Produtores de vinho enfrentam “tempestade perfeita” antes das vindimas

Com o consumo a encolher e os stocks a engordarem pressionados pela "loucura" na importação a granel, setor do vinho enfrenta "crise sem precedentes". Viticultores ameaçam deixar as uvas por vindimar.

A vindima está à porta e o setor do vinho prepara-se para enfrentar uma “crise sem precedentes”. Excesso de stock, aumento dos custos, baixa remuneração aos viticultores, desequilibro entre a oferta e a procura, a “loucura” do vinho importado e as alterações dos padrões de consumo são encarados como indícios de uma “tempestade perfeita”.

Após a quase estagnação das vendas ao exterior nos últimos dois anos ajudar a avolumar excedentes que o ministro da Agricultura, José Manuel Fernandes, já classificou como “um problema brutal”, o setor aponta um leque de soluções que implica aumentar as exportações, apostar em segmentos de maior valor para conseguir também remunerar melhor toda a cadeia ou colocar um travão à importação, investindo na fiscalização.

O administrador da Quinta do Crasto, Tomás Roquete, recorda, a propósito da questão do excedente de stocks, que “há uma falta de controlo da origem das uvas e pouco se fez para evitar esta situação”. O gestor da quinta do Douro, que viu as exportações encolher o peso relativo para 45% nas vendas globais, considera que esta crise que o setor está a enfrentar “era uma morte anunciada”.

Tomás Roquette, administrador da Quinta do Crasto

“Vários especialistas consideram que vem aí uma crise vitivinícola sem precedentes. Já assisti a 42 vindimas e esta é mais fraturante”, concorda o presidente da Associação Nacional dos Comerciantes e Exportadores de Vinhos e Bebidas Espirituosas (ANCEVE). Em declarações ao ECO, Paulo Amorim arrisca mesmo que esta vindima “será recordada durante muito tempo por maus motivos”.

A região do Douro, que é maior produtora de vinho em Portugal, vai perder 14 mil pipas de vinho do Porto na vindima de 2024. A Associação dos Viticultores e da Agricultura Familiar Douriense (Avadouriense) considera que este “corte brutal” face à campanha de 2023 é “inaceitável” – e junta-se à redução de 12 mil pipas já realizado no ano passado, face a 2022 –, traduzindo-se numa perda acumulada de cerca de 26 milhões de euros, calcula.

A Confederação Nacional da Agricultura (CNA) e a Avadouriense manifestaram-se esta semana na Régua para tentar reverter a decisão e exigir ao Governo medidas concretas para travar a perda de rendimento dos agricultores. Victor Herdeiro, presidente da Avadouriense, fala em “mais uma forte machadada no rendimento quase insustentável dos pequenos e médios viticultores da Região Demarcada do Douro” e que pode ser “o princípio de uma catástrofe social na região”. Antevê mesmo que “vai obrigar muitos viticultores a desistir e a deixar os terrenos a monte”.

[Redução do benefício] é mais uma forte machadada no rendimento quase insustentável dos pequenos e médios viticultores do Douro e pode ser o princípio de uma catástrofe social na região.

Victor Herdeiro

Presidente da Associação dos Viticultores e da Agricultura Familiar Douriense (Avadouriense)

A somar aos elevados custos de produção, surgem as dificuldades de escoamento da produção, com os grandes operadores da transformação e do comércio a ameaçarem não comprar as uvas da vindima de 2024. O dirigente associativo garante que é “incomportável” produzir e avança que “muitos viticultores vão deixar as uvas nas videiras”.

“Ainda na semana passada tive conhecimento de um viticultor da região da Sabrosa, com dez hectares de vinha, que recebeu uma carta de uma empresa a dizer que não fica com uvas nenhumas”, denuncia Victor Herdeiro, culpando o “monopólio” das grandes empresas que têm dezenas de quintas e “já não precisam dos pequenos e médios viticultores”. “Quem manda na região são as grandes empresas”, lamenta o presidente da Avadouriense.

Victor Herdeiro realça ainda que, não tendo ainda sido realizadas as eleições para a Casa do Douro, que voltou a ser pública e de inscrição obrigatória, os direitos e interesses dos pequenos e médios produtores não estão a ser representados ou assegurados, nomeadamente a defesa de rendimentos dignos”. “Os viticultores entregam as uvas e não sabem se vão receber, quando vão receber e a que preços vão receber. Isto é uma desgraça”, acrescenta.

