A ‘engenhosa’ queda do rácio da dívida

Descidas adicionais do rácio de dívida com recurso a operações financeiras constituem apenas ‘mais areia’ para os olhos dos eleitores, pelo que devem ser desmascaradas

Tem sido bastante ventilado nos media o suposto “brilharete” das contas públicas em 2023, primeiro no saldo orçamental e, mais recentemente, no rácio na dívida pública no PIB, que se situou em 98,7% no final de 2023, o mínimo desde 2009 e abaixo do limiar ‘psicológico’ dos 100%.

É sobre este último indicador que me vou deter neste artigo.

Um rácio de dívida mais baixo é positivo porque revela uma maior capacidade de pagamento da dívida por parte do Estado português (o soberano), na medida em que o rácio exprime o valor em dívida em função do rendimento gerado internamente pelo país num ano (neste caso, 2023).

A queda do rácio favorece uma redução dos custos de financiamento em mercado por parte do Estado português e, a prazo, uma diminuição dos encargos com juros, embora tudo dependa das condições de mercado. Nesse particular, releva também que estamos mais longe do topo dos estados mais endividados da União Europeia (6ª posição, como detalhado mais abaixo no texto), ficando assim menos expostos a eventuais perturbações dos mercados internacionais de dívida que possam surgir (um pouco na lógica de estar mais longe do ‘leão’ quando este resolver atacar).

Dito isto, interessa saber como chegamos a esse resultado de 98,7% no rácio da dívida pública em 2023.

Como demonstrado abaixo, a maior parte do ‘brilharete’ no rácio deve-se ao efeito direto da inflação sobre o PIB nominal, seguido do efeito temporário do ‘boom’ turístico no PIB. Após estes dois fatores inesperados com impacto direto no PIB nominal (o denominador do rácio), seguiram-se outros dois fatores, estes controlados pelo governo e com dimensão também apreciável, neste caso influenciando a dívida (o numerador): a receita fiscal acima do orçamentado em 2022 e 2023 (por efeito da atividade económica acima do esperado, refletindo os efeitos turismo e inflação já referidos) – que o governo optou por não devolver às famílias e empresas, enchendo os cofres do Estado à sua custa – e a utilização de parte dos depósitos das Administrações públicas para reduzir a dívida (via amortização antecipada, nomeadamente), que não passa de ‘cosmética financeira’ só para efeitos de ‘marketing’ político. Os dados trimestrais relativos ao rácio da dívida no ano de 2023 sugerem uma manipulação ainda maior do que a evolução anual dos depósitos aponta e que aqui explico.

Antes disso, comecemos por uma análise histórica da evolução do rácio, para enquadramento.

O rácio da dívida pública no PIB de 98,7% no final de 2023 está ainda perto em valor e posicionamento do de 2010 (100,2%, o 4º maior valor na altura – ver Figura 1), ano imediatamente anterior ao pedido de ajuda externa pelogoverno liderado por José Sócrates à troika de credores (FMI, Comissão Europeia e BCE), obrigando ao doloroso programa de ajustamento económico e financeiro de 2011-2014.

Na Figura 1 é possível ver que o referido rácio subiu 28 pontos percentuais (p.p.) entre 2005 e 2010 (de 72,7% para 100,2%), ou 5,6 p.p. ao ano, em média. Antes disso, a subida foi de 16,8p.p. em 2005 face a 2009 – ou seja, 2,8 p.p. ano –, altura em que o rácio estava em 55,4%, abaixo do limiar de 60% das regras europeias do pacto de estabilidade. Foi esta explosão do rácio dívida pública, sobretudo entre 2005 e 2010, durante a governação de José Sócrates – altura em que o ritmo de subida do rácio da dívida duplicou, como se depreende dos números acima –, que nos colocou no ‘olho do furacão’ por altura da crise de dívidas soberanas (contexto internacional), da qual Espanha escapou praticamente incólume (apenas com medidas para o setor financeiro).

Em Portugal, pelo contrário, o empréstimo da troika de credores levou o nosso rácio da dívida a atingir um máximo de 132,9% do PIB em 2014, que foi depois batido pelo valor de 134,9% em 2020, por efeito da forte queda do PIB nominal(no denominador do rácio) durante a pandemia por Covid-19.

Com a retoma económica, o rácio baixou para 124,5% logo no ano seguinte (2021).

Os anos de 2022 e 2023 ficaram marcados pelo regresso em força da inflação e uma explosão do turismo, beneficiando de efeitos temporários e irrepetíveis: imagem de país longe da guerra na Ucrânia – além de bonito, algo que é estrutural, mas que poderá estar em risco, a prazo, se não forem acauteladas questões de sustentabilidade – e o forte desejo de viajar após a pandemia.

É, portanto, relevante analisar a redução do rácio da dívida pública em 2022 e 2023 excluindo esses dois fatores excecionais, a que se juntam outros dois já referidos, um relativo à manipulação da dívida pública pela utilização dos depósitos das Administrações Públicas (AP), nomeadamente para amortização antecipada de títulos de dívida, e outro referente à não devolução pelo governo da receita fiscal acima do orçamentado (devido ao acréscimo acima do esperado do PIB via turismo e inflação).

