Trump quer passar resultados das cotadas de trimestrais para semestrais. Como tem sido a experiência portuguesa?

Donald Trump quer que a SEC permita que as cotadas só apresentem resultados de seis em seis meses. Por cá, essa hipótese existe há perto de dez anos, mas sem grande impacto.

 

EPA/BONNIE CASH / POOLEPA/BONNIE CASH / POOL

“Alguma vez ouviram dizer que a China tem uma visão de 50 a 100 anos para a gestão de uma empresa, ao passo que nós gerimos as nossas numa base trimestral???? Não é bom!!!”. Foi com esta frase, publicada na rede social Truth Social, que Donald Trump tornou público que estava a voltar à carga com uma velha ideia, que havia tentado implementar, sem sucesso, aquando da sua primeira passagem pela Casa Branca. Trump quer acabar com a obrigação de as cotadas norte-americanas apresentarem resultados todos os trimestres. E parece que, desta vez, isso poderá mesmo acontecer.

Para Trump, o tema tem a ver com custos, por um lado, e com um foco mais de médio prazo, por outro. Esta mudança, que passaria a obrigar as empresas a prestar contas pelo menos duas vezes por ano (face às quatro atualmente), “vai poupar dinheiro e permitirá aos gestores focarem-me em gerir as suas empresas como deve ser”, justificou o presidente norte-americano.

E se o responsável vê esta mexida sobretudo como mais uma medida no seu esforço de desregulamentação e de corte de burocracia, tem recebido alguns apoios até de pessoas que normalmente estão no campo oposto ao de Trump, e que defendem que tal poderia incentivar uma visão de mais médio prazo nas empresas, e uma menor obsessão com metas de curtíssimo prazo, que por vezes mexem muito com o mercado.

Nas mãos da SEC

No primeiro mandato de Trump, e após sugestão deste, a Securities and Exchange Comission (SEC) – o regulador do mercado de capitais norte-americano – iniciou um processo formal de consulta para avaliar se avançava ou não com essa alteração, mas no fim do processo optou por deixar tudo na mesma. Agora, o panorama parece ser completamente diferente, com a liderança da SEC a difundir posições extremamente coincidentes com as de Donald Trump.

Isso mesmo se pode retirar do artigo de opinião que Paul Watkins, presidente da SEC, publicou recentemente no Financial Times, no qual mostrou vontade em acelerar o processo e afirmou que tal mexida “não é uma retirada de transparência”.

“É altura de a SEC tirar o seu dedo da balança e permitir que seja o mercado a ditar qual é a frequência ideal de reporte baseada em fatores como o setor das empresas, dimensão e expectativas dos investidores”, defende Watkins.

Numa série de frases que poderiam ser proferidas por Trump, o líder da SEC atira que “o governo deve fornecer a dose mínima efetiva de regulação necessária para proteger os investidores e ao mesmo tempo permitir que os negócios floresçam”. E não resistiu a atacar a Europa, com a sua regulação apertada e foco nos relatórios de sustentabilidade, que Watkins considera “uma moda política e objetivos distorcidos”.

Se “a Europa quer promover os seus mercados de capitais ao atrair mais listagens e investimento, devia focar-se em reduzir fardos desnecessários de reporte. Da nossa parte, estamos comprometidos em assegurar que, nos Estados Unidos da América, a SEC prioriza o bem-estar dos investidores, acima dos desejos de ideólogos”, acrescenta.

É altura de a SEC tirar o seu dedo da balança e permitir que seja o mercado a ditar qual é a frequência ideal de reporte baseada em fatores como o setor das empresas, dimensão e expetativas dos investidores

Paul Watkins

Chairman da Securities and Exchange Comission

A experiência portuguesa

Por cá, a lei já permite que as cotadas só apresentem contas de seis em seis meses. A alteração começou a ser discutida há dez anos, no âmbito da transposição da Diretiva Europeia da Transparência, sendo a mudança aprovada em 2016 e entrado em vigor no ano seguinte. Inicialmente, houve algumas empresas a testar as águas do novo modelo, mas a verdade é que este nunca chegou realmente a impor-se.

Poucas empresas o fizeram, algumas dessas voltaram ao registo trimestral e outras ainda adotaram uma espécie de modelo híbrido. É o caso, por exemplo, da Mota-Engil, entre as grandes empresas, que apresenta resultados completos de seis em seis meses mas que no final de cada trimestre publica um ‘trading update‘, no qual constam os principais indicadores financeiros atualizados.

Neste modelo, o mercado recebe menos informação do que no registo trimestral anterior, mas continua a ser informado da evolução financeira da empresa, pelo menos nos grandes números. O ECO contactou a Mota-Engil para conhecer a sua experiência neste registo, mas a empresa optou por não falar.

