Até hoje Portugal tem o menor número de fogos e área ardida desde 2014. Mas estará preparado para combater os fogos? Saiba o que dizem os especialistas ouvidos pelo ECO.
Com o país a entrar na época mais crítica dos incêndios florestais, estamos preparados para o combate aos fogos, com o dispositivo operacional adequado e um território mais resiliente? Os especialistas consultados pelo ECO/Local Online alertam que ainda falta limar várias arestas, desde uma maior aposta na prevenção e na profissionalização até ao ordenamento da floresta. Por enquanto, os ventos parecem soprar a favor: os dados oficiais mostram que 2024 tem o menor número de incêndios e de área ardida da última década.
Desde 1 de julho e até 30 de setembro deste ano, o país está na fase Delta, considerada a mais crítica ao nível de fogos. Segundo o Ministério da Administração Interna, o Dispositivo Especial de Combate a Incêndios Rurais (DECIR) de 2024 conta com 14.155 operacionais, 3.173 veículos terrestres e 74 meios aéreos contratados — mais 275, 116 e dois do que em igual período de 2023, respetivamente.
A somar a este DECIR, há mais 20.000 elementos dos bombeiros adicionais “no caso de acidente grave ou catástrofe”. Ao todo, o dispositivo teve um custo de 55 milhões de euros, calcula o gabinete da ministra Margarida Blasco em declarações ao ECO/Local Online.
Sete anos depois, o país não esquece os fatídicos incêndios de junho e outubro de 2017, em Pedrógão Grande e na região Centro, que mataram uma centena de pessoas. Mas o Ministério da Administração Interna afiança que foi feita “toda a preparação possível” para o país responder no imediato. “Mantemo-nos em estado de prontidão e preparação adequados e melhorados face aos anos anteriores“, assegura a tutela, garantindo que “todas as autoridades e agentes de Proteção Civil estão sincronizadas sobre a sua missão de salvar vidas e proteger património”.
O ano de 2024 apresenta, até ao momento, o valor mais reduzido em número de incêndios e de área ardida desde 2014.
Desde 2018 que há um “maior investimento na prevenção” e uma “maior eficácia do combate”, assegura o gabinete de Margarida Blasco ao ECO/Local Online. Aliás, contabiliza, “comparando os valores do ano de 2024 com o histórico dos 10 anos anteriores, registaram-se menos 58% de incêndios rurais e menos 87% de área ardida relativamente à média anual deste período. Trata-se da constatação de uma maior aposta na formação e de uma melhoria na coordenação que se traduz num correspondente aumento da eficácia no combate”, sustenta a tutela.
O gabinete da ministra Margarida Blasco assinala, por isso, que “o ano de 2024 apresenta, até ao momento, o valor mais reduzido em número de incêndios e de área ardida desde 2014. Ressalva, contudo, que estes “dados referentes a 2024 são ainda provisórios”.
De acordo com o Instituto da Conservação da Natureza e Florestas (ICNF), entre 1 de janeiro e 12 de agosto de 2024, ocorreram 3.351 incêndios rurais que resultaram em 7.698 hectares de área ardida.
Contas feitas, tudo aponta para que seja um bom ano com uma reduzida área ardida. “Desde 2014 que não havia uma área queimada tão baixa. Em 2017, nesta altura já tínhamos 146.000 hectares queimados e ainda iriam ocorrer os [graves] incêndios de outubro” que matariam dezenas de pessoas, contabiliza Joaquim Sande Silva, professor da Escola Superior Agrária de Coimbra (ESAC) em declarações ao ECO/Local Online.
Ainda assim, não há garantias de que a situação não se altere, acautela o especialista na área da ecologia do fogo, que foi membro da Comissão Técnica Independente (constituída para analisar os incêndios de Pedrógão Grande).
Desde 2014 que não havia uma área queimada tão baixa. Em 2017, nesta altura já tínhamos 146.000 hectares queimados e ainda iriam ocorrer os [graves] incêndios de outubro.