Na Figura 2 é possível ver que o crescimento nominal do PIB – que influência a evolução do rácio da dívida pública – foi de 23,9% entre 2021 e 2023, com um contributo de 10,1 p.p. (42%) das exportações de serviços, onde pesa sobretudo o turismo (de notar que no cálculo das variações para o ano de2023 são usados os valores acumulados até ao terceiro trimestre que estão disponíveis, mas não se espera que os dados do último trimestre alterem significativamente os resultados aqui apresentados).

Nessa figura é ainda evidenciado o efeito da inflação, medida pela subida de 12,2% do deflator do PIB ente 2021 e 2023, que explica cerca de 50% da evolução nominal do PIB nesse período.

Finalmente, a Figura 3 mostra que a descida de 25,8 p.p. do rácio da dívida pública entre 2021 e 2023, de 124,5% para 98,7% do PIB, foi mais do que compensada pelos efeitos mencionados, que se repartem entre 9,0 p.p. de efeito turismoe 13,5 p.p. de impacto adicional da inflação (digo adicional, porque uma pequena parte do efeito inflação foi removida anteriormente no respeitante à subida dos preços do turismo e outras exportações de serviços), dois efeitos inesperados com impacto na variação nominal do PIB (denominador), a que se juntam mais dois impactos sob controlo do governo a influenciar a dívida, os 3,5 p.p. de receita fiscal acima do orçamentado não devolvidos aos contribuintes e 2,8 p.p. do PIB de redução dos depósitos das AP usados para amortizar dívida, nomeadamente.

Após a remoção dos quatro efeitos do rácio de dívida pública de 2023, este passa de 98,7% para 127,5% do PIB, significando que, na realidade, há um aumento do rácio da dívida pública face a 2021 (124,5%) quando expurgados os quatro fatores extraordinários, dois de conjuntura e outros dois sob controlo do governo, a não devolução de excesso de receita fiscal face a orçamentado e a ‘maquilhagem financeira’.

Em termos absolutos, a dívida reduz-se 9,4 mil milhões de euros (M€) em 2023, como referiu o Ministro das Finanças, mas esqueceu-se de mencionar que a descida ‘real’ é de 6,8 mil M€ após remover o efeito de redução dos depósitos nesse ano.

No conjunto de 2022 e 2023, a descida absoluta da dívida é de apenas 6 mil M€ e baixa para 1,9 mil M€ descontando o efeito de redução dos depósitos. Se a esta melhoria ligeira da dívida somarmos o efeito contrário que corresponderia à devolução do excesso de receita fiscal face ao orçamentado em 2022 e 2023 (9,4 mil M€: 3,8 mil M€ em 2022 e 5,6 mil M€ em 2023), chegamos a um valor de 7,4 mil M€, que traduz o aumento de dívida que ocorreria no conjunto desses dois anos se o Governo tivesse optado pela devolução desse excesso na totalidade. Estas são as verdadeiras contas que devem ser apresentadas, esclarecendo as opções tomadas.

A parte final da análise prende-se com a evolução do rácio da dívida pública em final de trimestre no ano de 2023 (dados comparáveis do Eurostat), que permitem verificar dois fatos importantes:

  1. O rácio passou de 112,4% no final do primeiro trimestre, para 110,0% no final do segundo e 107,5% no final do terceiro, sendo o valor de 98,7% no final do ano fornecido pelo Banco de Portugal. Isto significa que a redução de 13,7 p.p. do rácio em 2023 (de 112,4% para 98,7%) é explicada sobretudo pela descida de 8,8 p.p. no último trimestre, que é historicamente elevada e não se consegue justificar pela evolução anual dos depósitos (que recuaram de 5,7% para 4,3% do PIB em 2023) nem pela evolução da atividade económica, pelo que outros estratagemas, além da amortização antecipada recorrendo a esses depósitos, poderão ter sido usados. Segundo o Banco de Portugal, “não são incluídos no cálculo da dívida pública na ótica de Maastricht alguns instrumentos financeiros, tais como as ações e outras participações, os derivados financeiros e os outros débitos/créditos (nos quais se incluem as dívidas comerciais)”, sendo, assim, de suspeitar que as operações conduzidas tenham ainda recorrido a transferência de valores para algumas dessas rubricas excluídas da dívida.
  2. No final do 3º trimestre, o rácio de 107,5% do PIB era já o 6º da UE (abaixo da Grécia e Itália, como já vinha a suceder há algum tempo e, mais recentemente, também abaixo da França, Espanha e Bélgica), sendo certo que tal continuará a acontecer no quarto trimestre, pois o 7º (o Chipre) tem um valor ainda distante, de 79,4%. Ou seja, tanta ‘maquilhagem’ por via de ‘engenharia financeira’ não serviu para baixarmos mais posições neste ranking indesejável (colocando-nos ainda mais longe do radar do mercado), mas apenas para ficarmos abaixo do valor psicológico de ‘100%’, que funciona melhor em termos de ‘marketing político’ antes das eleições de 10 de março, o que não pode deixar de ser censurado por se tratar de uma nítida manipulação do indicador sem que daí resulte uma vantagem para os cidadãos, que devem ser esclarecidos das opções seguidas. A dívida não desaparece se uma parte tiver sido `’escondida’, como a evolução do indicador no quarto trimestre sugere, pelo que seria importante o governo esclarecer a evolução do rácio da dívida nesse período e as operações adotadas.

