A dor do dinheiro
A cor do dinheiro vai, de alguma forma, ser substituída pela dor do dinheiro. Serão os mais desprotegidos os que mais sofrerão.
Precisávamos de um Capitão Euro, uma réplica do Capitão América da Banda Desenhada. Saiu-nos a sra. Christine Lagarde que, na primeira intervenção digna desse nome, aplicou um golpe de Kung Fu à Itália. E, com isso, aos países mais frágeis. Depois da pandemia, o que poderemos esperar desta Europa que considera a solidariedade um exercício de auto-flagelação? A austeridade 2.0.? Nada que admire. A União Europeia move-se como um dinossauro excelentíssimo. Devagar, até chegar à extinção. A sua irrelevância é aflitiva. Teve dois meses para desenhar uma estratégia de prevenção, após se perceber o que ia acontecendo na China.
Que fez? Assobiou para o ar, enquanto via filmes e séries na Netflix. Vive dentro de uma câmara de eco, a ouvir as canções da Eurovisão, sem contacto com o mundo real. Sobrevive no mundo do ob-lá-di-ob-lá-dá. No pico da crise dos refugiados, deixou a Grécia (esta, estrangulada pelas medidas austeras da propria UE) e a Itália, à sorte. Com a Itália a ter necessidades de material de protecção, Alemanha e França negaram-lhe isso, com o argumento de que precisavam para si. Que se salvasse sozinha. Os radicais nacionalistas esfregam as mãos com estas decisões.
Depois dos cheques da UE, da descrença, da economia frágil e do desemprego inevitável, virá o seu xeque aos reis de Bruxelas. A UE parece uma galinha em pânico. Corre sem destino. Tal como o inefável sr. Donald Trump, que espera um milagre dos céus. Ou o sr. André Ventura, que queria ter direito a cinco minutos de fama, pavoneando-se nos hospitais, enquanto empatava os profissionais do SNS. Confunde este vírus com um pontapé na canela de um jogador de futebol adversário ou um árbitro. Precisa de um banho de sensatez.
Os vírus serão ameaças permanentes para o qual necessitamos de um sistema de defesa e ataque rápido. Precisamos de reler Sun Tzu e Clausewitz. E perspicácia. Em 1688, José de la Vega, filho de judeus portugueses e espanhóis, publicou um livro que se tornou um clássico, sobre o funcionamento da Bolsa de Amesterdão. Chamava-se “Confusão de Confusões”. Ajuda-nos a retratar os dias de hoje. Na vida, nas Bolsas, na economia real. Estávamos todos avisados. Pelos livros de Ficção Científica. Pelos filmes de Hollywood. Pela Organização Mundial de Saúde, que no início de 2018, alertou que chegaria uma “doença X”. Que se propagaria rápida e silenciosamente, explorando as redes de viagens e do comércio global. Chegaria a países sem fim. O turismo de massas, a expansão das cidades, a ocupação do mundo selvagem, os aviões a cada minuto, o comércio global e as mudanças climatérias, em conjunto, eram um “cocktail molotov”. Ninguém ouviu.
Uma das primeiras vítimas do Covid-19 foi a indústria cultural, tão frágil como a beleza do ambiente planetário. Nestes dias revejo os quadros de Edward Hopper, o pintor que retratou como nenhum a solidão urbana. Desde logo “Nighthawks”, de 1942, pintado em plena II Guerra Mundial, onde três pessoas sós estão sentadas ao balcão de um “diner” americano. É de noite. Ninguém fala. Não há comunicação ou debate de ideias. Caminharemos para isso? A pior insolvência material vem da insolvência intelectual. Vão existir helicópteros de dinheiro, mas a maioria não os receberá, a Ocidente e a Oriente.
A cor do dinheiro vai, de alguma forma, ser substituída pela dor do dinheiro. Serão os mais desprotegidos, aqueles que trabalham a recibos verdes, os que procuram sobreviver no pretenso modelo económico português, que mais sofrerão após a pandemia amainar. As pequenas empresas familiares poderão desaparecer como pó. Num país pobre e frágil como o nosso, esta será uma “destruição criativa” tão, ou mais, devastadora do que a que aconteceu nos anos da troika. Que sobrará da aposta de Las Vegas (tudo no mesmo número) no turismo como único desígnio nacional? Para que servirá a aposta cega no aeroporto do Montijo, num mundo com menos “low-costs”? Que modelo económico para Portugal poderá nascer depois do Covid-19? Dificilmente tudo será como antes do sr. Fernando Medina ter ficado silencioso. A precaridade da existência, que depende da natureza e de um vírus, ficou evidente. Qual o sentido da vida? É preciso prevenir e não remediar.
Por agora, nestes dias, resta o recolhimento. Pode ajudar-nos a repensar a nossa vida. Se o quisermos. Algo que os Everly Brothers já cantavam em 1957: “Bye bye love/Bye bye happiness/Hello loneliness/I think I’m gonna cry/Bye bye love/Bye bye sweet caress/Hello emptiness/I feel like I could die”. Da euforia à ressaca. Depois da pandemia, as economias ficarão com um elevado nível de dívida pública. Mais impostos estarão no horizonte. Mas isso será um problema para depois. Como após das guerras.
Sugestão da semana
David Simon (autor de uma das melhores séries televisivas de sempre, “The Wire”) e Ed Burns recuperam “The Plot Against America” de Philip Roth para a HBO. É uma visão alternativa da história:o piloto Charles Lindbergh derrota Franklin Roosevelt nas presidenciais de 1940 e alinha os EUA com a Alemanha nazi. Muito actual.
Assine o ECO Premium
No momento em que a informação é mais importante do que nunca, apoie o jornalismo independente e rigoroso.
De que forma? Assine o ECO Premium e tenha acesso a notícias exclusivas, à opinião que conta, às reportagens e especiais que mostram o outro lado da história.
Esta assinatura é uma forma de apoiar o ECO e os seus jornalistas. A nossa contrapartida é o jornalismo independente, rigoroso e credível.
Comentários ({{ total }})
A dor do dinheiro
{{ noCommentsLabel }}