A farsa eleitoral e o défice democrático
A farsa maior não é orçamental, é política. Porque se todos os partidos tivessem sido fiéis aos seus manifestos eleitorais o IVA da electricidade teria mesmo baixado, ou o OE teria sido chumbado.
O Governo nomeou um grupo de trabalho para reavaliar o modo de elaboração do Orçamento do Estado (OE). Com isto, o Governo pretenderá travar o tipo de discussão orçamental que se tem repetido nos últimos anos, designadamente a multiplicidade de propostas de alteração que têm surgido na fase final de aprovação do OE em sede de votação na especialidade. Segundo o ex-secretário de Estado dos Assuntos Fiscais, Rocha Andrade, que vai liderar o referido grupo de trabalho, no conjunto das cerca de 1.300 propostas apresentadas este ano na especialidade, cada proposta terá tido “cerca de 20 segundos para ser debatida”.
Ora, é inegável que a discussão orçamental na especialidade é cada vez mais frenética e difícil de acompanhar. Sou, portanto, sensível, pelo menos em teoria, àquele argumento do Governo. No meio da balbúrdia parlamentar, a probabilidade de ninguém discutir com consistência e seriedade seja lá o que for é elevada, como também é elevada a probabilidade de certas medidas serem dadas como aprovadas e depois verificar-se que afinal foram chumbadas (veja-se o exemplo da descida do IVA da comida para bebés, que se julgava aprovada e afinal não foi, porque, ao contrário do que inicialmente se contabilizara, o PS votou contra a redução).
Mais ainda, com tantas propostas de alteração a ter em conta, a probabilidade de se perder o fio à meada é também muito elevado. O risco é perder-se de vista a coerência orçamental de cada medida no seio do OE e, por conseguinte, perder-se também o escrutínio que é exigível a um OE. O risco é ficarmos perante uma salgalhada orçamental ou, pior ainda, assistir-se, como sucedeu no IVA da electricidade, a um exercício de pura hipocrisia política em que todos vão rejeitando as propostas de uns e de outros até que no final tudo fica na mesma e ninguém é responsabilizado pela manutenção do “statu quo”. Todos saem ridiculamente airosos.
O OE é uma autorização para gastar. Constitui uma apropriação de recursos dos contribuintes para fazer a despesa pública que resulta das opções dos partidos. Assim, porque não deve haver despesa sem antes existir alguma garantia de receita que a financie, seria prudente que a elaboração do OE começasse primeiro com a definição dos recursos necessários à realização da despesa e não ao contrário como hoje sucede. Por outras palavras, que se passasse a discutir a despesa em função da receita consensualizada entre os partidos, por áreas temáticas (Educação, Saúde, Justiça, etc.), e consignando certos impostos a certas despesas. As acusações de despesismo ou de irresponsabilidade orçamental seriam atacadas na raiz.
A negociação dos recursos em estreita ligação à despesa traria várias vantagens.
- Primeiro, responsabilizaria os partidos e o eleitorado pelos resultados orçamentais.
- Segundo, centraria a afectação do OE nas áreas temáticas em relação às quais as pessoas dão maior importância.
- Terceiro, simplificaria o escrutínio do OE, em benefício das contas públicas e, sobretudo, do processo democrático.
Nestas circunstâncias, o OE seria um instrumento agregador de recursos que legitimaria o Estado enquanto meio de acção colectiva dos cidadãos, como o Estado deve ser, numa função prestadora e/ou financiadora consoante as escolhas do eleitorado, por oposição ao financiamento do Estado como um fim em si mesmo e desgarrado da realidade.
Evidentemente, não será nada disto que o grupo de trabalho irá defender, pelo que se justifica uma boa dose de cepticismo quanto às propostas a apresentar pelo mesmo. Além disso, depois da experiência dos últimos anos, é sabido que este Governo, que celebrizou a palavra “cativações”, também não é conhecido por ser especialmente transparente em matéria orçamental. Esperemos, pois, que o objectivo de trazer maior clarividência ao debate orçamental não acabe por resultar no seu mero silenciamento. A eliminação “tout court” da especialidade, apesar de ser uma hipótese muito remota, seria um (mau) passo nesse sentido.
Ainda assim, sendo discutível que o debate na especialidade, no seu actual formato, sirva o seu propósito, uma alternativa seria a sua transformação numa segunda votação na generalidade. Ou seja, a primeira votação manter-se-ia inalterada. Mas a segunda votação, que ocorreria já depois de negociações entre os partidos no governo e os demais, deixaria de ser uma negociação peça a peça para se tornar numa segunda votação em modo de generalidade.
Os partidos no governo poderiam manter a lógica interna do “seu” OE e poderiam também acomodar reivindicações específicas de outros partidos. Em simultâneo, qualquer partido poderia votar contra o OE que pisasse as suas linhas vermelhas. Ninguém teria de sair airosamente ridículo.
Rocha Andrade falava há dias de uma farsa orçamental e de partidos que estariam “a brincar aos orçamentos”. De facto, depois de ver as cambalhotas dos partidos no IVA da electricidade, incluindo as cambalhotas do próprio PS – que fala de demografia e de natalidade, e da ilegalidade das propostas dos outros, mas que acabaria por penalizar as famílias de maior dimensão com a sua proposta para o IVA, ela própria ilegal – não deixo de lhe dar alguma razão.
Todavia, a farsa maior não é orçamental, é política. Porque se todos os partidos tivessem sido fiéis aos seus manifestos eleitorais o IVA da electricidade teria mesmo baixado, ou o OE teria sido chumbado. Ao não ter acontecido nem uma coisa nem a outra, ficámos a saber para que servem os manifestos eleitorais. Para brincar às eleições. Que ninguém se queixe da abstenção.
Nota: Por opção própria, o autor não escreve segundo o novo acordo ortográfico
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