Conclui-se que, embora seja positiva a redução do rácio da dívida pública em abstrato, por reduzir os custos de financiamento e reduzir o risco do Estado perante os mercados, tal não deve ser feito ‘a qualquer custo’, dado que os efeitos da elevada inflação sobre famílias e empresas poderiam ter sido minorados baixando a carga fiscal – que tem batido sucessivos máximos históricos, refletindo-se num esforço fiscal dos mais altos da União Europeia, o que penaliza fortemente a nossa competitividade – e vários serviços públicos chegaram a uma estado lastimoso, como é noticiado todos os dias.

Descidas adicionais do rácio de dívida com recurso a operações financeiras – não sou só eu que o digo, vários analistas já expuseram e detalharam essa situação – puramente para efeitos de ‘marketing político’ (sem melhorias adicionais de posicionamento a nível europeu, como demonstrado), constituem apenas ‘mais areia’ para os olhos dos eleitores, pelo que devem ser desmascaradas, de modo que possam surgir explicações, assim o governo esteja disposto a fornecê-las.

Figura 1: Rácio da dívida pública no PIB e rácio sem depósitos das Administrações públicas, AP (%)

Fonte: Banco de Portugal (BdP) e cálculos próprios.

Nota: valores em final de ano.

Figura 2: Taxa de variação (Tv, %) nominal do PIB entre 2021 e 2023 repartida entre o contributo das exportações de serviços (p.p.) e o remanescente, e entre a Tv real do PIB e a Tv do deflator do PIB

Fonte: INE e cálculos próprios.

Nota: os valores de 2023 foram calculados usando os dados disponíveis até ao 3º trimestre, correspondendo assim a estimativas (no caso do PIB, a taxa de crescimento homóloga real de 2,3% ate ao 3º trimestre corresponde exatamente à estimativa preliminar já divulgada pelo INE para o conjunto do ano).

Figura 3: Redução do rácio da dívida pública (RDP, % do PIB) entre 2021 e 2023, e remoção de quatro efeitos influenciando a evolução nesse período: (i) redução dos depósitos das AP; contributos do (ii) turismo e (iii) inflação para a evolução do PIB nominal; e (iv) receita fiscal acima do orçamentado

Fonte: BdP, INE e cálculos próprios.

Notas: valores em final de ano; os números a partir da 3º coluna (inclusive) representam o RDP em 2023 removido, sucessivamente, de quatro efeitos excecionais que se fizeram sentir entre 2021 e 2023: (i) a redução de depósitos das AP nesse período (usados, por exemplo, para operações de amortização antecipada de dívida pública), no valor de 2,8% p.p. do PIB (cálculo do valor da coluna 3: 101,5= 98,7 + 2,8, em que 2,8= 7,1-4,3, a diferença entre os valores de depósitos em 2023 e 2021 na Figura 1); (ii) o elevado contributo das exportações de serviços (onde pesa sobretudo o turismo) para a evolução do PIB nominal em 2021 (cálculo do valor da coluna 4: 110,5=101,5*(1+23,9%)/(1+13,8%), em que 23,9% é o crescimento nominal do PIB entre 2023 e 2021 e 13,8% é o valor sem o contributo das exportações de serviços – Figura 2); (iii) o efeito da inflação na dinâmica nominal do PIB, medida pela variação do deflator do PIB entre 2021 e 2023 (cálculo do valor da coluna 5: 124,0=110,5*(1+12,2%), em que 12,2% é a variação do deflator do PIB entre 2021 e 2023); (iv) receita fiscal acima do orçamentado em 2022 e 2023 em % do PIB devido ao efeito do crescimento económico mais forte do que o previsto (cálculo do valor da coluna 6: 127,5=124,0+3,5, em que 3,5=100*(3791+5591)/267768), i.e., a receita fiscal das AP acima do orçamentado em 2022 e 2023 sobre o PIB nominal estimado de 2023 (com base nos cálculos da Figura 2) – os dados do excesso de receita fiscal são calculados a partir das sínteses de execução de janeiro de 2023 e 2024 da DGO, respetivamente), devido aos efeitos inflação e turismo (antes expurgados do denominador e aqui removidos do numerador). Entre parêntesis curvos são apresentados os diferenciais de aumento da dívida pública associados à remoção de cada efeito.

  • Diretor da Faculdade de Economia da Universidade do Porto, Professor Catedrático e sócio fundador do OBEGEF

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