A atração de investimento estruturante exige a eliminação da derrama estadual
Para Portugal atrair grandes investimentos estruturantes, como uma ‘nova Autoeuropa, o país precisa de acabar com a derrama estadual, sem paralelo noutros países, defende Óscar Afonso.
Neste artigo mostro que, para Portugal atrair grandes investimentos estruturantes – que arrastam outros, ampliando o impacto económico e potenciando uma alteração do nosso perfil de especialização –, como uma ‘nova Autoeuropa’, precisamos de acabar com a derrama estadual, sem paralelo noutros países.
A análise tem em conta as taxas máximas de IRC em todos os países da UE (não apenas aqueles que pertencem à OCDE, como tenho visto em análises recentes), aplicando-se a investimentos de grandes empresas (isto porque as PME têm taxas inferiores em alguns países, incluindo em Portugal).
A figura abaixo revela que, em 2023, uma grande empresa que quisesse investir em Portugal enfrentava a 2ª maior taxa máxima efetiva de IRC (28,4%), apenas abaixo de Malta, refletindo a 2ª maior taxa nominal máxima combinada (31,5% = 21% de taxa normal + 9% de derrama estadual no escalão máximo + 1,5% de derrama municipal máxima), mesmo que mitigada pelo 6º maior efeito dos benefícios fiscais da União, avaliado pelo diferencial negativo entre as duas taxas (-3,1 pontos percentuais, p.p.).
O nosso principal problema é mesmo a derrama estadual progressiva, como mostra a tabela (os escalões, referidos nas notas, são subjacentes aos cálculos efetuados).
Para valores de matéria coletável até 1,5 milhões de euros (M€), não temos derrama estadual e a nossa taxa nominal máxima combinada é de 22,5% (21% + 1,5%), levando a uma taxa máxima efetiva de 19,4% (estou a assumir o mesmo diferencial entre as duas taxas máximas nos vários níveis de matéria coletável), precisamente na mediana da UE (14ª posição), ou seja, na posição central, que é menos gravosa, mas ainda assim traduz uma fiscalidade que não é propriamente competitiva face ao demais países da coesão com os quais concorremos na atração de investimento, pois a maior parte está situada na metade inferior.
A situação piora à medida que a matéria coletável vai subindo, como revela a tabela, com a taxa máxima efetiva a passar para a 9ª posição (21,8%) no início do 2º escalão da derrama (7,5 M€), para a 4ª maior (23,9%) no início do 3º escalão (35 M€) e para a 2ª posição a partir de 91 M€ (26,7%), pelos meus cálculos.
Antes de passar para a cenarização que mais releva, chamo a atenção que a taxa máxima efetiva absoluta de 28,4% que aparece na figura e é geralmente usada para comparações só se materializa no nosso caso português para uma matéria coletável igual ou superior a 3200 M€, um valor muito elevado que é difícil de alcançar mesmo pelas maiores empresas nacionais, pelo que se torna uma taxa apenas teórica.
Mais interessante é, a meu ver, olhar para um exemplo de investimento reconhecidamente estruturante, a AutoEuropa – que vários políticos desejam replicar e eu concordo –, e ver que o lucro estimado em 2023, de 232 M€ (mais detalhe nas notas da tabela), enfrenta uma taxa máxima efetiva de IRC de 27,7%, também a 2º maior da UE, mas ainda assim um pouco abaixo da taxa máxima efetiva absoluta de 28,4%.
O exercício de cenarização realizado na tabela evidencia que a taxa máxima efetiva desses 232 M€ de matéria coletável (estou a assumir, por simplicidade, que coincide com o lucro antes de imposto) baixaria para 24,3% (4ª posição na UE) com a eliminação do último escalão de derrama estadual [cenário C1] e para 22,4% (9ª posição) sem os dois últimos escalões [cenário C1]. O terceiro cenário [C3], de eliminação total dessa derrama, conduz a uma taxa efetiva de 19,4% (14ª posição), a mesma que ocorre atualmente para valores de matéria coletável até 1,5 M€, traduzindo uma posição mediana menos gravosa.