Bernardo Gouvêa, presidente do Instituto da Vinha e do Vinho (IVV) contrapõe que “os viticultores que estruturam a sua atividade detêm normalmente contratos ou relações comerciais ou societárias de longo prazo que os protegem, em ciclos menos propícios ao escoamento”.

Apesar de este ano não precisar tanto, a Sogrape, que compra uvas e vinho a cerca de 2.100 viticultores portugueses, “compromete-se a comprar a mesma quantidade este ano”. Fernando da Cunha Guedes garante ao ECO que “não vai dispensar nenhum fornecedor”. “Queremos preservar a nossa relação histórica e de parceira com os nossos lavradores, com a nossa viticultura. Sempre o fizemos e acreditamos que isso deve continuar a ser feito. Uma parceria é isso mesmo: nos bons e nos maus momentos”, justifica.

Provavelmente será um ano muito difícil para os lavradores, sobretudo no Douro, que não vao ter onde entregar as suas uvas. Nós, Sogrape, já dissemos que não vamos deixar nenhum lavrador ficar mal. Não vamos dispensar nenhum fornecedor de uvas.

Fernando da Cunha Guedes

CEO da Sogrape

Embora compre “poucas uvas”, por ter 220 hectares de vinha própria, o Crasto vai comprar este ano menos 300 toneladas. Alega, porém, que não é pelo excesso de stocks, mas por ter perdido um centro de vinificação extra e “não ter onde vinificar as uvas”. Tomás Roquette, líder desta empresa que produz 1,3 milhões de garrafas ao ano, emprega cem pessoas e fatura 10,5 milhões de euros, prevê que ainda este ano ou após esta vindima, os viticultores “abandonem as vinhas”. “Vai ser um ano realmente difícil, principalmente para a lavoura”, lamenta.

Uma opinião partilhada por Fernando da Cunha Guedes, CEO da Sogrape, a maior empresa portuguesa do setor: “será um ano muito difícil para os lavradores, sobretudo no Douro, que não vão ter onde entregar as suas uvas”. No caso do Alentejo, o presidente da Comissão Vitivinícola Regional Alentejana (CVRA), Francisco Mateus, confirmou ao ECO que “nos últimos três anos já houve produtores que não conseguiram vender as uvas e que avançaram para produzir os vinhos próprios”.

Produtores pedem “controlo” ao vinho importado

Os produtores portugueses responsabilizam a falta de controlo no destino comercial que é dado ao vinho importado a granel, sobretudo de Espanha, pela atual “bolha de acumulação de stocks” que está a afetar o setor. Todos os dias, o país está a importar vinho a um ritmo equivalente a quase um milhão de garrafas, o que é descrito pelo presidente da Associação Nacional das Denominações de Origem Vitivinícolas (ANDOVI) e também da Comissão Vitivinícola da Região de Lisboa, Francisco Toscano Rico, como “uma loucura de vinho” a entrar no mercado nacional.

Comparando a média dos últimos cinco anos (2019-2023) com a do período anterior (2014-2018), os dados oficiais publicados pelo IVV mostram que as importações cresceram ao ritmo médio de 83 milhões de litros por ano. Mas se nos primeiros anos deste último ciclo o crescimento das exportações fez com que a acumulação de stocks não atingisse níveis críticos, a quase estagnação das vendas portuguesas ao exterior colocaram o problema a descoberto.

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“Esta entrada de vinho espanhol a granel, a baixo preço, está a provocar uma revolta enorme em pequenos produtores porque desvirtua completamente o mercado”, constata o presidente da Associação Nacional dos Comerciantes e Exportadores de Vinhos e Bebidas Espirituosas (ANCEVE). “Não podemos fechar fronteiras, mas a fiscalização tem que ser mais eficaz”, apela Paulo Amorim.

Francisco Mateus, presidente da Comissão Vitivinícola Regional Alentejana, corrobora a ideia e afirma que o “desequilíbrio vem essencialmente das importações que estão a ser usadas para responder à procura de preços mais baixos“. O presidente executivo da Sogrape contabiliza mesmo que se “a importação de vinhos fosse eliminada haveria um maior equilíbrio”.

