Editorial

A austeridade já cá está

Mais importante do que o discurso sobre a austeridade que não existirá, uma ilusão, é preciso preparar uma agenda de regresso à nova normalidade económica e social.

O primeiro-ministro garante a pés juntos que não vai aplicar a austeridade que o país viveu a partir de meados de 2010, ainda com o Governo de José Sócrates e que não impediu o pedido de resgate em abril de 2011. António Costa fala na austeridade que não virá, mas talvez se tenha esquecido, por um momento, da austeridade que já cá está, das centenas de milhares de trabalhadores que já estão em regime de austeridade, que perderam o emprego ou perderam rendimento.

O que é que importa o tipo de austeridade que vamos ter? E a que já temos? Do ponto de vista de quem a está a sofrer, é irrelevante saber se é por aumento de impostos ou de corte da despesa do Estado. Neste caso, para começar, é mesmo por causa do desemprego e do lay-off de milhares de empresas que fecharam ou suspenderam a atividade ou de tantas outras que, mesmo a trabalhar, perderam negócio. Dos sócios-gerentes com um ou dois trabalhadores que ficaram sem negócio e não têm um euro de apoio público. As medidas que permitem limitar estas quebras abruptas de rendimento ajudam, como as moratórias da banca e das rendas, mas estão longe de resolver tudo. Enfim, de uma camada da população que já perdeu rendimento. Não vamos ter a mesma austeridade de 2010, a sério!? Será outra, poderemos até ‘abolir’ o substantivo, escolham outro, mas o resultado não será diferente, menos rendimento disponível.

Sim, a austeridade que vamos ter, e escrevam, vamos ter austeridade, vai ultrapassar tudo o que se viveu a partir de 2010. Porque a recessão será mais profunda. A responsabilidade é de António Costa? Não, não foi o Governo a trazer esta crise, ao contrário do que se passou no início da década, apesar de todas as tentativas revisionistas da história. Mas foi o perfil da consolidação orçamental seguida desde 2015 que nos expõe, outra vez, porque continuamos com uma dívida pública de quase 120% quando a prioridade deveria ter sido uma descida acentuada daquele indicador. A estratégia foi outra, e até correu bem, com circunstâncias externas muitíssimo favoráveis… até agora. “Não há atualmente uma doença das finanças do Estado, que, felizmente, conseguiu sanear as suas finanças públicas”, disse António Costa em entrevista à Agência Lusa. Não? Vamos ver dentro de seis a nove meses.

Agora, viramo-nos para a União Europeia, para as ‘coronabonds’, para soluções de mutualização, e não é apenas por causa da solidariedade do projeto europeu, é mesmo porque não temos as mesmas condições para ir ao mercado, e porque mesmo com o BCE, os spreads das emissões de dívida de Portugal vão aumentar em relação à Alemanha. Na verdade, estamos dependentes destes fundos para financiar uma recuperação económica que vai demorar tempo, qualquer que seja a letra que os economistas gostem de usar. Em U, em V, em L e veremos se não é em I… deitado.

A crise é diferente, e portanto, a receita da austeridade não será a mesma de 2011, e a União Europeia (leia-se o BCE) aprendeu alguma coisa. Mas isso não é mérito de Costa, é o tempo e as circunstâncias que são diferentes. E pedem medidas diferentes. Mas sabemos uma coisa: O Produto Interno Bruto vai cair, e vai cair muito em 2020, o défice vai regressar para valor elevados, claramente acima dos 3% e a dívida pública vai voltar aos valores da troika.

Para esta discussão é quase irrelevante saber se a Comissão Europeia suspendeu as regras do Pacto de Estabilidade. A responsabilidade pelo défice e pela dívida não desaparecem, e o ajustamento das contas terá de ser feito de alguma maneira. Não terá de ser feito em três anos, como sucedeu em 2011? Talvez. Mas quando há quebra da produção, como a que já estamos a experimentar, e quebra do rendimento, o que se segue não vai ser bonito para uma parte significativa da população. A crise foi simétrica à entrada, será assimétrica à saída.

Mais do que criar a ilusão de que não haverá austeridade — sobretudo porque o que não sabemos ainda é a profundidade da recessão –, é importante começar a preparar o que se vai seguir. O economista Luís Aguiar Conraria sugeriu, há dias, a realização de comunicações semanas sobre a evolução de alguns indicadores económicos, e não apenas as conferências diárias sobre o estado de saúde pública da pandemia. Acrescento a esta proposta a criação de equipas conjuntas, com a participação do altos quadros do Estado e o setor privado, para preparar a reativação da economia, tendo até em conta a experiência de outros países que já estão a percorrer esse caminho. A sociedade civil já se começou a mexer — por exemplo com a carta ao primeiro-ministro e ao Presidente Marcelo — a pedir uma retoma gradual da atividade económica e um plano de ações para a proteção em termos de saúde pública.

O jornalista João Miguel Tavares foi muito criticado por ter pedido uma data de regresso à normalidade, ou a uma nova normalidade. Pois é isso mesmo que os empresários, os gestores, os trabalhadores precisam. Não, não é um dia marcado no calendário, isso obviamente não é possível, é uma agenda e uma perspetiva do que vai suceder nos próximos dois meses, com a reabertura da economia em simultâneo com a limitação do confinamento social.

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