só a melhoria das finanças públicas já vinha de trás, do governo de Passos Coelho, mas principalmente, foi também o seu governo a fazer o maior esforço de ajustamento orçamental. Entre 2011 e 2015, o saldo orçamental melhorou em sete pontos percentuais do PIB (passando de um défice de mais de 11% do PIB para perto de 4%), enquanto nos oito anos de governos de António Costa, essa melhoria foi menor, de cerca de cinco pontos. E quando se analisam métricas mais elaboradas como o saldo estrutural (ajustado do contributo do ciclo económico e de medidas extraordinárias) ou o saldo primário estrutural que exclui também o contributo dos juros, vemos que esta diferença é ainda mais acentuada. Ou seja, é mais fácil ter contas certas ( o que quer que isso signifique) quando se parte de excedentes primários como era o caso em 2015, do que quando se parte dos défices mais altos da democracia…
Gráfico 3 – Medidas do saldo orçamental (% do PIB)
Fonte: Ameco e cálculos próprios
E a isto acresce, e não sendo ingénuo, que é bastante evidente que esta mudança do PS não se deveu apenas a motivos económicos. O próprio António Costa disse por mais de uma vez que se apercebeu que não iria ganhar em 2015 quando foi abordado por uma senhora em Viseu que lhe terá dito algo como “vocês, no PS não sabem gerir as contas do Estado”.
E desta vez, o PS soube de facto gerir melhor do que no passado. No entanto, contas certas, esse conceito que nem existe na economia, não foram sinónimo de contas perfeitas. Foram conseguidas `< custa do aumento da carga fiscal (mesmo excluindo as contribuições para a Segurança social) e de uma contenção do investimento público (que só tem recuperado mais recentemente à boleia do PRR) e da qualidade dos serviços públicos. Contribuindo ambos para um menor crescimento futuro.
Gráfico 4 – Carga fiscal e investimento público (% do PIB)
Fonte: Ameco e cálculos próprios
E para além disso, se há legado que fica no Estado é o da deterioração dos serviços por ele prestados. A redução de alguns horários de trabalho de volta para as 35 horas, primeiro, e depois o aumento de salários, principalmente nos escalões mais baixos, resultaram num aumento do peso dos salários da função pública no PIB, sem qualquer melhoria de qualidade dos serviços prestados. Na realidade, este atirar de dinheiro para alguns problemas, enquanto outras carreiras permaneceram inalteradas levou sim à situação de quase esgotamento que vemos agora em alguns sectores.
Ou seja, as contas ficaram certas, ou com um saldo orçamental equilibrado, e a dívida desceu mais do que na maioria dos países europeus, mas não houve grande magia…
E o resto? Qual o legado no crescimento atual e futuro?
A economia cresceu, até mais do que a média europeia, e mais do que no passado, mas tal como na consolidação orcamental, a tendência já vinha de trás e beneficiou de um contexto externo bastante positivo. Ainda assim, há que reconhecer que apesar das criticas iniciais, os aumentos dos salários mais baixos na função pública e o aumento do salário mínimo não pressionaram a economia tanto quanto se temia. Deixam um pais com trabalhadores cada vez mais próximos da linha de pobreza, já que os salários dos escalões intermédios pouco subiram, mas não impediram o crescimento do emprego durante os últimos anos, como muitos (eu incluído) temiam.
E para além disso, há que reconhecer ainda mais dois pontos positivos: A estabilização do sistema financeiro e a boa gestão conjuntural durante a pandemia, o primeiro impacto da invasão da Ucrânia e o aumento da inflação.
No entanto, como tem sido sobejamente apontado, ainda que tenha crescido mais do que a média do euro e da UE, Portugal continua a ver os países do seu campeonato a crescer mais rápido (com a honrosa excepcão de Espanha, reconheça-se, mas nos últimos anos, ninguém se quer comparar com os nossos vizinhos)
Passando a uma análise mais detalhada dos números, nestes oito anos, Portugal apenas convergiu 1.1 pontos face à média da UE o que compara com 5.9 dos nossos colegas da convergência, que entretanto nos ultrapassaram este ano. E quando se argumenta que esta convergência ainda que pequena, é melhor do que a divergência verificada desde a entrada do euro, convém ter em conta que entre 2012 (o pior ano da recessão do programa de ajustamento) e 2015, Portugal até convergiu mais (1.8 pontos). Ou que entre 1995 e 1999, já depois dos anos dourados da entrada na EU, convergiu mais de 4 pontos!