Finalmente, o 4º cenário para esses 232 M€ é uma redução de um 1 p.p. na taxa normal de IRC, em linha com a proposta de Orçamento de Estado de 2025 (após aproximação do governo à posição do PS), o que conduz a uma taxa efetiva máxima de 26,7%, que continua a ser a 2º maior na UE.
Ou seja, qualquer dos cenários de redução da derrama estadual conduz a uma melhoria na capacidade de atração de um investimento elevado e estruturante de rentabilidade comparável ao da Autoeuropa do que o corte de 1 p.p. na taxa normal, que, por sua vez, tem a vantagem de ser um corte transversal e abranger todas as empresas lucrativas (isto porque as taxas reduzidas também foram cortadas). Na decisão teria de ser ainda analisado o custo das várias alternativas, naturalmente (o custo de 1 p.p. na taxa de IRC é conhecido, mas não o das alternativas de redução da derrama estadual que refiro).
Esta análise ajuda a perceber melhor a preferência do FMI pela redução da derrama estadual nas recentes consultas anuais a Portugal ao abrigo do Artigo IV da instituição. A partir dos dados aqui apresentados, nomeadamente o efeito relativamente elevado dos nossos benefícios fiscais em sede de IRC (6º maior na UE, como referido), é possível formular outras opções em negociações futuras do governo com o PS em torno da redução do IRC.
Por um lado, a redução da derrama estadual deve ser considerada prioritária nas negociações, para além do corte das taxas estatutárias de IRC, podendo ser colocada como contrapartida, nomeadamente, a redução dos benefícios fiscais injustificados, por exemplo concentrando mais os generosos benefícios à I&D – onde Portugal compara bem no contexto europeu – nas empresas de pequena e média dimensão, onde temos uma falha de mercado, já que as empresas maiores têm mais recursos e incentivo de mercado para conduzirem processos de inovação, requerendo relativamente menos apoio.
Para efeitos de atração de investimento, é preferível ter taxas nominais menores e benefícios fiscais também menores, simplificando o sistema e aumentando também a sua equidade, porque as empresas de menor dimensão têm menos recursos para otimização fiscal. Pelo contrário, as reduções condicionais de IRC preconizadas pelo PS (e aceites pelo governo no âmbito das negociações) alargam os benefícios fiscais e a complexidade do sistema, além de serem pouco eficazes e constituírem uma ingerência na atividade das empresas, em particular o incentivo à valorização salarial, que gera variadas distorções – isto deveria ser também esclarecido em sede de concertação social, se possível com exemplos.
A redução da nossa taxa efetiva de IRC tornaria também menos necessário o recurso ao regime contratual de investimento – em sentido contrário do que foi decidido no Orçamento de Estado, o que se percebe face à dificuldade do governo em obter um acordo com o PS para uma redução maior da taxa de IRC –, que é inerentemente pouco transparente (por questões de reserva negocial), com as desvantagens associadas. Questiono mesmo se a dificuldade em cumprir condições negociadas com investidores, por ineficiência da administração, não terá levado a diligências adicionais de membros do anterior governo que conduziram à sua queda, por levantarem suspeitas ao Ministério Público, até pelo facto de António Costa ter dado tanta importância à captação de investimento no seu discurso de justificação da demissão.
Concluo que o nosso regime de IRC está orientado para a atração de investimentos de pouca rentabilidade – o que é conflituante com a aposta nos benefícios à I&D, onde os investimentos tendem a ser grandes e os lucros também – que não vão para outros países mais competitivos fiscalmente. Atrair investimento estruturante como uma ‘nova Autoeuropa’ requer eliminar a derrama estadual e (depois ou em paralelo) cortar a taxa normal, usando como moeda de troca negocial a redução de benefícios fiscais injustificados e rejeitando novos benefícios fiscais condicionais que só distorcem e complexificam o regime de IRC.
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