Também Paulo Fernandes, professor de engenharia florestal na Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro (UTAD), prefere jogar à defesa, porque há muitos fatores conjunturais em cima da mesa. “Não se pode já cantar vitória porque se regista uma área ardida mais reduzida”. Mesmo assim, o também engenheiro florestal crê que, “à partida, as perspetivas são boas [para este ano]. Na pior das hipóteses, será um ano médio, mas é muito provável que seja bastante abaixo da média”.
Esta situação deve-se “essencialmente à combinação da meteorologia — vento, humidade do ar e chuva — que não tem sido tão extrema, com uma melhor capacidade de combate e um número muito reduzido de fogos [que têm deflagrado], quando comparado com o passado”, explana o engenheiro florestal.
A vegetação viva está muito carregada de água e isso vai mitigando bastante. Portanto, os fogos que vão ocorrendo, mesmo em dias quentes e secos e após uma sequência de dias quentes, têm tido um comportamento bastante manso.
Paulo Fernandes sublinha, por isso, que “este é um ano muito atípico e especial, porque choveu muitíssimo nas regiões que ardem mais frequentemente — Norte e Centro. Por exemplo, em fevereiro em Vila Real já tinha chovido a média de toda a precipitação do ano inteiro até setembro”.
Apesar de as previsões apontarem para um mês de agosto muito quente e, como tal, propício a fogos, estes podem ser menos violentos devido às intensas chuvas que se fizeram sentir no país.
O professor da UTAD explica que “a vegetação viva está muito carregada de água e isso vai mitigando bastante. “Os maiores fogos em Portugal este ano atingiram os 2.180 hectares em Vimioso e os 470 hectares em Bragança”, destaca.
É preciso ordenamento e gestão florestal
Os especialistas aplaudem, assim, a conquista de um melhor desempenho do sistema de combate a incêndios e consequente redução do número de fogos. Mas avisam que ainda falta limar algumas arestas. O investigador Paulo Fernandes aponta a necessidade de “ordenamento e gestão florestal, de intervir no território com escala, ou seja, reduzir a quantidade da vegetação, de biomassa acumulada”.
O professor de engenharia florestal na UTAD defende um “sistema mais equilibrado com um investimento paralelo no combate e na prevenção para evitar anos catastróficos no futuro”. Além da implementação de “um sistema de combate a incêndios com meios mais especializados, ou seja, pessoas que durante todo o ano só trabalham na prevenção e no combate aos fogos rurais, que é muito o modelo que vemos nos países como Espanha”.
Entre as áreas do país mais problemáticas, elenca o engenheiro florestal, está a região interior dos distritos de Leiria, Santarém, Castelo Branco, Viseu e Guarda e a serra algarvia. “A área mais preocupante é o centro interior do país e a serra algarvia pela extensão florestal contínua, sendo a zona que tem maior área ardida”, alerta. Já o maior número de fogos ocorre na “zona mais urbana, povoada, da região do Porto, Braga, Amarante, ou seja, num raio de 50 quilómetros do Porto para Norte e para Sul”.
Reconstituir a floresta nativa de folhosas nalgumas zonas estratégicas
Já o docente Joaquim Sande Silva, da ESAC, defende, por sua vez, que as faixas de gestão de combustível têm sido um investimento desnecessário, por não travarem os incêndios, apoiado nos resultados preliminares do projeto Induforestfire que coordenou juntamente com o investigador João Paulo Prodigues. Ao invés desta estratégia, o caminho passa pela reconversão da floresta para folhosas.
“Anda-se a gastar a recursos públicos e privados na construção de faixas que parecem, para alguns, ser a panaceia para resolver o problema dos incêndios, quando deveríamos optar por soluções mais sustentáveis, nomeadamente indo de encontro àquilo que que é uma das conclusões do projeto: reconstituir a floresta nativa de folhosas em algumas zonas estratégicas”. Desta forma, explana, “criavam-se barreiras de avanço ao fogo e, ao mesmo tempo, zelava-se pela biodiversidade e pela conservação do carbono“.
Anda-se a gastar a recursos públicos e privados na construção de faixas que parecem, para alguns, ser a panaceia para resolver o problema dos incêndios, quando deveríamos optar por soluções mais sustentáveis.
