A distopia tecnológica

A China está a construir um estado securitário e pode estar a exportar instrumentos de espionagem para todo o mundo, contribuindo para pôr em causa a abertura dos mercados globais.

Foi uma semana agitada para quem ainda acredita ter direito a alguma privacidade. Na enorme feira de tecnologia de Las Vegas, a CES, a Apple recebia os visitantes uma mensagem irónica: “O que se passa no seu iPhone fica no seu iPhone”. A piada foi devidamente entregue aos concorrentes que usam o sistema Android, mas deve ser entendida como um sinal dos tempos. A feita ocorre na semana em que mais um escândalo de violação de privacidade massivo ocorreu nos Estados Unidos, em que se descobriu quão fácil é encontrar um telemóvel em tempo real usando apenas o seu número.

Tudo isto são detalhes que, com mais ou menos regulação, se vão resolver – e graças ao GDPR e a outras peças legislativas, os cidadãos da União Europeia estão mais bem protegidos para os próximos tempos. De qualquer forma, já é sabido que, cada vez mais, a privacidade será uma opção aberta apenas à elite info-informada e capaz de pagar o custo dos serviços que a concedem. A privacidade será mais um dos novos fatores de exclusão social.

A notícia mais interessante da semana neste tema da privacidade está relacionada com o escândalo da Huawei – e as suas implicações geoestratégicas. Funcionários da Huawei foram detidos no Canadá e na Polónia, implicando o gigante tecnológico chinês e o seu governo numa acusação de espionagem governamental. E já se discute se a UE e a NATO deverão tomar uma posição conjunta contra esta e outras marcas chinesas de grande consumo. O momento para esta disputa está longe de ser inocente: com uma guerra comercial dura entre os Estados Unidos e a China a tomar forma, convém à narrativa dominante disseminar a ideia da China como “inimigo”. Mas isso não invalida a dimensão da ameaça.

Já há muito que a China deixou de ser a pátria das imitações baratuchas, mas a verdade é que parte da sua ascensão económica se deve ao desenvolvimento de produtos inspirados e copiados nos que foram sendo desenvolvidos no ocidente. Nunca se saberá quanto deste desenvolvimento se deve a roubo de tecnologia ou ao desrespeito pelos direitos de autor, mas hoje a economia chinesa já não é assim – e os problemas potenciais são bem mais sérios.

No regime de capitalismo controlado, as empresas privadas farão exatamente o que Pequim mandar. E se isso implicar uma operação de espionagem em larga escala, ela será executada sem hesitações. O relatório de 2018 da Freedom House sobre liberdade na internet já apontava o dedo a Pequim e ao seu objetivo de construção de uma distopia tecnológica que assegure o aumento do seu poder à escala nacional e global.

Para perceber a dimensão do problema, basta olhar para as quotas de mercado dos produtos tecnológicos chineses (telemóveis, chips de computador, drones, etc.). A Huawei é só a face de consumo de um problema que se estende às mais importantes indústrias do armamento e da computação. E, numa lógica em que cada vez mais abdicamos da privacidade pelo conforto e pela segurança, podemos estar a colocar-nos nas mãos (e nos olhos e nos ouvidos) de poderes que nos são estranhos – e que não nos querem apenas vender publicidade.

Ler mais: Ari Ezra Waldman, professor de Direito e Inovação na Universidade de Nova Iorque, é autor de Privacy as Trust. Nesse livro de 2018, defende-se que é preciso antes de mais atualizar a própria ideia de privacidade antes de a voltar a tornar um direito. A proposta do autor passa por encarar a privacidade enquanto um ato de confiança e é devidamente sustentada através de uma série de estudos de caso que abrem pistas de reflexão sobre o tema.

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