A alteração dos Estatutos da OA: em busca da oportunidade perdida
A multidisciplinaridade nas sociedades de advogados já não é uma questão de se, mas apenas de quando. É imperativo que a classe se concentre na discussão dos modelos possíveis.
A Ordem dos Advogados encontra-se a discutir uma proposta de alteração dos seus Estatutos. Entre outras coisas, a OA quer mudar as regras de acesso à profissão, exigindo que os futuros advogados que não se tenham licenciado antes de Bolonha, passem a ter de ser titulares do grau de Mestre, Doutor ou a frequentar pós-graduações reconhecidas pela Ordem. Esta proposta (que não é nova) logo veio incendiar a opinião dos actuais e potenciais profissionais da classe, desvelando-se o Sr. Bastonário em explicações.
Sem pretender entrar no mérito ou pertinência das novas regras, não podemos deixar de ver com curiosidade a argumentação expendida pelo Sr. Bastonário, não propriamente pela defesa das restrições no acesso à profissão, mas sobretudo porque os argumentos avançados servem na perfeição para sustentar outras alterações aos Estatutos, escandalosamente omitidas. De entre essas almejadas modificações, encontra-se a eliminação da proibição de constituição, em Portugal, de sociedades multidisciplinares ou multiprofissionais, nas quais advogados e outros profissionais se possam associar e colaborar.
Para sustentar as restrições do acesso, o Bastonário recorre essencialmente ao direito comparado, referindo que a proposta nacional vai alinhar a prática portuguesa com o que acontece em Espanha, na França, em Itália e na Alemanha. O mesmíssimo argumento poderia ser empregue a favor da multidisciplinaridade, admitida, em distintos formatos, nos quatro países escolhidos. No caso alemão, italiano e francês, a possibilidade de cooperação multidisciplinar está limitada a determinadas profissões (notários, agentes de propriedade intelectual, consultores fiscais, administradores judiciais, revisores de contas, contabilistas, consultores, etc.). No caso espanhol, e pelo menos desde 2001, a “colaboração interdisciplinar” é permitida, desde que a prestação dos serviços jurídicos esteja em relação de complementaridade com serviços prestados por outras profissões. Adicionalmente, a associação entre profissionais só é possível quando não se verifiquem incompatibilidades estatutárias nem esteja em risco o exercício da advocacia.
Por outro lado, o Sr. Bastonário usa o argumento de uma alegada disparidade entre a formação académica exigida para a inscrição no estágio da OA e para efeitos de ingresso na magistratura. Mutatis mutandis, e, quanto a nós, com contornos mais gravosos, outra disparidade já existe no seio da Ordem dos Advogados, que proíbe aos portugueses aquilo que permite aos profissionais de outros Estados-Membro da UE, os quais podem livremente exercer a sua actividade multidisciplinar em Portugal, ao arrepio das mais elementares conceções de igualdade e não-discriminação em razão da nacionalidade.
Pois que, só por arreigado apego a tempos idos, pode a Ordem insistir na manutenção das barreiras à livre concorrência no mercado dos serviços jurídicos, contrariando as recomendações da Comissão Europeia, da OCDE e da Autoridade da Concorrência, não formulando as propostas de alteração dos Estatutos que os actuais desafios no exercício da profissão impõem, deixando essa tarefa ao Parlamento e ao Governo, numa incompreensível demissão no seu papel de intransigente defesa dos interesses dos advogados portugueses.
Mas que modelo? Quanto a nós, temos defendido uma multidisciplinariedade inspirada nos regimes dos países citados: as multidisciplinares podem ser integradas por advogados e outros profissionais liberais (sociedades multiprofissionais), podendo inclusive, à semelhança da Alemanha e da Itália, usar-se uma tipificação legal das profissões que podem colaborar, desde que sejam actividades complementares e em estreita conexão com os serviços jurídicos e que não afectem as regras relativas a impedimentos e incompatibilidades. Pelo menos 51% do capital social destas sociedades deve ser detido exclusivamente por advogados, podendo o restante capital estar nas mãos de outros sócios profissionais. Também o controlo da gestão tem de ser assegurado por advogados. Para garantir o cumprimento das regras deontológicas próprias da advocacia, seria de equacionar que os sócios não-advogados ficassem também sujeitos a certos deveres, tais como a independência, o segredo profissional ou a prevenção de conflitos de interesses. Na relação com os clientes, defende-se uma maior transparência, elaborando-se condições gerais que clarifiquem a relação existente entre os profissionais, a estrutura de detenção do capital, os procedimentos internos de proteção de dados, o modo de repartição dos honorários, as medidas de prevenção de conflitos de interesses e branqueamento de capitais, os termos de assunção da responsabilidade, entre outros.
A multidisciplinaridade nas sociedades de advogados já não é uma questão de se, mas apenas de quando. Face a esta inevitabilidade, é imperativo que a classe se concentre na discussão dos modelos possíveis, das suas vantagens e dos seus perigos, de modo a encontrar um modelo de regulação que sirva aos advogados portugueses. Perante este cenário, lamentamos que a Ordem tenha preferido perder hoje a oportunidade de participar construtivamente naquilo que amanhã será indeclinável.
Nota: O autor escreve ao abrigo do antigo acordo ortográfico.
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