Esta entrada de vinho espanhol a granel, a baixo preço, está a provocar uma revolta enorme em pequenos produtores porque desvirtua completamente o mercado.

Paulo Amorim

Presidente da Associação Nacional dos Comerciantes e Exportadores de Vinhos e Bebidas Espirituosas

Apesar de Portugal deter a 9ª maior área de vinha – 7,2 milhões de hectares em 2023, menos 11 mil do que no ano anterior –, de ser o 10º produtor mundial de vinho (7,5 milhões de hectolitros no ano passado) e de os consumidores locais até serem fiéis às marcas nacionais, cerca de três quartos do vinho importado pelo país é a granel. É uma das percentagens mais elevadas de compras neste formato a nível mundial, de acordo com as estatísticas publicadas pela OIV – Organização Internacional da Vinha e do Vinho.

O presidente do Instituto da Vinha e do Vinho (IVV) garante ao ECO que o controlo antifraude por parte das entidades fiscalizadoras e organismos de certificação dos vinhos com Denominação de Origem (DOP) e Indicação Geográfica protegidas (IGP) “está a ser reforçado, de forma a incrementar a presença e a diferenciação clara, junto do mercado, entre vinhos com origem certificada e vinhos sem origem certificada, sejam nacionais ou com origem em outros países europeus”.

Destilação é solução de crise

A Comissão Europeia anunciou o mês passado a atribuição de 15 milhões de euros para ajudar a resolver a crise de excedente de vinho em Portugal e reequilibrar o mercado, mas o Governo considera que a chamada destilação de crise “é um último recurso ou um recurso excecional”, prometendo antes “reforçar brutalmente” a fiscalização da entrada de vinho ilegal no país. A esta verba, no caso do Douro, são adicionados 3,5 milhões provenientes dos saldos de gerência do Instituto dos Vinhos do Douro e Porto (IVDP). Verbas que foram anteriormente pagas pelos próprios produtores e que deviam ser usadas na promoção.

É inaceitável que se tenha andado a ‘assobiar para o ar’ e que se tenha feito de conta que não existia problema nenhum, quando se estava a fazer destilações todos os anos e a deixar acumular o stock.

Ministro da Agricultura

José Manuel Fernandes

O ministro da Agricultura, José Manuel Fernandes, assegurou que a verba vai permitir diminuir os stocks nacionais de vinho, mas “a destilação é um paliativo”. “É inaceitável que se tenha andado a ‘assobiar para o ar’ e que se tenha feito de conta que não existia problema nenhum, quando se estava a fazer destilações todos os anos e a deixar acumular o stock”, criticou o governante, em declarações citadas pela Lusa.

Por não ter havido “proatividade” é que se chegou até “um ponto [em que] não há onde meter o vinho”, sendo necessária uma nova destilação de crise, reforçou o ministro que tutela as pastas da Agricultura e Pescas. José Manuel Fernandes avisou que esta destilação “será a última porque é uma medida excecional [e] não pode existir todos os anos”.

O montante do apoio é de 42 cêntimos por litro, o que corresponde a 80% do menor preço estimado, tendo por base os dados disponíveis ao nível da produção na campanha de comercialização de 2023/2024. No caso do vinho produzido no Douro, ao valor de 42 cêntimos acresce um pagamento adicional de 33 cêntimos por litro, num apoio total de 75 cêntimos por litro.

Esses 15 milhões não deviam ser destinados a apoiar a destilação, mas sim a apoiar diretamente os pequenos e médios viticultores que são quem sofre com os cortes“, lamenta o presidente da Associação dos Viticultores e da Agricultura Familiar Douriense.

Com 15 milhões de euros serão destilados cerca de 35 milhões de litros (…) Portugal podia ter acrescentado mais 30 milhões de euros, mas não o fez. Acredito que seria mais eficaz fazer um esforço para equilibrar a situação de uma só vez.