Atualmente, há 13 empresas com valores mobiliários cotados em Portugal que adotam a comunicação semestral de resultados, cerca de um quarto do total de companhias com emissões.

Juliano Ferreira, administrador da CMVM, explica ao ECO o que esteve na origem dessas mudanças da lei. “Há dois aspetos que na altura foram bastante discutidos, um deles era a informação financeira trimestral, e um outro relacionado com transparência sobre a estrutura acionista das sociedades, porque antes tínhamos um limiar de 2%, quem chegava a uma participação de 2% tinha de comunicar, e harmonizou-se para os 5%, E, de facto, fica também a dúvida se é menos transparência”.

Para o responsável, que acompanhou de perto o departamento de emitentes no regulador, “é preciso ver outro efeito, porque uma coisa é todos estarem nos 2%, no espaço europeu; outra coisa é a grande maioria estar nos 5%, que era a regra na Europa. Pesando as duas coisas, que é o benefício da transparência nos 2% versus o risco de podermos ter investidores relevantes que deixam de considerar o mercado português, achou-se que em rigor nesse equilíbrio fazia sentido”.

A lógica dessas mudanças foi, na verdade, dupla. Por um lado, harmonizar práticas com a Europa ou, pelo menos, não ter exigência mais apertadas em Portugal, sobretudo para empresas de menor dimensão, sensíveis aos custos; por outro, garantir flexibilidade e liberdade de escolha, de que a frequência da apresentação de resultados é um exemplo.

Mas, afinal, qual é o melhor modelo? Se mais flexibilidade é bom, a prática tem mostrado que ter mais informação é melhor para as grandes empresas, seja por hábito, por obrigar a uma maior disciplina financeira ou por os investidores premiarem uma comunicação mais intensa.

Abel Sequeira Ferreira, diretor executivo da Associação de Empresas Emitentes de Valores Cotados em Mercado (AEM) vê vantagens e desvantagens. “A mudança alinhou Portugal com a prática europeia. Permitiu reduzir encargos administrativos. E ajudou a mitigar a principal fonte de pressão de curto prazo sobre as empresas, favorecendo uma visão mais estratégica e de longo prazo”, afirmou, em declarações ao ECO, acrescentando que “conforme a AEM logo reconheceu antecipadamente, no âmbito da resposta à consulta pública sobre a transposição, o conteúdo das informações trimestrais pode ser relevante para a formação de decisões de investimento, razão pela qual, aliás, a AEM acolheu como positiva a manutenção da possibilidade do reporte trimestral, numa base voluntária. De facto, o tempo demonstrou que, apesar da eliminação da obrigação legal de publicar informação trimestral, várias empresas cotadas portuguesas continuaram a divulgar resultados no mesmo ritmo”.

O tempo demonstrou que, apesar da eliminação da obrigação legal de publicar informação trimestral, várias empresas cotadas portuguesas continuaram a divulgar resultados no mesmo ritmo

Abel Sequeira Ferreira

Diretor executivo da AEM

E porquê? “Por um lado, porque muitos investidores institucionais e analistas financeiros com os quais se relacionam esperam atualizações frequentes, por razões de previsibilidade e transparência, e se a empresa deixar de publicar informação trimestral pode ser penalizada em termos de cobertura de analistas, liquidez das ações ou avaliação.

Por outro lado, as empresas portuguesas competem por capital a nível internacional; se empresas concorrentes, em Portugal ou na Europa, mantêm a prática de reporte trimestral, as empresas nacionais seguem a mesma lógica, de modo a evitar eventuais juízos de “opacidade”. Em geral, portanto, a divulgação trimestral pode continuar a ser vista como uma boa prática de comunicação com o mercado”, explica Abel Ferreira.

João Moreira Rato, presidente do Instituto Português de Corporate Governance, é mais crítico da alteração, não vendo grande vantagem. “Há um argumento habitualmente usado nesta discussão, que diz que menos pressão para a comunicação trimestral leva a uma gestão mais estável, com uma visão de longo prazo. Eu não vejo essa relação direta, que ainda por cima carece de demonstração empírica. Quem achar que é por se passar de comunicar de três em três meses para de seis em seis que vai ter uma visão e uma gestão mais de longo prazo não está a ver bem, acho que é uma ilusão pouco credível”.