Gráfico 5- PIB per capita * (% da média da União Europeia)
Fonte: Ameco e cálculos próprios *medido em paridade de poder de compra
Por outras palavras, o crescimento acabou por ser (muito) poucochinho. Em 2015, Portugal tinha o 17º PIB per capita mais elevado da UE. No final deste ano, terá o 19º – ou seja, se a união fosse como uma liga de futebol, estaríamos mais próximos de descer de divisão.
Claro que não se podia esperar do nada um crescimento de 4% ou mais, e passar de crescimentos médios de perto de 0% para próximo de 2% já não é mau. Mas, por outro lado, se com estas condições externas não foi possível crescer mais, o que dizer das perspectivas para os próximos anos? Será possível crescer mais sem reformas?
Reformas e crescimento futuro
A conhecida alergia a reformas estruturais por parte de António Costa fez com que não continuasse o processo iniciado durante o programa de ajustamento – as reformas das ordens profissionais que vinham a ser pedidas pela Comissão Europeia já desde 2013 foram retomadas agora apenas por delas estar dependente uma parte substancial do PRR – mas pelo menos, também neste caso, não reverteu a maioria das reformas, principalmente as do mercado de trabalho.
Mas era preciso mais, e houve tempo – e condições para mais. Portugal pouco ou nada reformou nestes anos, como é reconhecido da esquerda à direita. Desde os anúncios repetidos varias vezes sobre investimentos na ferrovia, passando pelas medidas da habitação que não contribuem em nada para aumentar a oferta – a principal prioridade dos governos do Dr Costa passou por ir gerindo a conjuntura. Como já disse em cima, não mexer e não estragar também são atributos, mas para crescer mais, é preciso também fazer mais.
E acaba por ser tristemente irónico ver que o primeiro ministro que se dizia alérgico a reformas estruturais e que Portugal não precisava de grandes mudanças para atrair investimento, acabe por cair vítima precisamente do maior entrave ao investimento e ao crescimento: burocracia e pesados procedimentos de licenciamentos do Estado.
Nestes últimos oito anos, mesmo com mais crescimento, o investimento (público e privado) demorou a acelerar. E mesmo tendo recuperado nos últimos anos, vemos que o stock de capital por empregado não só continuou a descer, como o fez numa altura em que estava a subir na média da UE. E como sem capital nem melhoria dos custos de contexto (como as condições de investimento) não há mais crescimento – de onde virá ele então?
Gráfico 6 – Stock de capital por empregado
Fonte: Ameco e cálculos próprios
Se compararmos estes últimos oito anos com o último período de crescimento acima da média europeia (o final dos anos 90), vemos que tal como nessa altura, o crescimento não se traduziu em aumentos sustentados de investimento e a produtividade até tem vindo a cair. Ou seja, tal como na altura estar-se-á a chegar ao limite.
E quando se recua ainda mais no tempo, e se analisa a época de maior convergência real: O período entre 1987 e 1996, vê-se que na altura, não foram só os fundos comunitários e as obras públicas a sustentar esta convergência. Foi principalmente o impacto de muitas reformas que liberalizaram a economia, e reforçaram as instituições, e do investimento direto estrangeiro: destacando-se a Auto Europa e outros investimentos na fileira automóvel. Noutra terrível ironia, dias antes das buscas da ‘Operação Influencer’, João Galamba orgulhava-se no encerramento do debate do Orçamento do Estado para 2024 de que o investimento do Centro de Dados de Sines iria ser a grande bandeira deste Governo e seria ainda maior do que a Autoeuropa – a piada está feita.
Portanto, a conclusão é (infelizmente) relativamente simples de tirar: Por muita alergia (e dores de cabeça) que as reformas causem, sem elas não há crescimento futuro. Pode-se crescer e convergir alguma coisa, mas nunca se cresce o suficiente para deixar de ser pobre no contexto europeu, e pior ainda, é também certo que mesmo esse crescimento se irá reduzir no futuro.
E que legado fica então para quem o sucede?
Voltando às letras de Sérgio Godinho, as contas certas e alguma convergência podem ter de facto deixado um brilhozinho nos olhos de António Costa. A conversão da maioria do seu partido à importância de reduzir a dívida podem até saber a muito. Mas, na verdade, quando temos em conta o estado do Estado em Portugal, e que se irá crescer menos no futuro, vemos que estes oito anos podem acabar por saber a pouco(chinho). Definitivamente, vai ser preciso fazer mais nos próximos oito.
No fundo, dá vontade de terminar a citar Jorge Palma, outro cantor de eleição de António Costa. E perguntar: u
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