“É nosso objetivo com este estudo saber o que é que andamos a fazer aos dinheiros públicos e porque é que andamos a obrigar os proprietários a derrubar árvores em nome da gestão de prevenção de incêndios”, salienta Joaquim Sande Silva. Aliás, reforça, “o estudo conclui que não existe fundamento científico para fazer esse tipo de gestão“.
Por isso mesmo, o especialista na área da ecologia do fogo sugere a alteração da legislação de 2018, “produzida a quente no rescaldo dos grandes incêndios de 2017 (Pedrógão) e feita sem base científica”.
Mais crítico em relação ao combate aos fogos, o investigador considera que “muito pouca coisa mudou desde a 2017 na medida em que o primeiro relatório da primeira comissão técnica independente preconizava uma mudança profunda no setor do combate a incêndios em Portugal, nomeadamente tornando as pessoas mais especializadas, qualificadas”. O investigador da ESAC, que esteve nessa comissão técnica independente, diz que falta igualmente “juntar a prevenção ao combate, ou seja, quem faz prevenção de incêndios deveria fazer combate e vice-versa”.
Para o docente da ESAC, a “única coisa que se fez foi criar a Agência para a Gestão Integrada de Fogos Rurais (AGIR), que tem tentado mudar o cenário do país, nomeadamente a nível da questão da qualificação, mas tem obtido muito poucos resultados até agora“. Portanto, assinala, “já passaram sete anos desde [o incêndio de] Pedrógão Grande e não conseguimos alterar o paradigma da qualificação dos agentes que fazem combate a incêndios em Portugal; o que é lamentável”.
Ainda assim, refere, “o país está mais bem preparado ao nível da proteção civil, porque existem programas de salvaguarda das populações em caso de incêndio”, como o programa aldeia segura. Este ano o Governo aumentou o número de Aldeias Seguras — mais de 30 aglomerados.
Falta apostar na prevenção e na formação
Já o professor António Bento Gonçalves, do departamento de Geografia da Universidade do Minho e especialista em geografia dos incêndios florestais, considera que “nunca tivemos tão bem preparados para combater incêndios florestais” como agora. “Em relação aos anos anteriores foi feito um esforço e basta ver a qualificação de alguns dos nossos principais responsáveis técnicos e operacionais, e os corpos de bombeiros foram melhorados”, diz. Aliás, reitera, “estamos na fase delta até 30 de setembro e todo o dispositivo está muito bem pensado e preparado em termos muitas pessoas e meios envolvidos”.
Ainda assim, aponta, falta apostar mais na prevenção e na educação desde o ensino básico. Além da formação no sentido de aproveitar o conhecimento gerado nas universidades para as decisões operacionais ou “incorporar as novas tecnologias nas decisões operacionais e nos operacionais”. Aliás, reitera António Bento Gonçalves, “existe uma série de ferramentas e de novas tecnologias que podem ajudar em tempo real no combate ao incêndio para seja mais eficaz”, como é o caso das “diferentes câmaras que um drone pode ter e da transmissão online dos dados com a deteção remota com a utilização de satélite”.
Existe uma série de ferramentas e de novas tecnologias que podem ajudar em tempo real no combate ao incêndio para seja mais eficaz, como é o caso das diferentes câmaras que um drone pode ter e da transmissão online dos dados com a deteção remota com a utilização de satélite.
O Governo também deve apostar na educação formal com um plano nacional de prevenção de incêndios florestais desde o ensino básico. Até porque, defende o docente da Universidade do Minho, urge mudar comportamentos tendo em conta que “continuamos com um número demasiado elevado de ignições que dispersam os meios de combate que não permitem depois concentrá-los nas ocorrências mais problemáticas”. Ainda assim, nota, “nos últimos anos melhorou-se efetivamente — as estatísticas são reveladoras desse facto”.
Mesmo assim, o professor da Universidade do Minho considera que “há muito a fazer para evitar catástrofes, mas se se repetirem as condições meteorológicas tão adversas como as de 2017, voltaremos, quase de certeza num futuro, ter incêndios de grande intensidade, com uma velocidade de propagação muito elevada”.
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