Em declarações ao ECO, o responsável desvaloriza também o tema dos custos: “também não convence, não sei se isso tem um custo assim tão elevado, até porque as empresas têm sempre de acompanhar com regularidade as suas contas“. E conclui: “Em regra, mais transparência e mais informação ao mercado é melhor para a empresa e para o mercado. Os investidores, em teoria, ficam mais descansados em deixar o seu investimento numa empresa por mais tempo se forem tendo informação regular e de qualidade. Por alguma razão a maioria das empresas manteve o registo trimestral, porque na análise custo/benefício entenderam que isso traz mais vantagens”.

Em regra, mais transparência e mais informação ao mercado é melhor para a empresa e para o mercado

João Moreira Rato

Presidente do Instituto Português de Corporate Governance

Juliano Ferreira lembra os primeiros tempos das novas regras, que podem ajudar a explicar porque é que a adesão ao ritmo trimestral não tenha sido muito grande. “Inicialmente, havia um regime que obrigava as empresas a divulgar, tinham de fazer um comunicado específico a dizer, atenção, eu vou deixar de divulgar resultados trimestralmente, e tinham de manter o novo calendário durante dois anos. Isso terá feito com que algumas não avançassem logo, até porque podiam ter receio de que esse comunicado fosse interpretado como menos vontade de prestar informação”.

No balanço, o administrador da CMVM valoriza mais os lados positivos. “Sinceramente, o feedback que temos tido de investidores também não é o de faltar informação, mesmo quando falamos com as associações de investidores, eles fazem um acompanhamento muito próximo de indicadores financeiros que vão sendo divulgados e a informação semestral parece ser suficiente para se fazer esse acompanhamento. Portanto, à partida, fazendo aqui uma avaliação da medida, não me parece que tenha comprometido a qualidade da informação, até porque havendo algum aspeto relevante entre períodos, que seja informação relevante para o mercado, tem de ser comunicado”, acrescenta.

Sobre a discussão internacional, nomeadamente nos Estados Unidos, Abel Sequeira Ferreira, da AEM, acha que pode ser positiva. “O debate fora de Portugal, e em especial nos EUA pode ser importante para forjar um equilíbrio mais sólido: o fim da obrigação de resultados trimestrais pode abrir uma janela de oportunidade para perspetivas mais orientadas para o longo prazo, essenciais para um desempenho empresarial superior e para a criação sustentável de valor“.

Para este representante das cotadas, “o caminho futuro pode passar por maior inovação no conteúdo reportado (incluindo informação qualitativa sobre estratégia, sustentabilidade, inovação, etc.) e não apenas no foco na frequência, ou seja, reportando de forma mais holística outras dimensões de criação de valor para os stakeholders, de forma a procurar conciliar competitividade, transparência e visão estratégica de longo prazo, gerando benefícios mútuos na medida em que se assegure a visão de longo prazo mas igualmente uma maior transparência”.

Fazendo aqui uma avaliação da medida, não me parece que tenha comprometido a qualidade da informação, até porque havendo algum aspecto relevante entre períodos, que seja informação relevante para o mercado, tem de ser comunicado

Juliano Ferreira

Vogal do conselho de administração da CMVM

Investidores tranquilos

No que toca aos investidores, nomeadamente os pequenos acionistas, coloca-se sempre a questão teórica de ficarem com acesso menos frequente à informação, eventualmente reforçando a assimetria no que toca a dados relevantes das empresas. Mas a experiência não tem corrido mal, de acordo com Octávio Viana, Presidente da Associação de Investidores e Analistas Técnicos (ATM). O responsável defende que, com os anos já passados, reforça-se a posição que a associação já tinha tomado há quase uma década, quando se começou a falar da mudança de forma mais intensa.

“Os investidores dependem da informação, especialmente financeira, para fazerem um juízo fundamentado do risco económico jurídico que cada opção de investimento oferece e a cada momento. Por isso a informação é crucial, contudo o importante é a sua relevância material e principalmente qualidade. Para a ATM é de manter o padrão da UE: anual + semestral obrigatórios, mas com a hipótese de trading updates trimestrais voluntários para grandes emitentes e setores cíclicos; para PME, facultativo e proporcional e eventuais profit warnings quando sejam materialmente relevantes”, defende a ATM.

Viana salienta outro ponto importante, de que a informação relevante tem de ser sempre comunicada, independentemente do calendário: “Reforçar a disciplina de continuous disclosure: qualquer alteração material deve ser comunicada de imediato ao mercado, com acesso rápido e informação completa e correta, onde se inclui os referidos profit warnings.

Ou seja, enquanto Trump e a SEC prometem uma revolução na forma de menos obrigações e burocracia, a experiência portuguesa mostra que este movimento não tem de ser uma verdadeira rutura. E que, ao final do dia, possa ser algo mais simbólico do que com grande impacto, quer na qualidade da informação quer na qualidade da gestão.

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