Francisco Mateus

Presidente da Comissão Vitivinícola Regional Alentejana (CVRA)

A Sogrape, que perdeu mais de metade dos lucros em 2023 e é dona das marcas Mateus Rosé, Barca Velha, Esteva, Sandeman ou Porto Ferreira, não vê a destilação como uma medida estrutural para resolver o problema, mas como uma “medida de crise”. Para Fernando da Cunha Guedes, “não faz sentido, no fundo, estarmos a construir um ativo para depois o destruir”.

Francisco Mateus, presidente da CVRA, fala numa medida que “tem um efeito mais rápido e visível para o setor”, mas é “insuficiente”. “Com 15 milhões de euros serão destilados cerca de 35 milhões de litros (…) Portugal podia ter acrescentado mais 30 milhões de euros, mas não o fez. Acredito que seria mais eficaz fazer um esforço para equilibrar a situação de uma só vez”, destaca o porta-voz dos vinhos alentejanos.

Já o presidente do IVV realça que o apoio de 15 milhões é “um contributo fundamental para colmatar a situação presente de excesso de vinhos tintos DOP e IGP”. Embora concorde que a solução para reequilibrar o mercado passará pela “abertura de novos canais e a adequação da oferta a novos segmentos de procura”.

Na próxima vindima, a produção de vinho deve baixar 8% em relação à campanha anterior, atingindo um volume de 6,9 milhões de hectolitros, de acordo com as estimativas do instituto público. Dez das 14 regiões vitivinícolas portuguesas vão diminuir a colheita na campanha 2024/2025, devendo as maiores descidas em volume, num total superior a 350 mil hectolitros, ser registadas em Lisboa (-15%) e no Alentejo (-10%), com o Douro a cair também 5%.

Fonte: IVV

Destruir a vinha pode ser uma solução?

Com o consumo a retrair e os armazéns cheios de vinho, alguns operadores do setor admitem que destruir parte das vinhas pode acabar por ser uma “solução”. O administrador da Quinta do Crasto, localizada no Douro, assume que seria uma forma de “equilibrar a produção em relação à procura e, com isto, valorizar o vinho”.

Para o CEO da Sogrape, multinacional sediada em Vila Nova de Gaia, que detém mais de 1.600 hectares de vinha distribuídos por Portugal, Espanha, Chile, Argentina e Nova Zelândia, não adianta arrancar área de vinha e “continuar a fazer vinhos que não são rentáveis”. “Não é o arrancar por arrancar (…) devemos continuar a investir na reestruturação da vinha em Portugal, em torná-la mais eficiente e, como tal, mais produtiva e rentável para o viticultor“, afirma Fernando da Cunha Guedes.

Fernando da Cunha Guedes, CEO da Sogrape, na Quinta de Azevedo. Pedro Granadeiro/ECO

Consumo retrai e vira-se para vinhos mais baratos

Segundo dados do presidente da ViniPortugal, Frederico Falcão, houve uma redução de 50 milhões de litros no consumo nacional no ano passado. Paulo Amorim, presidente da Associação Nacional dos Comerciantes e Exportadores de Vinhos e Bebidas Espirituosas, não tem dúvidas que estamos perante uma “alteração de consumo”, com maior preferência por outras bebidas que estão na moda”.

Bernardo Gouvêa, presidente do Instituto da Vinha e do Vinho (IVV), nota que o setor enfrenta um “novo ciclo de mercado, com uma tendência global de retração no consumo, particularmente em segmentos de preço da gama média de vinhos com Denominação de Origem (DOP) e Indicação Geográfica protegidas (IGP)”.

Bernardo Gouvêa, presidente do Instituto da Vinha e do Vinho (IVV)

O líder do IVV sugere que os operadores apostem em “estratégias de marketing mais criativas” com particular atenção para os segmentos que neste momento consomem outro tipo de produtos, em detrimento do vinho, sobretudo as gerações mais novas. Por outro lado, o presidente da Comissão Vitivinícola Regional Alentejana prefere salientar que “os consumidores [continuam a] comprar vinho, mas procuram preços mais baixos”.

“Todas as regiões do país estão confrontadas com excessos de stock, e o Douro não foge à regra. Julgo que temos de deixar o mercado ajustar-se a ele próprio e investir mais na fiscalização. E importa também combater narrativas que confundem alcoolismo com consumo moderado de vinho”, remata João Portugal Ramos, “pai dos vinhos do Alentejo” que entrou no top 10 de vendas no Douro.

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